O filme secreto

Lucas segurava a xícara com as duas mãos, e enquanto o vapor de seu conteúdo subia formando halos no ar, seus olhos faiscavam mirando o crepúsculo pelo grande janelão da lanchonete. Era como se ele refletisse dolorosamente sobre algum assunto importante. Junior, seu melhor amigo, percebeu que o outro estava longe em pensamento e temeu que o amigo voltasse atrás no que havia prometido a ele: apresentar-lhe o que chamou de sessão exclusivíssima.

Ambos são aficionados pelo cinema de horror, especialmente o segmento que muitos classificam como Trash/gore e certo dia Lucas contou a Junior sobre a tal sessão exclusiva enquanto os dois estavam em intervalo de aula, na escola. Na verdade, Lucas falou muito pouco e parecia nervoso, pálido, quando o fez, como se não devesse. Ele disse a Junior que só poderia levá-lo lá uma vez, e que durante o percurso ou a exibição da película não dissesse palavra, ou emitisse ruído e jamais, jamais tentasse dirigir a palavra aos outros espectadores presentes na exibição. Naquele momento Junior riu na cara dele, mas quando percebeu que o amigo continuava a olhá-lo bem sério, ficou realmente curioso e muito excitado com a tal película e apenas concordou com tudo.

—Que espécie de filme é? Arriscou Junior.

—Lá você descobrirá. Lucas se limitou em dizer.

Ficou acertado, naquele dia, que Junior não tocasse no assunto até a data marcada para a exibição.

O dia havia finalmente chegado, e ali estavam os dois. Sentados um de frente para o outro. Lucas ainda com aquela cara estranha, como se tentasse resolver uma complicada equação matemática mentalmente.

Junior resolveu quebrar o gelo: —Amigo, está tudo bem?

Lucas estremeceu de corpo inteiro e quase derrubou o café que tomava. Olhou para o amigo e sorriu: — Estou bem, relaxe. Olhou para o relógio de pulso e concluiu: — O carro deve chegar em dois minutos, não esqueça de tudo que combinamos, certo? O outro assentiu.

Lucas havia tomada apenas um café preto e Junior um refrigerante. Eles pagaram a conta e saíram para rua. A noite já havia caído e uma brisa leve se insinuava, talvez chovesse mais tarde, pensou Junior. Havia pouco movimento na rua, quando de repente um Fiat preto parou do outro lado da rua, em frente ao banco. Assim que Lucas avistou o veículo disse ao amigo com voz sumida: — Vamos!

Os dois chegaram perto do carro e aguardaram, mas os vidros não baixaram. Foi apenas quando ouviram o carro sendo destravado que Lucas insinuou para que entrassem. Ambos se acomodaram atrás.

Quando Junior olhou para o motorista teve que reprimir um riso com todas as suas forças. O sujeito era um homenzarrão, com uma careca reluzente, estava de smoking preto e com uma máscara dourada de coelho que escondia sua identidade, deixando amostra apenas os brilhos dos seus olhos e o topo da cabeça. O homem olhava para eles através do retrovisor quando estendeu a mão direita para trás, nela havia duas vendas pretas bem grossas.

— Eu peço humildemente que os cavalheiros coloquem essas vendas para que possamos prosseguir viagem, sim? A voz era grave, mas cortes.

Os rapazes obedeceram de imediato. Assim que colocaram a venda o carro entrou em movimento. Junior sentiu quando eles saíram da avenida principal e entraram na rua Carolina talvez? Não havia como ter certeza, mas o rapaz se divertiu ao imaginar que pudesse descobrir o destino da viagem apenas usando de seus outros sentidos. O silencio no carro era sepulcral, Junior até que estava bem-humorado e curioso com tudo aquilo, mas a respiração forte de Lucas ao seu lado o deixou um pouco apreensivo. Por que o amigo transparecia ansiedade? Ele mesmo disse, na ocasião que falou da película, que participou de vinte e seis sessões exclusivíssimas.

Eles sentiram o carro fazer muitas curvas, subir terrenos inclinados e por duas vezes descer ladeiras íngremes. Após uns vinte minutos de viagem, deduziu Junior, o carro finalmente parou e eles ouviram o motorista sair e fechar a porta, após isso nada mais aconteceu. Junior virou o rosto na direção que estava o amigo, mas a venda era bem grossa e por isso penumbras ou vislumbres não transpassavam por ela. Eles esperaram mais um pouco e talvez dois minutos tenham se passado quando a porta ao lado de Lucas finalmente foi aberta:

— Eu peço que saiam do veículo um tocando no ombro do outro. Eu os guiarei até o destino. Era a voz do motorista que falava.

Lucas saiu primeiro e Junior foi ao seu encalço com a mão segurando seu ombro. O motorista com sua bizarra máscara de coelho segurou a mão de Lucas e os três começaram a andar com o motorista guiando os dois.

Junior que estava excitadíssimo, prestava atenção a todos os detalhes que podia. Enquanto caminhavam, ouvia forte o canto dos grilos, a noite já corria solta. Não muito longe de onde eles estavam foi possível ouvir um uivo solitário. Área rural então? Pensou Junior enquanto apertava o ombro do amigo. Eles caminharam em linha reta, fizeram uma curva e o terreno abaixo dos seus pês mudou. Antes da curva parecia terra batida, mas agora era, sem dúvida, cimento. Andaram mais um pouco e estacaram. O som de uma porta se abrindo pode ser captado e eles foram imbuídos a entraram em um recinto abafado. A mudança de ares era clara. Talvez fosse um quartinho fechado, não tinha como ter certeza.

A voz firme do motorista cortou todo aquele ar abafado: — Podem tirar as vendas agora!

Assim que se livraram do tecido sob os olhos puderam ver que estavam em um quartinho minúsculo. O chão era de cimento batido e das paredes quase não se diferenciava. Do teto pendia uma única lâmpada que espalhava uma luz amarela, mortiça, em todo o recinto. Havia uma mesinha no canto esquerdo a eles e uma figura magra, de smoking e com uma terrível máscara suína que parecia sorrir, estava sentado, como um recepcionista do lugar.

O motorista segurava em cada uma das mãos uma máscara, para que os rapazes escolhessem. Lucas se manifestou primeiro e acabou ficando com a máscara de bobo da corte, era prateada e com detalhes em dourado. Para Junior restou a outra, que simulava um sol dourado com um uma expressão de espanto.

Depois que estavam todos mascarados, o recepcionista se levantou e abriu a única outra porta que havia no quartinho. Com um gesto galante, os incitou a prosseguir. Estavam agora em um corredor, igualmente de cimento batido e mal iluminado, o lugar exalava um odor azedo, mofado, comum aos ambientes pouco agraciados com a luz solar.

O motorista ia na frente, o som dos passos dos três ecoavam morbidamente pelo corredor. Os amigos se entreolharam por um instante e prosseguiram. Chegaram a uma outra porta. Era de ferro e pintada de verde. O motorista a abriu e afastou o corpo para que eles passassem. Deveriam entrar sozinhos.

Estavam agora na sala de exibição, havia quatro fileiras de cadeiras dispostas uma atrás da outra. Já estavam todas ocupadas com exceção de duas, que para o desgosto de Junior, se localizavam na fileira da frente. Ao adentrarem no ambiente, foram poucas as máscaras que viraram na direção deles. Havia uma moça com um vestido púrpura bem justo, cabelos ruivos caídos nos ombros, e uma terrível máscara de bode que cobria sua identidade. Todos estavam muito bem-vestidos e joias e relógios brilhantes cintilavam de quase todos os braços e pescoços dos presentes. Ninguém dirigia a palavra a outrem, se limitavam a sutis inclinações de pescoço. Os dois se sentaram ao lado de uma figura bem assustadora. Pelos braços e mãos enrugadíssimos deu para perceber que era uma senhora de bastante idade, ela trajava um vestido verde de seda e uma horrível máscara de satã vermelha que parecia se contorcer em êxtase.

Na parede a frente de todos, um telão gigante estava ligado exibindo apenas chuvisco. Junior dobrou o pescoço na direção de Lucas, mas o amigo não retribuiu, e continuou olhando para a tela que ainda não exibia nada. O coração de Junior martelava contra o peito, estava excitado, mas também receoso, talvez por todo aquele ritual de mistério.

A lâmpada do recinto foi perdendo sua intensidade, como se alguém graduasse o nível de luz, até a sala ficar numa faixa bem sutil, penumbrosa. Nesse instante, o filme iniciou. Junior estremeceu na sua cadeira.

Na tela, havia uma moça amarrada em uma cama, estava nua, era loira, pele branca e parecia muito jovem, provavelmente menor de idade. A cabeça dela se mexia molemente, saliva escorria dos cantos da boca aberta e os olhos ora giravam nas orbitas, ora semicerravam-se. Ela estava dopada, concluiu Junior. A pessoa que estava filmando primeiro focou bem no rosto da moça e depois foi descendo a câmera. Passou pelos seios, pelos bicos delicados e rosados, pousou alguns instantes no ventre leitoso e finalizou com um close da vagina, pueril e com cabelos crespos aloirados. Nesse instante, júnior crispou os lábios e franziu a testa por baixo da máscara, que filme estranho, pensou ele.

Na sala de exibição era possível ouvir a respiração dos espectadores, tamanho era o silencio.

De repente, a pessoa por trás da câmera se afastou da moça e pareceu fixar a câmera em algum lugar para que ficasse imóvel e voltada para aquela cena grotesca. Após isso, um homem, com um avental branco e uma máscara simples que tapava apenas os olhos apareceu em cena. Ele caminhou na direção da moça e quando a faca que ele portava faiscou na tela, Junior sentiu um tremor percorrer seu corpo. O homem parou ao lado da moça amarrada e começou a passar a lâmina pelo seu corpo.

Ao toque do metal, a moça se contorceu fracamente e começou a gemer. O sujeito passou a faca pelo rosto, desceu pelo pescoço, sem cortar parte alguma, apenas roçando a lâmina. Quando ele chegou na altura dos seios, contornou o bico esquerdo com a ponta da faca e de supetão apertou-o e puxou-o para cima. Ela começou a gemer mais alto e se contorcer o máximo que podia, estava em agonia. Lágrimas fartas começaram a rolar pela sua face. Junior quis fechar os olhos, mas não conseguiu, ele sabia o que viria a seguir. O homem, de um só golpe, arrancou o mamilo esquerdo da garota. Ele agarrou o bico e jogou no chão, ao lado da cama.

A moça se debatia convulsivamente, o som que ela emitia era horrível aos ouvidos. No lugar que havia um bico agora havia um mar vermelho de carne. O homem olhou na direção da câmera e depois baixou a cabeça na ferida aberta e lambeu. Ele lambia e gemia de prazer. Enquanto sua língua passeava na amputação do seio esquerdo, ele puxou o mamilo direito e num som golpe o arrancou fora também.

O sangue transbordava pelo corpo da moça e pintava de escarlate o lençol da cama. A figura encapuzada não se deu ao trabalho de lamber o corte do seio direito. Ele olhou mais uma vez para câmera, seu avental estava ensanguentado, e um sorrisinho se formou no canto de seus lábios, como se dissesse: estão vendo que belo trabalho?

O peito de Junior, àquela altura, doía, suas mãos estavam frias e pegajosas. Seria possível que aquele fosse um filme de morte real? Parecia real, mas não podia ser. A existência de tal material nunca foi comprovada. Mas ele sentia no seu âmago que aquilo não era uma encenação.

O açougueiro voltou sua atenção para a garota novamente. Ainda estava viva, mas os sons que emitia eram mais frascos. Ele se aproximou, puxou os cabelos dela para trás deixando seu pescoço bem visível. A lâmina subiu e quando desceu abriu uma fenda no pescoço da moça. Era possível ver pele, músculos e ossos. Ela soltou um rápido som gorgolejante e o sangue esguichou com pressão, banhou seu corpo nu e atingiu homem encapuzado também. Ele abriu a boca e sorveu um pouco do sangue que espirrava.

Após a carnificina, ele largou a faca no chão e saiu, lentamente, do campo de visão da câmera. Era possível ver apenas a pobre vítima, amarrada e degolada, ainda se esvaziando de seu sangue. O golpe foi tão violento que quase separou a cabeça do restante do corpo. Seus olhos estavam abertos, vidrados, eram castanhos. Saía sangue dos olhos, nariz e da boca escancarada.

De repente o som de uma porta se abrindo pôde ser ouvido, mas quem quer que fosse, estava fora do campo de visão da câmera, ainda. Os passos iam ficando mais nítidos conforme a figura se aproximava. Subitamente, ela entrou em cena. Era outro homem, de compleição magra. Estava completamente nu e com o pênis ereto. Usava uma máscara bizarra de gato. Se aproximava do corpo lentamente.

O estômago de Junior embrulhou e ele teve que engolir de volta um vomito que esteve prestes a escapar, ele não gostava de coisas relacionadas a estupro ou necrofilia, mesmo que não fossem reais, como ele esperava que aquilo não fosse.

Voltando ao vídeo, o homem nu se estendeu sobre o corpo morto e o penetrou em uma só estocada violenta. Quando ele já estava dentro dela, fechou suas duas mãos no pescoço aberto da moça e a começou a estocar ritmicamente com bastante força. O vídeo finalizou com um close dos olhos abertos dela, enquanto ao fundo era possível ouvir o som violento do choque entre os dois corpos e os gemidos ferozes da figura hedionda com mascara felina.

Após a exibição, todos permaneceram sentados sem dizer palavra ou emitir qualquer ruído. Junior estava quase em estado de choque. A única porta da sala, de repente, se abriu e uma figura de smoking entrou e levou um dos espectadores embora. A mesma figura voltou uns três minutos depois e acompanhou mais uma pessoa para fora. Junior concluiu que toda a diligência era para manter a privacidade dos envolvidos. Os únicos que saíram juntos foram ele e Lucas, por último. O mesmo motorista os deixou, voltaram vendados, exatamente onde os havia apanhado.

(**)

Várias dias haviam se passado e mesmo que Junior se encontrasse com Lucas todos os dias, pois estudavam na mesma escola, terceiro ano do ensino médio, não tocavam no assunto. Era como se aquele episódio não houvesse acontecido.

Mas Junior estava perturbado, quando chegou em casa, no fatídico dia da exibição, ele foi direto para o notebook pesquisar os filmes e curtas de baixo orçamento para tentar encontrar aquele que havia assistido. Ele tinha que estar entre as produções gore. Ele pesquisou naquele dia e nas duas semanas seguintes; gore decadente, gore de alto e baixo orçamento, mas não encontrou nada remotamente semelhante e realístico naquele nível.

Na terceira semana após aquela experiência, Junior não aguentou. Interpelou o amigo na hora do intervalo:

Os dois comiam hambúrgueres numa mesa aos fundos da cantina.

— Qual é a produtora daquela coisa hedionda que assistimos Lucas? Não encontrei em canto algum e nós dois conhecemos quase tudo já produzido nesse sentido.

Junior estava com olheiras e claramente perturbado. Parecia que não dormia há dias. Lucas fitou o amigo com grande censura, olhou para um lado e depois para o outro, para atestar que ninguém os ouvia e falou quase sussurrando:

— Júnior, você não vai encontrar aquilo na internet e muito menos de graça, pelo amor de Deus homem. O que você assistiu custou R$100 mil para ser providenciado.

Junior arregalou os olhos. Lucas continuou:

— É isso mesmo camarada, meus parabéns, você foi agraciado. Não precisou pagar nenhum centavo, não é? Junior não disse nada, estava petrificado.

— Agora, para o seu bem e para o meu também, nunca mais toque nesse assunto, você compreende? O outro anuiu e os dois seguiram para a sala de aula. O intervalo havia acabado.

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 05/06/2022
Código do texto: T7531110
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