Peter vê coisas estranhas
(Wilde Green)
Meu pai tentou encher de fantasia
E enfeitar as coisas que eu via
Mas aqueles anjos agora já se foram
Depois que eu cresci
(Roberto Carlos – Traumas)
A porta se abriu tímida, deixando a luz baça do exterior adentrar o quarto completamente escuro. Algumas noites um menininho era quem passava por aquela porta em direção a um encontro muito desejado. Ele entrava, dizia "olá", não enxergava sequer o chão que pisava, tinha a impressão que o interior daquele quarto não tinha paredes nem teto. Era como se fosse um quarto infinito.
Peter era o nome desse menino. E Peter estava certo sobre o quarto.
Ele entrava ali todas as noites, num sonho repetido. Segundos depois, um cone de luz iluminava uma figura. Às vezes era uma mulher, ela tinha uma voz doce e um sorriso amoroso, gostava de pegar Peter no colo; às vezes era um homem, sua voz era muito grossa e a expressão um tanto carregada, como se tivesse raiva de alguma coisa. Apesar disso, tinha um jeito protetor e parecia se preocupar com o menino.
As duas figuras eram anjos.
***
A verdade é uma coisa singular. Todos temos a pretensão de possuí-la; de dela sermos senhores. Acreditamos haver nisso alguma coisa de nobre ou até mesmo de sagrado. Fugir à verdade é geralmente visto como covardia, fraqueza.
Uma palavra curta, do tamanho de um mundo. O que é verdadeiro para você, caro leitor?
A verdade é aquilo que está fora de nós e determina nossa vida, ao contrário da fantasia, filha de nossos devaneios? Ou é aquilo que reside em nosso íntimo e confere significado ao mundo? Ela é minha? É tua? De todos nós? Ou de ninguém?
Mas e se a grande verdade for algo insuportável à mente humana? Que seria de nós se víssemos sua face medonha? Sucumbiríamos à loucura? Ou correríamos desesperados para os braços de nossas mães, qual um garotinho assustado?
Eu sei, você tem sua resposta. Eu também tinha uma.
Vou lhes contar uma história.
***
Há muito tempo, a Ilha era um lugar sem mal. Ninguém conhecia seus limites, mas sabiam que era uma ilha porque... Porque sempre souberam disso.
O centro da ilha era também o centro de todos os lugares onde se podia ir. Lá havia um vilarejo, chamava-se "Colina das Casas", porque era o único lugar do mundo onde havia casas. Neste pequeno vilarejo viviam somente crianças e um punhado de idosos, que os vigiavam e aconselhavam. As crianças brincavam o tempo todo, entre si e com os animais, todos eles dóceis. Os velhinhos ficavam o dia inteiro sentados em bancos, tocos ou degraus nas esquinas das ruas ou nos lugares que as crianças costumavam visitar. Exibiam um sorriso doce e contavam histórias doces onde um bem sempre vencia um mal; onde heróis virtuosos e belos derrotavam para sempre monstros grotescos e pérfidos.
Os velhinhos estavam sempre sentados nos mesmos lugares, fizesse chuva ou sol. Ninguém nunca viu um deles em pé. Era como se fossem apenas um elemento da paisagem.
***
Dentre as histórias que os velhinhos contavam estava a do "Cemitério dos Monstros", um lugar que as crianças deveriam visitar, pois lá veriam os túmulos de todos os monstros vencidos pelos heróis. Mula-sem-Cabeça, Bicho Papão, Velho do Saco, o Monstro de Debaixo da Cama, o Monstro do Escuro, o Lobisomem, todos estavam lá, enterrados para sempre, selados por pesadas lápides de concreto. O mundo era um lugar livre; o medo, uma coisa do passado.
Outra história contada por eles era a da “Casa do Final da Rua”, um lugar que se devia evitar. Era uma casa velha, num terreno lamacento e de mato alto. Normalmente as crianças não se interessavam por essa história. E também não se sentiam atraídas por aquele lugar. E assim devia ser.
Quando começavam a perguntar a respeito da casa, algo de muito terrível estava prestes a acontecer. Algo tenebroso e difícil de lidar. Sobretudo para os anjos com os quais a criança costumava sonhar. Cada criança da ilha sonhava todas as noites com um mesmo anjo; às vezes, com dois.
***
A primeira vez que aconteceu era um dia como qualquer outro na vida de Peter. Ele despertou ansioso por mais um dia de brincadeiras. Levantou da cama, abriu a janela e respirou fundo, deixando o ar fresco e puro da ilha invadir seus pulmões, como um sopro de vida.
Peter sempre fazia isto. Peter amava respirar.
Os pássaros cantavam lá fora e o céu estava azul, sem uma nuvem sequer. A revoada de papagaios cruzava o céu em sua rotina pendular das florestas do leste aos penhascos do oeste. Cavalos brancos corriam livres nas planícies do norte da ilha, à espera de crianças para brincar e, vindo do sul, podia-se ouvir o quebrar das ondas na praia, um barulho de fundo que acalmava, como se fosse o próprio coração do mundo.
Uma terra sem mal. Até aquela manhã.
Na cozinha do chalé de Peter, sobre a mesa, estava o café da manhã que ele amava. Era assim todos os dias. As coisas boas da vida simplesmente estavam lá, elas apareciam.
Pelo menos, esta é a história que os velhinhos contavam em seus banquinhos.
Peter saiu porta afora, ansioso por brincadeiras. Ele queria ir ver os golfinhos, mas seus amigos tinham outra ideia. Uma discussão acalorada se iniciou e um velhinho teve que intervir:
- Ei, crianças, por que não fazem as duas coisas? Há tempo para tudo. O que importa é se divertir sempre.
Os velhinhos tinham uma autoridade humilde, de voz doce, que sempre impelia as crianças à obediência.
Enquanto isso, a chuva desceu, seu barulho tamborilando nas folhas secas mudavam a música do mundo, imprimiam um ritmo mais intenso e a discussão se dissipou com as crianças decidindo brincar de pique-pega ali mesmo.
Mas quando elas saíram de perto, o velhinho se dirigiu apenas a Peter:
- Ei, Peter, por que você não tenta se impôr diante de seus colegas? – disse com uma voz irônica e um sorriso cínico.
A chuva apertou e o velho olhava Peter com um olhar perverso. Subitamente o homem começou a derreter na água da chuva, os contornos dos lábios e olhos ganhando uma forma distorcida e pavorosa, que se esvaíam em direção ao chão até que todo seu corpo escorresse por entre as pedras da rua. O menino arregalou os olhos e sentiu seu coração disparar. Voltou-se na direção das outras crianças, mas elas estavam entretidas em suas brincadeiras e nada viram.
Peter ficou desesperado e correu para longe. Naquele dia, ele se deparou com a primeira estranheza de seu mundo.
E foi a primeira vez que falou com ele, aquele que se esconde dentro das coisas.
***
Certa vez, era uma noite sem nuvens, mas ventava muito. Peter olhava pela janela, nenhuma criança na rua, apenas o velhinho sentado na esquina. A poeira da rua se juntava às folhas secas no chão perfazendo formas aleatórias no ar. A luz era pouca, alguns postes estavam queimados e outros piscavam intermitentes emitindo ruído de estática, anunciando um fim próximo para mais uma luz. (E a chegada de mais uma escuridão)
Peter olhava pela janela, estava com medo. Não do escuro, dos velhinhos ou de alguma criatura. Apenas medo, um sentimento em forma de lago, parado, viscoso e sem uma origem visível, diferente de um rio, cuja água é culpa da nascente.
Era uma noite estrelada. Peter gostava de observar o céu noturno, acreditava que era de lá que vinha o ar, mas naquela noite um pensamento soturno visitou sua imaginação e a meia-lua no céu de repente pareceu o olho de um imenso dragão negro o observando e aguardando o momento certo de devorá-lo. Achou ter visto o dragão piscar.
Baixou os olhos, aturdido. Dali em diante, nunca mais contemplou as estrelas.
Olhou então para a rua. Estava deserta a não ser pelo velhinho sentado em seu toco na esquina. Peter também não queria pensar nessas figuras, lembrava de quando a chuva derreteu um deles o fazendo escorrer por entre as pedras. Tomado por uma imaginação sombria, ele agora temia que o vento pulverizasse o velho numa infinidade de grãos como faria a uma estátua de areia. Era estranho demais, aqueles em quem ele sempre confiou, de repente se mostraram falhos, vulneráveis a algo maior, invisível... inexorável. Que se esconde dentro das coisas.
Mas nada aconteceu ao velho. Peter, porém, não devia ter olhado para as folhas secas que o vento levantava.
Elas bailavam no ar como fadinhas alegres e Peter achou ter ouvido uma música divertida. Até que elas começaram a formar o rosto de um adulto. Ele lembrava daquele rosto, a princípio parecia o seu próprio, mas depois ia se convertendo em alguma coisa parecida com o rosto de um daqueles anjos do quarto escuro. Por um lapso de tempo, porém, lembrou daquela figura como outro ser diferente de um anjo.
O rosto de folhas sorriu perverso para o menino e disparou uma pergunta com voz maléfica:
- PEEEETEEERRR... - a voz sussurrou ao vento – alguma vez já pensou... de onde você veio? E para onde vai?
O garoto deu um grito desesperado de horror e bateu com força a janela na cara da noite. Seu coração pulsava com força e pela primeira vez, o ar ficou preso em seu peito, sem entrar nem sair. A sensação era um pesadelo. Ele teve uma vertigem e apagou.
***
O mundo de Peter estava encolhendo. Já não olhava mais as estrelas. Não conversava com os velhinhos. E não olhava mais as folhas que caíam das árvores. A ilha não era mais um lugar seguro, não era mais um lugar para brincar na rua, correr pelos campos ou tomar banho nas cachoeiras e rios. O medo estava solto, ganhando forma em cada pequeno elemento do mundo. Por dias ele se trancou no escuro. E escuro também ficou seu coração.
As crianças deram por falta dele e bateram repetidas vezes na porta de sua casa, dia após dia. Sem resposta, iam embora. Com o tempo, as tentativas foram se tornando escassas. E Peter foi sendo esquecido.
Então o medo lhe trouxe a solidão. Mas esta lhe trouxe a compreensão de algo fundamental.
- Me tire daqui – suplicou aos prantos ao anjo-mulher em seu cone de luz no sonho daquela noite. – Me leva com você para o seu mundo, além do quarto escuro.
O anjo olhou mortificado para a situação miserável do menino e uma expressão de angústia roubou-lhe o eterno semblante de paz.
- Eu não posso, meu amor... Me perdoe. Todos nós, mais cedo ou mais tarde, precisamos nos defrontar com ele. E aceitar sua vontade implacável.
***
Na manhã seguinte, Peter decidiu-se ir ao Cemitério dos Monstros. Se aquele lugar existia para dissipar o medo, então era o lugar certo para ir naquele momento.
Pôs-se, então, a andar pela trilha enlameada que conduzia ao cemitério. Um vento persistente remexia a copa das árvores e o sol se escondia atrás de nuvens sépias.
Percebeu que o tempo estava mudando e que nunca vira o céu daquela cor. Olhou para cima, as nuvens roubavam totalmente o brilho do sol, transformando-o num círculo branco, sem alma, como um olho sem íris. Ao seu redor, árvores feneciam, suas folhas eram devoradas avidamente pela lama imunda do chão, sua vida voltando ao coração da Terra.
Aquelas nuvens lhe transmitiam angústia e o sentimento de que estava perdido em meio a um grande perigo. Ele olhava para o alto e perdia-se na estranheza daquele céu incomum quando subitamente um baque aconteceu próximo dali. Algo moveu-se com rapidez por entre árvores, desaparecendo no pântano adiante. Peter arregalou os olhos e de repente sentiu como se tivesse pegado um caminho de horrores, sua respiração sumiu e o ar ficou preso no peito. Sentiu-se dramaticamente sozinho, diante de algo terrível.
A temperatura começou a mudar, um ar frio deslizou perverso pelas costas, como a capa de um vampiro. A neblina densa avançava em sinistros novelos vindos do pântano.
O céu azul havia desaparecido por completo, restando apenas um mundo frio em tons de cinza. O medo sussurrou-lhe no coração como nunca antes.
Ele olhou na direção das lápides. A tampa de um dos túmulos estava completamente destruída. Na lápide estava escrito: o Fantasma do Tempo.
O que jazia ali, escapou. E Peter se deu conta que sua vida lentamente lhe escapava.
***
Ele gritou pelo anjo-mulher no qual tanto confiava, mas ela não apareceu.
Em lugar disso, apenas uma sombra se esgueirando por entre as árvores e outra vez aquela mesma voz perversa que um dia viu sair do rosto de folhas na janela de seu chalé:
- PEEEEETER... – disse a voz, confundindo-se com o ruído do vento gélido.
Seguiu-se uma risada debochada. Alguém estava se divertindo com o sofrimento do menino.
***
Peter correu desesperado até seu chalé e lá permaneceu por dias. A solidão e a tristeza faziam as paredes de sua casa parecerem as de um castelo de gigante, o mundo se torna ciclópico quando um menino se torna minúsculo diante de seus medos. E Peter se defrontava com a criatura mais poderosa e implacável de todos os universos possíveis e imagináveis.
À noite, os anjos apareciam em seus cones de luz nos sonhos. Falavam com Peter, mas o menino permanecia em silêncio.
Então ele se lembrou da Casa do Final da Rua.
***
Peter pensou na casa pelos dias que se seguiram. Quanto mais pensava, mais sentia uma vontade incontrolável de ir até ela. As brincadeiras com os amiguinhos não eram mais tão divertidas, correr com os cavalos, nadar com os golfinhos e desejar voar como os papagaios eram vontades que murcharam até a completa secura, como pétalas sobre uma lápide.
Algo estava mudando rapidamente dentro dele. O menino queria entender, queria controlar. Queria reverter. Mas era ínfimo diante daquela força. O Fantasma do Tempo era implacável e agora Peter não precisava de suas manifestações mais extravagantes para percebê-lo. A criatura estava em tudo: nas folhas secas caindo das árvores, nas rachaduras das casas, nos animais que, agora ele sabia, não desapareciam misteriosamente indo para as florestas do sul, como os velhinhos contavam, mas sim eram tragados pelo monstro do tempo, aquele que se esconde dentro das coisas.
Pela primeira vez Peter entendeu que nem mesmo de sua vida ele era dono. Estava condenado a mudar, a crescer, mesmo que não quisesse. Não precisava deixar a ilha que tanto amava para que ela deixasse seu coração. Estava acontecendo.
Um vento frio e intenso tocava a pele do menino e parecia querer leva-lo como as folhas mortas das árvores que todos os dias eram perdidas para o inexorável pender da vida.
PEEEETER...
O menino não respondeu. Deixou para sempre seu chalé, a porta esquecida aberta. Pôs-se a caminhar até o fim da rua, olhou pela primeira e última vez a casa derradeira. Abriu o pesado portão enferrujado e barulhento. Nenhuma criança o viu ou nele pensou. Atravessou o quintal de mato alto, a porta da casa estava levemente aberta e atrás dela a escuridão eterna o aguardava complacente.
Peter pensou uma última vez, ainda tinha uma escolha. Mas logo decidiu. Deu um passo à frente e deixou-se engolfar pela eterna escuridão. Preferia ela ao Fantasma do Tempo.
Ele nunca cresceu. Quando o tempo reclamou seu governo, o menino deixou a infância para mergulhar na eternidade, único lar onde até o tempo jaz.
***
O casal aguardava ansioso na sala de espera do hospital. Era madrugada e o médico os havia chamado com certa urgência. Já imaginavam do que se tratava, mas como qualquer pai e qualquer mãe cujo filho está há muitos anos em coma, recusavam-se a antecipar qualquer certeza. Esgotariam todas as esperanças possíveis.
- Senhor e Senhora Pantoja – disse a dor vestida de branco e com o estetoscópio pendurado no pescoço – sinto muito... Fizemos o possível.