A Besta
Olhe com cautela naquela direção, isso..... consegue ver? Lá está Nuliel, agachado no topo da colina maior, com as patas fendidas fincadas na terra ressequida e as orbitas faiscantes voltadas para o horizonte distante. Ele esta sempre alerta, soberano, nada escapa à sua diligência. A pele de Nuliel, este é um de seus nomes, tem um aspecto repugnantemente enrugado, cor de peixe morto, com poros salientes e uma cobertura gosmenta que parece cobrir toda a sua superfície. Para um infeliz, incauto, observador, a certa distância, ele pode ser confundido com uma estátua de pedra lodosa há muito abandonada no topo de um monte, mas não se engane.
Tanto a colina maior, onde a besta costuma ficar, como todas as outras que a circundam, possuem um aspecto de desolação terrível, são repletas de pedregulhos pontiagudos a perder de vista, arbustos e ramos de aparência grotesca, com galhos secos contorcidos e sem folhas. Mas o solo é o mais curioso de todos, da terra escura e torrada brotam à superfície, sem cessar, vermes em abundância, como se o solo, uma vez morto, continuasse com sua lenta decomposição eterna. Além dos vermes, das fissuras do solo se filtra uma fumaça densa e escura que deixa tudo nebuloso e o ar carrega aquele odor doce e pungente de morte fresca que jamais enfraquece, que não se dispersa.
As áreas verdes que circundam os domínios de Nuliel estão sempre em constante contração, se espremendo na direção contraria e fugindo da região maligna e putrefata que só aumenta como uma gota de óleo negro em tecido branco. Tudo que é vivo, senti e pressenti o fedor e a crueldade da besta. Não obstante, animais e pessoas acabam por adentrar as cadeias de colinas e vales de Nuliel, e por isso um grande sortimento de ossos e carcaças completas podem ser vistos na imensa vastidão que é o lar da besta. No topo de algumas colinas e por vezes na parte mais profunda e escura de um vale entre colinas, é possível encontrar crânios com a face descarnada voltado para o céu tempestuoso. Os dentes, quase sempre, dispostos numa espécie de sorriso cínico bizarro, como se a caveira ironizasse o próprio destino.
Os pássaros e os outros seres voadores, traídos pelo próprio instinto de sobrevivência, caem instantaneamente mortos e com o ventre fervilhando de vermes assim que adentram a região aérea dos domínios de Nuliel e devido a isso é possível notar que a chuva de corpos de pássaros é constante. Para as criaturas que adentram a região andando ou rastejando a situação é diferente. Se não forem apanhados diretamente por Nuliel, para aplacar sua fome por sangue e carne, enquanto exploram a localidade, acabam vagando pelas cadeias labirínticas de colinas sem nunca encontrar um resquício de verde que poderia apontar para uma saída daquele mundo cinza.
Enquanto se locomovem pelas colinas e vales, eles definham rapidamente. Não por fome ou sede, se deterioram bem antes disso. É o lugar e a presença de Nuliel que provocam isso. Os seres humanos mais vulneráveis, logo no inicio; quando percebem que adentraram numa grande arapuca, costumam cair de joelhos e gritar a plenos pulmões, desorientados, pedindo socorro, infelizmente os gritos morrem em meio a fumaça e ao fedor bem antes de atravessarem os domínios da besta. Os mais resilientes se põe a correr com determinação, mas quando percebem que estão dando pernadas em círculos, já se encontram terrivelmente esgotados para qualquer outra alternativa de fuga. Num caso ou no outro, não importa, o fim é o mesmo. Caem mortos em cima da terra torrada e escura. Quando isso acontece, Nuliel fica mais forte e gordo e a chama de seus olhos fica mais viva.
Do instante em que comecei a escrever essas palavras até agora, o tamanho de Nuliel já não é o mesmo. Ele ainda continua lá agachado e observando da colina mais alta os mortos-vivos que ainda vagam pela sua morada, enquanto ao seu redor pássaros continuam a se derramar.
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Fragmentos:
(É dito que daqui há alguns milhares de anos, tudo no mundo e no universo fará parte dos domínios de Nuliel. Que enquanto a vida cobra preço exorbitante para sua continuidade, Nuliel e suas garras, deslizam sobre tudo e todos, sem nada cobrar, como água de tempestade, que corre livre e arteira, ladeira abaixo).
(Aonde quer que a Besta resolva repousar sua atenção; as cores esmorecem e a matéria perece....).