A assombração falante
A assombração falante (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
Naquela noite de lua cheia, José Rosa, funcionário da prefeitura da cidade, vagava rapidamente à procura de algum abrigo para passar a noite. O motivo era a quebra do veículo em que estava, no lugar ermo do município. O celular não tinha sinal e, por ser um lugar bem distante, as casas, sítios ou fazendas estavam separadas umas das outras por uma longa distância.
Passava sobre alguns mata-burros, pontes, porteiras. Enxergava luzes bem distantes e mal conseguia chegar até lá, pois perdia-se pelo caminho. Cães que latiam ao longe punham medo nele. Poderiam ser grandes, ferozes, mordedores e até mesmo assassinos. Lembrou-se de que por aquelas bandas, no mês passado, alguém afirmou ter visto duas onças perto da mata. O medo lhe tocava os ombros, mas tinha que encontrar algum lugar. A noite quente ia esfriando aos poucos. Era mês de março, duas semanas após o carnaval da cidade. Sim, quaresma. Época do lobisomem, mula sem a cabeça, saci e outros fantasmas das noites de lua cheia. Ele, enfim, não demonstrava ter medo quando estava perto de amigos e principalmente de colegas do trabalho. Ali, naquela distância, sem celular e sem a lanterna, estava difícil.
Andava pela noite afora na esperança de encontrar alguma pousada. Via ao longe os faróis de algum veículo, mas logo se apagaram e a noite lhe veio como companheira, a escuridão, a solidão e, sobretudo, o medo de estar ali sozinho.
Pensou várias vezes na família. No filho que estava na faculdade, na filha que estava na casa da avó e na esposa que lecionava no colégio estadual. Ele, ali, naquela calada da noite, só, sem nada, nem mesmo a pequena garrafinha de água. Estava com sede, com fome e o corpo doía, pois precisava da cama quente, do banho e do jantar para refazer as forças para o novo cotidiano. Precisa, também, de encontrar algum lugar para ligar para o mecânico da prefeitura e providenciar o socorro. Lembrou-se de era sexta-feira. No sábado, os funcionários não trabalhavam e somente estava no almoxarifado apenas os vigias e muitas das vezes eles não atendiam ao celular.
Parava por alguns momentos. Olhava à volta e não via nada. Nem mesmo luzes próximas. Lá, ao pé da serra, uma luzinha bem fraca. A distância era de mais ou menos uns doze quilômetros. Os pés doíam, pois, as botas estavam apertadas. No compasso das dores, a barriga, também, dava sinais de fome. O ronco da barriga era enorme e ele imaginava a sopinha de macarrão com frango feita pela esposa. O copo de vinho após o jantar. O doce de goiaba com queijo. Enfim, dos abraços e beijos da esposa e o carinho dos filhos.
Animava-se mais uma vez e tinha a certeza de que encontraria algum lar que sentisse em casa. Que lhe oferece o banho, o jantar e a cama para descansar daquela grande jornada. Olhava no relógio e os minutos iam passando. Já não eram vinte horas mais e sim vinte e uma horas. Não encontrava nenhum abrigo. A esta altura, mesmo que encontrasse algum lugar, o vigia não atenderia ao telefone, pois se acomodava no pátio e jamais iria para a sala de administração. Tinha ele, horror de ficar perto de uma mesa.
Continuou a vagar pela estrada na esperança de que algum caminhão do transporte de leite passe por aquela região, mas era em vão. A essa hora, não tinha ninguém, nem mesmo algum retireiro de leite passaria ali. O lugar era o verdadeiro deserto: sem casa e sem algum sinal de telefone.
Caminhando por mais alguns quilômetros, logo após o mata-burro, na clareira ao lado, sentou-se. Estava resolvido a ficar por ali. Não tinha ninguém. Estava com sede, com fome, com cansaço e muito sono. Poderia ajeitar-se ali mesmo. Com a pouca luz da tela do aparelho celular, ele encontraria alguma madeira. O capim seco do pasto roçado daria o combustível para iniciar o pequeno foguinho. Ele o acenderia dentro da estrada, pois tinha medo de que alguma faísca caísse no pasto e provocasse incêndio. Fogo por perto é muito bom e ajuda a espantar algum bicho feroz, principalmente o casal de onças que o amigo lhe contou na semana anterior. Cobras, caranguejos, sapos e aranhas não gostam de fogo. Eles têm medo e com o calor, poderei me aquecer. Assim que amanhecer, vou procurar algum lugar e tentar chegar ao socorro. Assim o fez. Ligeiramente, arranjou a madeira. O capim foi fácil e logo o fogo estava acesso. Procurou mais lenha e ali deixou de reserva. Lembrou-se de que o isqueiro era o vigia, que na noite anterior escondeu-se dentro da camionete com medo da chuva forte que caiu na cidade. Foi sorte sua, pois sem querer, colocou o isqueiro no bolso e este lhe serviu para iniciar as primeiras chamas. Como a jornada foi difícil, arranjou algum capim fazendo-o de travesseiro. O paletó serviu de colcha e logo já roncava, pois o sono lhe furtara rapidamente.
A madrugada prometia muito. Estava quente, mas por volta das duas horas da manhã, o friozinho apertara, fazendo com que ele acordasse meio assustado. Aumentando as chamas da fogueira, contornou a situação e logo estava novamente roncando. Passaram alguns minutos e novamente ele acordava. Alimentava novamente a fogueira e estendendo isto a quase todo quarto de hora.
Em um determinado momento, ele acordou e escutou alguma coisa falando por perto. Pensou ser sonho, mas logo acordou de vez e foi se levantando aos poucos. Olhou para perto do mata-burro e viu algo branco flutuando pela estrada. Pensou ser mais uma vez sonho, porém a realidade foi outra, pois no momento em que a entidade flutuava, o som de conversa era ouvido. Dialogavam em duas vozes. O som da conversa era forte, na mesma onda acústica de filmes de terror.
Ele, porém, não pensou duas vezes. Saiu correndo para outra direção. Foi correndo tanto que quase caiu em outro pontilhão. Correu com todas as forças até que chegou a algum lugar descampado. Olhou à volta e viu a construção em forma de pirâmide. Era, sim, a pequena igreja da comunidade. Ali, abrigou-se no nicho da porta e esperou o dia amanhecer. Logo que amanheceu, viu a presença de algum retireiro de leite que por ali passava. Chamou-o e lhe contou todo o acontecimento. Este, porém, com voz de peão, disse-lhe que no local onde ele tentou passar a noite, em épocas de lua cheia e principalmente às sextas-feiras da quaresma, aparecia a assombração. Muitas pessoas já tinham visto e deram-lhe o nome de “Assombração falante”.