Porto
Pérolas derretidas, teimosas de quietude, tal leve vestido ao ar; noite dessas de misterioso silêncio, beira de praia, chãos de porto. Eram pisos de pedras escuras. Pouca luminosidade, os lampiões não foram acendidos, aquele noctívago contava apenas com o Lua e a misericórdia das nuvens, aproximando-se gananciosas, num desenho que parecia uma mão pontuda querendo agarrar o cristal. Andava com certa pressa, porém parava por muitos momentos, pois algo o incomodava, e não sabia discernir bem. Via vultos lá pra baixo, n'areia, nas esquinas, nos compartimentos escuros e meio distantes, cuja obrigação era zelá-los. Medo era palavra proibida, mesmo existente em seu presente - e também em seu recente passado, é que viva estava só no seu interior. Não queria, mas precisava. Saíra do regaço do funcionalismo, numa má sorte de casamento, mulher arranjada de qualquer jeito, sem um pingo de cuidado, só no ímpeto de conseguir ser melhor visto. Maldita já com insídia urdida, há tempo, felina perigosa, fixara o olhar... há tempo, fitou numa noite e conseguiu, o plano foi sucedido. Numa oportunidade que até hoje confunde, arrancou-lhe boa parte do patrimônio, foi-se com outro, manchou sua fé pública, fora rebaixado, perdera o salário e teve de pedir serviço a quem quer que fosse, qualquer que fosse. A casa vendeu. Foi-se o salário que trouxe comodidade. Também não teve mais paz. Preocupações tantas, e a avalanche dos impostos vinha, perigando soterrá-lo e tirar seu ar. Eis que má notícia veio, essa em geral: morto o vigia do porto. De noite que soube, noutro dia, cedinho, prestou-se ao chefe, com todo porte conseguido do tempo do serviço militar. Boa impressão causou. Contratado estava, já para aquela noite. Alguém acostumado à escritórios, poltronas, papéis, canetas, letras, vista pela janela..., pense essa mudança: da manhã para a noite, do jardim para o cemitério, do céu para o inferno. Descobriu medos que nem desconfiava, mesmo assim, seguiu, sem dar mínima brecha para que soubessem, ali a coragem eram requisito. Reprimia isso, moía a agonia das horas escuras, da voz do vento, das sombras vivas, do murmúrio de lá do infinito. Essa convivência durava algumas semanas, Desconfiava de tudo, como bom segurança, no entanto seu olhos cerravam para o nada. O que ali guardava, afinal? De quem? Ou o quê? Beira da praia, beira de chão, alto, de porto. Parecia tão próximo de si, baixado o rosto, os olhos bem abertos, via as ondas indo e voltando, como se quisesse pegar algo, como se chamasse alguém. Parecia tão próximo...
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ñ.r.