Lamúria
Naquela furna mora uma criatura que outrora já foi humana, mas que por desventura foi amaldiçoada a nunca mais saber a satisfação de contemplar o nascer do sol.
O som de seu lamento rivaliza com tempestades em volume e pode ser ouvido a quilômetros de distância.
Em uma noite tendenciosa, sentiu a presença de alguém próximo ao seu habitat e, atendendo seu instinto insaciável por comida, rapidamente segue o aroma até perceber uma pequena silhueta com sua visão térmica.
Vagorosamente se aproxima de sua vítima para que pudesse pegá-la desprevenida, mas percebe a dificuldade da garota ao se movimentar, usando as suas mãos como guia.
Embora a besta estivesse faminta, decidiu acompanhar seus passos com atenção, até que uma hora sua presença foi notada pela jovem que indagou calmamente "Quem está aí?"
Ao ser flagrado, o monstro evidência sua identidade, mas percebe que a menina não esboça sequer uma reação, ainda permanecia calma, mesmo diante de algo horrendo.
Seus olhos empurrados profundamente em suas órbitas se cravaram nos dela alarmados, concluindo que a mesma não pudesse vislumbrar sua característica perturbadora.
A jovem de cabelo acobreado orientada por sua respiração, se aproxima morosamente de seu predador com as mãos erguidas direcionando-a, até que enfim, sente seu corpo esquelético.
Seus olhos arregalam de preocupação, não pelo temor de estar na presença do desconhecido, mas na ingenuidade de imaginar que talvez este não se alimentasse há muito tempo.
Ela desliza uma de suas mãos dentro de sua bolsa, ao qual em seguida, retira um pedaço de pão e estende o alimento à criatura "Por favor, pegue isto." Diz sem obter uma resposta, apenas nota mãos gélidas e enormes como garras tomando o sustento de sua palma delicada.
Mesmo na eventualidade de que pudesse ser sacrificada, seu ato gentil enterneceu o coração da criatura, ainda que o agrado não saciaria sua fome, o ser abominoso aceita o singelo ato de bondade e, em troca decide conduzi-la para um lugar seguro.
Cuidadosamente a ruiva é guiada pela floreste num caminho sinuoso, porém, consternada por não saber para onde estava indo.
Próximos de um possível acampamento, seus passos por entre as folhagens chamou a atenção dos civis, que se posicionaram de forma atenta.
O ferino ameaçado, se mantém furtivo atrás das árvores, somente observando atentamente o caminhar da criança, assegurando que segue na mesma direção até ser vista por eles, contudo, no meio do caminho ela tropeça em um amontoado de gravetos e cai de joelhos no chão. Aceleradamente a criatura vai em direção a pequena, para assentir que estivesse bem.
Ele a acolhe em seus braços lhe trazendo conforto e segurança.
Alguns homens saem dentre as árvores e os cercam com tochas, revelando o físico odioso da besta, lhes causando uma mistura de apavoro e fúria.
Num ato impensado, eles o detêm arremessando-o abruptamente ao chão com um nocaute.
O pai da menina acelera-se em direção a sua amada primogênita e, num ato súbito retira ela de perto do monstro que a circundava.
Constatando que a deformidade estava começando a recobrar a consciência, eles a incendiaram com suas tochas, garantindo que a mesma queimasse até seu perecimento.
Sua vida sendo roubada pelo abraço caloroso da morte, sincronizado com o uivar da aberração que agonizava de dor num cortejo fúnebre.
O ardor das chamas aquecera o rosto da miúda e o aulido de seu companheiro estremeceu seu coração impotente, como se estivesse sendo apunhalado inúmeras vezes. Uma lágrima escorre por seu rosto inexpressivo ao perceber o silêncio e, esperançosa ela dita com a voz tremula para um corpo sem vida:
— Ei, você está vendo? Começou a chover, vai ficar tudo bem! — As lágrimas começaram a inundar sua face, seguido por um aperto no peito.