Inverno Eterno - CLTS 19
“Quando se é jovem, tem-se um magnífico despertar,
com a pele fresca, o olhar aceso, os cabelos brilhantes de seiva.
Quando se envelhece, o despertar é lastimável.
O olhar amortecido, a face congestionada e fofa,
a boca pastosa, os cabelos sem vida e a barba emaranhada
emprestam à fisionomia um aspecto velho, exausto, acabado.”
Guy de Maupassant, Encontro.
1983. Setembro. 05:25hs. Jardim das Folhas Secas. Bosque dos Querubins.
O dia ainda não convencera a noite a repousar, de modo que uma claridade acinzentada invadia janelas abertas, espreguiçando-se em débeis sombras ao longo do assoalho e emprestando ao lugar uma aparência tumular.
Seus olhos mortiços vagaram por entre objetos infamiliares quando ele invadiu a casa, o corpo macilento avançando em passos arrastados através da porta escancarada. Atravessou uma antiquada, mas aconchegante sala de estar, onde crostas de poeira denegriam arcaicos móveis e grotescas manchas de bolor corrompiam o delicado papel de parede de tom pastel, denunciando a deprimente desolação na qual o recinto se recolhera. Não sabia ao certo o que fazer, ainda assim pegou a escada à esquerda para o primeiro andar, este também assombrado pelos deprimentes estigmas do abandono.
Parou no patamar, exausto, passando o lugar em revista. Estava uma desordem, a fuga fora às pressas.
Emudecido, contemplou a sinistra teia de aranha engrinaldando o cadáver da Amiguinha estirado no chão — a boneca tinha noventa centímetros de altura e naquele momento parecia uma criança que fora jogada de cabeça no piso de madeira, deixando escorrer o sangue negro de uma xícara de café curiosamente emborcada no carpete. Voltou a andar, desvencilhando-se dela e passando por um televisor Philco Predicta há tanto tempo ligado que seus componentes pifaram, restando-lhe um ciclópico olhar leitoso a observar roupas corroídas, mobiliário aleijados por cupins, tapetes despedaçados e utensílios espalhados.
Prosseguiu, por um decrépito corredor à esquerda, alcançando um portentoso aposento guarnecido de sacada enrodilhada por corrimões de ferro fundido. Saiu para ela, sentindo respingos de garoa salpicar-lhe o rosto à medida que hordas cadavéricas de folhas em decomposição redemoinhavam na rua lá embaixo — folhas despencadas de salgueiros caquéticos encravados aos dois lados da calçada, suas raízes disformes à mostra, como guardiões tombados pelo implacável peso do tempo. Não se podia ver além, entretanto, nos arredores as casas musguentas eram como sepulturas, enlutecidas e ausentes de vida, lambidas pela finíssima chuva que se desprendia do céu num fragoroso pranto.
Era deprimente.
Ergueu a cabeça, o peito convulsionando numa comoção terrível, as pernas fraquejando. Talvez seus olhos marejassem e sua boca ensaiasse um dramático choro, se fosse qualquer outra criatura. Ao invés disso, cerrou os dentes, murmurando num tom moribundo:
— Por que a desolação me acerca com tão repugnante silêncio? Por que permitiu me roubarem o espírito, deixando para trás somente este corpo vazio e asqueroso, servente apenas à dor e sofrimento?
Sua garganta amortecida tossiu pesadamente e teve de se apoiar no corrimão para não desabar.
— Por que essa vida de sangue e miserável solidão? Por que não cessar tão profana existência, aniquilando esse semblante lastimável que aqui se apresenta?
Arriou sobre as pernas e em seguida ao chão, as mãos trêmulas incapazes de se manter apoiadas no corrimão. Gemendo, ofegou em súplica:
— Não vê que até o céu… desmanchando-se neste véu alvacento… pranteia minha dor? — Aferrou os braços ao peito, tentando evitar um súbito acesso de tosse; pouco adiantou, pois este veio com força, fazendo-o tremer drasticamente, lançando-o ao chão, onde, com o rosto escorado no assoalho, balbuciou: — Por quantos mais serei obrigado a me arrastar nas trevas da noite e contemplar a deplorável degradação do que um dia foi o meu lar? Por quanto mais servirei de abrigo à agonia e à mortas lembranças?
Foram suas últimas palavras, antes que o negro mar do desfalecimento lhe engolfasse os sentidos.
E suas vestes estavam cheias de lama e cheiravam a carniça — carniça humana.
***
1980. Junho. Jardim das Folhas Secas. Rua dos Salgueiros.
Ele era médico, benquisto clínico geral no C.A.U.S. Ferrez Leme. Um janota, diriam, se lhe avaliassem pela aparência e sorriso fácil. Nascera e crescera na cidade; todos o adoravam social e profissionalmente. Morava no entremeio da Rua dos Salgueiros, uma extensão ampla de paralelepípedos cujas donas-de-casa paravam de varrer suas calçadas para saudá-lo e crianças o rodeavam esperançosos em ganhar sorrisos através de suas anedotas. A precisão era quase cirúrgica. Às 17:05hs se encaminhava pela rua, os exuberantes salgueiros que a nomeavam estacados às margens lhe fazendo sombra à passagem, o jaleco dobrado sobre o ombro evidenciando o término de turno, porém frisando sua prontidão. Um Clark Kent regressando para casa, atento para tornar-se o Super-Homem se necessário.
Amanda, sua esposa. Cabelos negros, rosto gracioso e voz doce; vestidos de algodão lhe caíam encantadoramente no corpo esbelto. Formoso.
Ela não lhe saía da cabeça, nutria-lhe um amor profundo, beatificante — e no trajeto final até a casa, ao compasso que falava com um e outro, a imaginava na cozinha, pés nus no chão, ela adorava isso, preparando o café, o aroma esfumaçando no ar em ondas balsâmicas, o rádio-relógio sobre a geladeira tocando My Girl dos The Temptations, seduzindo-a a passinhos e rodopios. Diversas vezes chegará pé ante pé, mesmo sabendo que ela o esperava ansiosamente, e ficara a observando, sorrindo sozinho, encantado com a imaculada beleza da esposa.
Filhos?
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco…
Nenhum.
Não os tinham. O amor era recíproco, intrínseco, entretanto sabia que não tê-los fazia-os usufruir apenas parcialmente de uma imensa felicidade. Isso os entristecia, mais à Amanda.
Serafine, uma bonequinha de bochechas rosadas, olhos grandes e expressivos, nascera dois anos antes, porém com um mês de vida Amanda a matara — Amanda dizia isso, que a matara, embora tudo não passasse de um trágico acidente. Ele não estava; ela dera banho na filha e deitara-se na cama do casal para dar-lhe de mamar. Um lapso. Adormecera e fatalmente deitara sobre o pedacinho de gente, sufocando-a. Um período difícil se seguiu, do qual Amanda quase enlouquecera, sucumbindo constantemente ao peso das lembranças e sufocantes episódios de choro. Ao fim, o bonito jardim cultivado à frente da casa a resgatara, não permitindo que os ramos da depressão lhe esmagassem o coração murcho de tristeza — e assim decidiram não mais ter filhos e que viveriam somente um para o outro.
Aquela fora uma tarde comum, transcorrida com Amanda e Ferrez à mesa da cozinha conversando e comendo pãezinhos de queijo e, à chegada da noite, indo sentarem-se à entrada da casa para socializar e assistir a criançada brincar alucinada pela rua. Tudo estava na mais perfeita ordem.
***
Ocorrera na madrugada.
As batidas foram violentas e imprimiam urgência.
— Doutor-doutor-doutor!
Ferrez acordou num sobressalto, pulando da cama e identificando que as batidas e a voz vinham da porta da frente. 02:45hs o letreiro vermelho do relógio de cabeceira pontuava — hora esta que lhe marcaria o cérebro como ferro em brasa.
— Doutor-o-prefeito-está-morrendo! — sentenciou o homem pálido e resfolegante, ainda em trajes de dormir, quando Ferrez atendeu à porta. Era um dos empregados do prefeito Patrício Benevides, que por ocasião morava do outro lado da rua.
Instruindo o empregado a comunicar o C.A.U.S. o quanto antes, Ferrez se muniu de pequena valise de primeiros-socorros e acorreu ao dignitário, atravessando a rua que já se enchia de ruídos e luzes que se acendiam aqui e ali, entrando na residência e subindo uma escada à esquerda de dois em dois degraus, seguindo por um corredor e chegando à entrada do quarto de casal, onde a esposa do prefeito jazia em pé de camisola, o rosto contorcido de pavor. Não lhe fizera perguntas; já estivera ali outras várias vezes, afinal o miocárdio de Patrício Benevides era recordista em infartos — passara por três nos últimos anos e ainda assim ele se negava à revascularização —, fora que o dignitário era senhor de duas úlceras estomacais e talvez mais uma em formação, todas herdadas em sua mocidade gastronômica desenfreada e que certamente conspiravam contra ele.
O prefeito se encontrava em decúbito dorsal na cama, um robe púrpura aberto no peito — estranhamente a mão direita agarrada à mandíbula retesada e a outra efetuando tapinhas espasmódicos no peito, os olhos apertados numa expressão de intensa dor.
Infarto. Aspirinas, metade de uma. Talvez uma RCP, anuiu Ferrez, mobilizando-se prontamente. Contudo, mal dera um passo, Patrício passou a tossir pesadamente, sacudindo o peito, suando demasiado e arregalando os olhos numa expressão de frenético desespero, a mão esquerda crispada agarrando a garganta como que para impedir que algo subisse por ela.
Diligente, Ferrez aventou uma massagem pulmonar, em vão: a tosse continuou e em questão de segundos uma bola de sangue enegrecido saltou da boca do prefeito num gêiser lento, enegrecido e coagulado, vazando-lhe entre os dedos e esguichando como mangueira de jardim, conseguinte desequilibrando-o e o derrubando da cama, violentamente sua cabeça indo contra o chão, causando-lhe visível trauma e desencadeando intensa convulsão.
Ferrez tentou o quanto pôde, contudo, quando o grito agônico da ambulância surgiu ao longe rasgando o ar noturno como um sinistro bisturi, ele soube que chegariam meramente para levar o cadáver de Patrício. Posteriormente descobriu-se que uma de suas úlceras estourara, cujas dores desencadearam uma parada cardíaca, e ambas talvez pudessem ser contornadas, caso a queda não houvesse ocorrido.
***
Dois dias depois, 21:00hs.
O denso volume de “A Comédia Humana”, jazia aberto na mesma página havia dez minutos: sentado na cama, profundamente deprimido, Ferrez se esforçava para ser absorvido pela narrativa de “A Missa do Ateu”, porém não conseguia se concentrar.
Sentia-se estranhamente apreensivo, envolto numa antipática melancolia que lhe comprimia o peito, e por mais que tentasse, os momentos finais de Patrício Benevides volteavam em sua mente, costuradas em loop constante ao desagradável episódio ocorrido no velório do dignitário, realizado naquela tarde na capela do cemitério Pax Aetérnam.
***
A cidade estava em luto.
Ferrez chegara à capela às três da tarde — preferira ir sozinho, pois Serafine fora velada ali dois anos antes e avaliara ser melhor ausentar Amanda de tão angustiante lembrança.
Àquela hora o velório já havia sido reservado ao círculo de amigos mais íntimos da família e ele alcançou a nave sem quaisquer transtornos — bem diferente de minutos atrás, que dezenas de pessoas se espremiam para prestar condolências ao benquisto prefeito.
Não há pior reunião familiar que a ocasionada por morte, pensou taciturno, encaminhando-se através da nave principal, avistando os parentes do falecido dispostos numa espécie de ferradura negra em torno do caixão, próximo ao altar — ao alto, um dramático cristo moribundo jazia preso à cruz de seu calvário.
A Sra. Benevides sustentava-se a pulso na extremidade direita, seguida por quatro filhas e um único filho, um jovem magricela e de olhar evasivo. Giuliano, o garoto problema, que, embora a família negasse, sofria de leves transtornos, e que após o estranho desaparecimento de seu primo Washington Flamer — protagonista de um dos mais terríveis casos de assassinato de Bosque dos Querubins —, tivera seus distúrbios acentuados, evoluindo para drásticas reações psicóticas, sendo às vezes acometido por surtos de perseguição e vozes em sua cabeça.
O doutor prestou condolências aos familiares, visivelmente impactado com a perda, chegando ao jovem lhe estendendo a mão espalmada; no entanto, o jovem deixou-o com a mão estendida no ar, olhando-o firme e de lábios apertados. Um silêncio absurdo, tenso, repercutiu na calmaria fúnebre da capela, fazendo Ferrez estremecer ante comportamento tão impróprio. Todos os fitavam.
Percebendo que Giuliano não remendaria seu gesto — talvez ainda esteja bastante abalado com o aconteceu, pensou —, Ferrez resolveu abraçá-lo, no que o jovem não o impediu, porém virou o rosto, resignado, murmurando ao ouvido do médico:
— Ele era meu pai, meu amigo. Por que deixou que morresse?
Embora sentisse o ímpeto de confortá-lo, Ferrez resolveu não prolongar o mal-entendido, seguiu o percurso da ferradura, prestando condolências aos demais familiares. Enfim caminhou para o leito mortuário do falecido.
E foi nesse momento que o inesperado aconteceu.
Ao lado do caixão, Ferrez oferecia suas últimas palavras ao prefeito, quando Giuliano berrou:
— Ele está se mexendo! Está vivo! Meu pai está vivo! — e então correu para Ferrez, desvairado, empurrando-o e fazendo-o esbarrar no caixão, que vacilou sobre seu cavalete de sustentação.
E como em câmera lenta, o caixão gangorreou e tombou para o chão, fazendo o cadáver rolar num baque surdo ao quicar no carpete carmesim da nave — caiu voltado para cima, os olhos involuntariamente abertos fitando Ferrez, um líquido fétido vazando-lhe da boca e nariz.
— Você queria enterrar ele vivo! — bradava Giuliano.
Rapidamente familiares intervieram, cientes da instabilidade do rapaz, entretanto, somente após muito esforço o dominaram, afastando-o para fora da igreja — o que não o impediu de vociferar:
— A morte te seguirá… acredite, doutor!
***
Desde então Ferrez jamais conseguira dormir sem ter pesadelos com os olhos mortos de Patrício Benevides — olhos que deveriam permanecer fechados para sempre, mas que se abriram uma última vez mais para assombrá-lo.
***
Tal incidente alimentou o imaginário popular por meses, mas aos poucos caíra no esquecimento, levando a população à sua calmaria cotidiana.
***
Naquele sábado fazia muito sol.
Ferrez resolvera preencher o dia de folga levantando-se cedo para ajudar Amanda com o jardim frontal da casa; no entanto, ele estava sozinho, pois a esposa saíra minutos antes, indo à Quitanda Cheiro Verde e também à Bern & Frances Restaurações buscar um relógio deixado para reparo.
— Bom dia, doutor — saudou uma voz pouco familiar.
Abaixado no lado interno do muro e, parando com o tesourão, Ferrez ergueu-se para ver quem era.
— Bom dia — respondeu, secando o súbito suor na gola da camisa, tentando disfarçar o nervosismo.
Giuliano Benevides estava parado na calçada, mãos enfiadas no bolso, o semblante corado e pacífico. Após o incidente, ninguém mais o vira na cidade e diziam tê-lo enviado a Belo Horizonte, sendo mantido sob vigilância numa propriedade afastada.
— Sei que está ocupado, só quero me desculpar.
— Não há razões para isso, foi um mal-entendido — disse educadamente, tencionando abreviar a conversa.
Incrivelmente a Rua Dos Salgueiros estava vazia, em pleno sábado; entretanto, Ferrez não entendia como Giuliano chegara ali, burlando todas as medidas de segurança. Por instantes, estendeu o olhar à casa dos Benevides do outro lado da rua, pensando se os familiares sabiam do jovem — ou se talvez o houvessem trazido às escondidas, mantendo-o na residência, pensando que ele melhorara, mas que na verdade fora uma artimanha para espreitar Ferrez.
—Dizem coisas sobre mim, mas estão enganados. Por favor, permita-me sentir em seu toque que não há mais ressentimento entre nós — insistiu o jovem, enfatizando o apelo aproximando-se do portão, retirando a mão direita do bolso e estendendo-a para Ferrez.
Ferrez pensou centenas de evasivas para não retribuir o gesto, mas era de índole amigável e não concordou com tal desprezo, por fim soltando o tesourão, retirando as luvas e indo cumprimentar o rapaz.
Giuliano abriu o portão, apertando firme a mão do médico, transmitindo-lhe segurança.
Contudo.
A traição fora súbita e indefensável: retirando agilmente a mão esquerda do bolso, Giuliano agarrou uma pontuda lâmina atrás das costas e a cravou num único golpe no peito, acertando o coração de Ferrez — um movimento tão assertivo que parecia ter sido ensaiado exaustivamente para que não houvesse erros.
Numa fração de segundos.
Ferrez cambaleou para trás, os olhos incrédulos estatelados, as mãos banhadas em sangue levadas à vista num gesto agônico de irreal realidade. Logo perdeu o equilíbrio, caindo de costas no gramado, forcejando para agarrar o cabo da lâmina, afônico, desprovido de forças para arrancá-la (mesmo sabendo que não deveria fazer isso), sentindo o corpo tremer e um líquido sufocante subir-lhe pela garganta.
Exaurido, ainda teve tempo de observar seu lunático algoz se aproximar, abaixar e sussurrar:
— Agora você poderá cuidar melhor do meu pai.
Em seguida levantou-se e saiu, deixando para trás o médico expelindo golfadas de sangue — a quentura do sol se amainando e as cores ao seu redor perdendo gradativamente a tonalidade, ficando borradas e obscurecidas.
Foi uma morte silenciosa e breve.
***
Semanas posteriores à morte. 17:05hs.
Amanda se encontrava à mesa da cozinha, absorvendo o calor da xícara de café entre as mãos. Contrariando a insistência de familiares e amigos, resolvera permanecer sozinha na casa.
Aquela era a hora mais terrível de todas, pois vinha sobrecarregada de tamanha dor e angústia que a lançava num enervante cárcere depressivo, tão pungente quanto pregos quentes cravando-se lentamente no seu coração, forçando-a à mais infeliz das recordações:
Seu sorriso morrendo ao abrir o portão e deparar com Ferrez estendido no jardim;
Seu grito alarmante e as frutas e legumes sendo jogadas no chão ao sair correndo;
A constatação da sangrenta mancha no peito do marido;
Ela chacoalhando-o num impulso insano, esperançosa que tudo não passasse de uma alucinação ou quem sabe de uma brincadeira boba — uma maldita brincadeira de mal gosto.
Mas não era: o corpo estava flácido, sem vida.
Então vinha a aniquiladora convicção da perda, e ela desatando a chorar histericamente, clamando por socorro, abraçando-se desconsolada ao cadáver inerte do marido.
Tomou um gole do café agora já frio e foi à pia, onde copos sujos e pratos com restos de comida ressecada denunciavam sua pouca alimentação. Sua vida se embotara numa fase de inflexível desânimo, transformando-a numa marionete constante do pessimismo e servente assídua da solidão — nada mais a aprazia e qualquer menção ao mundo exterior transmitia-lhe aflição e ondas de choro.
Prisioneira do próprio lar, evitava sair, tratando com indiferença àqueles que a procuravam para ajudá-la — estagnada, cortara contato com tudo e todos, obtendo alegria apenas nos raros momentos em que a desolação lhe afrouxava os grilhões e, revendo fotos ou revisitando mentalmente bons momentos que passara ao lado do marido, podia se dar ao luxo de chorar de alegria.
***
1982. 30 de Abril. Mogi Das Cruzes. Biblioteca Pública Municipal. 16:26hs.
“… O cadáver precisava ser lavado e preparado corretamente, pois, mesmo com um sepultamento adequado, uma pessoa que tivesse sofrido morte violenta poderia retornar como um vampiro”. Relatos da Bulgária.
“… A maioria com nomes modernos, também aparecem como Naschtooter ou ‘matador-noturno’ e Neuntoter ou ‘matador-das-nove’. Porém o mais conhecido era o Nachtzehrer ou o ‘devastador-noturno’. E ambos eram um morto-vivo — uma pessoa recém-falecida que retorna do túmulo para atacar os vivos”. Relatos da Alemanha.
“… Às vezes os mortos retornados se comportavam, pelo menos superficialmente, como um vampiro ou um ‘violador de túmulos’ e geralmente eram tratados de maneira semelhante aos vampiros da Europa oriental, com uma estaca ou decapitação”. Relatos da Escandinávia.
“… O termo aswang era usado para descrever um conjunto de animais análogos aos vampiros, violadores de túmulos, lobisomens e bruxas, que na literatura folclórica poderiam ser encontradas em qualquer uma dessas classificações”. Relatos das Filipinas.
“… Os vampiros, quando vistos, apareciam para as pessoas que lhes eram mais próximas. Em alguns casos, especialmente entre os ciganos e os eslavos, os vampiros retornavam para manter relações sexuais com suas amantes ou ex-esposas”. Relatos vampíricos.
***
O delegado estivera na biblioteca boa parte do dia e agora, após conferir suas anotações, fechara com um baque a envelhecida Enciclopédia dos Mortos-Vivos. Olhou dela para o amontoado de bitucas de cigarros no cinzeiro e pensou na loucura que estavam dizendo sobre um bairro de Bosque dos Querubins — e pensou nos boatos.
Boatos.
Uma mulher que, após a trágica morte do marido, enlouquecera e à noite passara a frequentar o cemitério para dormir no aconchego da frialdade da lápide do defunto!
Boatos.
Famílias que amanheciam em suas casas com parte de seus corpos devorados e sem uma gota de sangue.
Boatos.
Pessoas que sumiam e apareciam simplesmente mortas — mortas e drenadas.
Boatos.
No bairro Jardim das Folhas Secas, indivíduos aterrorizados abandonando suas casas.
Eram os boatos que aconteciam naquela cidade e que ninguém tinha coragem de confirmar.
***
1982. 13 de janeiro. 02:30hs.
A chuva despencara torrencialmente opressiva durante as últimas duas horas.
Hordas de ameaçadores relâmpagos violavam impetuosamente as entranhas do céu, enquanto agourentos trovões ressoavam com ferocidade sobrenatural, impregnando de uma ansiedade sinistra o pacato Jardim das Folhas Secas. Minutos antes, um raio caíra, derrubando a rede elétrica, imergindo as ruas e casas em completa escuridão.
***
Amanda se contorcia sob pálidos lençóis empapados de suor, delirando devido à alta febre, balbuciando numa agonia inconsciente — às escuras, a chuva e o vento invadiam o cômodo através das janelas abertas, as cortinas de cetim esvoaçando no ar como um desbotado e sombrio fantasma.
As noites ao relento do ar tétrico do cemitério Pax Aetérnam lhe prejudicaram gravemente a saúde, e talvez ela sucumbisse à morte se não recebesse cuidados.
***
Nesse estranho estágio de vertigem, sob o fino véu de delirante realidade, Amanda ouviu passos furtivos no quarto. Sonolenta, vislumbrou alguém próximo à janela, o vento lhe balançando os cabelos desgrenhados, as mãos ao longo do corpo, o fedor acre de suas roupas infectas se alastrando pelo ar. Estava demasiado escuro e, se houvesse realmente alguém ali, ela não o reconheceria.
Entretanto, aquele cheiro… aquele cheiro já lhe era tão familiar que…
O delírio de uma mente perturbada pela febre, apenas isso, pensou, fechando os olhos.
Mas não era delírio.
De súbito, a chuva se intensificou. Relâmpagos e trovões se engalfinharam num bailado tenebroso, bradando céu adentro numa cólera devastadora, como se o reino dos céus berrasse em protesto àquela inumana criação!
À fúria devastadora do temporal, Amanda se viu forçada a reabrir os olhos, entrevendo, entre o bruxulear intimidante dos raios filtrados pela janela, aquela figura funesta estacada ao pé da cama.
E…
Seus olhos deveriam expressar horror, mas não expressaram;
Sua boca deveria gritar em repulsa, mas não gritou;
Seu corpo deveria tremer de pavor, mas não tremeu;
Sua garganta deveria estertorar em resposta ao definhamento de seus sentidos, mas não o fez.
Em vez disso, Amanda Leme, entorpecida pela loucura de sua febre debilitante, se ergueu para a cabeceira, sentando-se, abrindo os braços e ensaiando um trêmulo sorriso, convidando aquele ser nefasto ao calor de seus frios braços.
Ferrez Leme retornara das entranhas da terra para novamente se refugiar nos braços de sua amada, ela precisava de cuidados — e foi assim que vidas passaram a sucumbir para suprir sua hedionda necessidade de sangue.
***
Após aquela madrugada, Jardim das Folhas Secas jamais tivera paz..
Nos primeiros dias de sua profana existência, o ser maldito fora possesso por uma fome terrível, que o impelia a invadir furtivamente residências para aniquilar famílias inteiras, lhes consumindo não só o sangue, mas também partes de seus corpos.
Ávido, matava sem pudor ou preferência e a única pista que deixava eram os restos de suas vítimas. Ninguém jamais sobrevivera para descrever a horribilidade de sua face cadavérica ou os meios pelos quais executava seus repugnantes genocídios, lhe conferindo em pouco tempo os mais diversos nomes e indescritíveis temores.
Praga Noturna. Saqueador de Almas. Consorte da Morte. Lavrador de Corpos.
Demônio das Lamentações. Portador da Peste. Devorador da Noite.
Seus nomes eram muitos, mas seu significado se resumia a uma única palavra: morte.
Assim, com o arrastar dos meses, os moradores de Jardim das Flores Secas foram restringindo seus hábitos à luz do dia, de modo que a penumbra noturna se avultando no céu lhes era como um toque de recolher — e no interior de suas residências a garganta da noite era modorrenta, repleta de orações, apreensão e medo.
Por outro lado, as autoridades locais faziam o possível para restituir a ordem, — comunicando sua alarmante situação às capitais e solicitando reforço militar e científico para tentar esclarecer o que acontecia na cidade. No entanto, estavam de mãos atadas, pois o único meio de comprovar a existência do "Lavrador de Corpos" era seu crescente número de vítimas.
***
E enquanto o medo e o terror proliferavam pela vizinhança, todas as noites a criatura retornava ao seu cálido apogeu, onde, febricitante, Amanda ansiosamente o esperava — minuto a minuto, o embrião da loucura devorava-lhe a sanidade, fazendo-a, nos seus delírios mais intensos, nunca se perguntar como e por que o marido retornava, pois a insânia a iludia com a certeza de que ele jamais a deixara. Assim, no decorrer do dia, ela permanecia deitada na cama, fitando o teto com um riso desvairado, ao compasso que seu belo corpo era carcomido pela tuberculose e desnutrição.
***
Nos meses seguintes, o Lavrador de Corpos bateu à porta de suas temerosas vítimas, arrebatando-as, de modo que pouco a pouco o bairro foi se tornando sinistramente deserto — e o cheiro de sangue passara a infectar o ar matutino todos os dias, povoando de angústias e terrores a vida de seus moradores, lastimavelmente os impelindo a abandonar suas casas: ninguém queria mais se arriscar a habitar um bairro assolado por algo tão cruel e desumano.
Entretanto, o horror dos infelizes residentes de Jardim das Folhas Secas era tão crescente que não notaram a sutil mudança no comportamento do Saqueador de Almas.
***
1982. 22 De março. 1h e 13min.
O céu estava límpido e a noite sufocantemente abafada.
Como de costume, a criatura invadiu o quarto através da janela aberta — só que desta vez, antes mesmo de se aproximar da cama, retesou-se num esgar inquieto, apreensivo quanto à mudança que se dera no cômodo: além de não haver qualquer ruído ou movimento proveniente do leito de Amanda, o mormaço noturno intensificava um cheiro peculiar, embalsamando todo o ambiente.
Por um instante, permaneceu a meio caminho da cama, aspirando tal fragrância, cogitando o quão seria agradável senti-la em qualquer outro lugar — contudo, não ali, no santuário de sua amada.
Aos poucos tudo fora se tornando apreensão e, decerto, se houvesse um coração em seu peito, esse se poria a palpitar às marteladas, mas, como não havia, somente seu olhar inquieto denotou a aflição que passara a comprimi-lo. Temeroso ante tão funesta perspectiva, caminhou vacilante ao encontro de Amanda.
E.
Por que ela não abriu os braços para recebê-lo?
Por que não se movia?
Por que não ouvia o som de sua respiração?
O que significava aquele olhar pétreo voltado ao teto e aquele riso frouxo cingindo seus lábios com um quê de loucura?
Atônito, seus olhos mortificados deslizaram pelo corpo inativo da mulher, se comovendo ao notar os contornos de sua compleição raquítica sob o vestido de algodão, e em seguida voltou-os para o rosto dela, que parecia intumescido, suavemente brilhoso, tomado de uma drástica lividez.
Não, você não pode fazer isso. Foi por você que retornei, para estar ao seu lado, murmurou mentalmente.
Então se reclinou para beijá-la, esperançoso que tal iniciativa a despertasse. Tocou levemente em seus lábios, tão inertes e gélidos quanto à lápide de uma sepultura.
— Não, por favor, desperte! — suplicou numa voz engrolada. Um terrível desespero foi lhe possuindo. — Não faça isso comigo. Não! Nãããão! — esganiçou, chorando e sacolejando loucamente o cadáver.
Depois, entorpecido, enterrou o rosto nas mãos espalmadas, ao compasso que suas pernas perdiam as forças e aos poucos seu corpo desabava, até ficar de joelhos ao lado da cama.
— Não. Não. Nãããão! — vociferou, e o berro saiu tão alto que era como se uma legião de demônios usasse sua garganta, fazendo o grito ecoar noite adentro, estremecendo portas e janelas da temerosa vizinhança.
E nessa noite, paradoxalmente, nenhuma morte fora registrada em Jardim das Folhas Secas.
***
Nos taciturnos dias que se seguiram, Ferrez Leme visitou o cadáver de Amanda, contemplando em silêncio a essência de sua beleza evaporar numa lenta decomposição, deploravelmente sufocando a atmosfera do quarto com um tétrico miasma.
Como aquilo era doloroso: a primeira etapa post mortem se iniciara (com a inchação do corpo e a exalação dos gases putrefatos) e ele certamente não suportaria presenciar os tecidos se rompendo e os vermes carniceiros se banqueteando prazerosamente na carne de sua amada.
Foi então que, consternado, (e esperançoso) resolveu abrir e enterrá-la numa cova adjacente à sua no cemitério Pax Aetérnam.
***
Ao abandonar o cemitério naquela noite, seus pensamentos eram nebulosos e confusos, não havendo lugar para quaisquer sentimentos a não ser angústia e desespero.
Em total desalento, durante longas e vazias horas caminhou errante pelo Jardim das Folhas Secas — seu instinto assassino clamando para invadir aquelas casas e saciar sua fome no sangue de qualquer um que por ventura ainda ali restasse, porém, ao mesmo tempo se esquivando da ideia, profundamente comovido com as ternas lembranças de Amanda.
O Lavrador de Corpos e os resquícios de humanidade digladiavam.
Naquele instante de amargor, era como se a fera enlouquecida, que violava casas e se deleitava com os gritos de terror ao matar tão cruelmente, o houvesse abandonado, deixando para trás a carcaça de um homem frágil e de alma dolorida.
— Por que fui arrancado do lamaçal fétido da morte? Por que me incumbiram de disseminar tamanha desgraças à humanidade?
E dessa noite em diante, a criatura-humana passou não só a proferir pragas ao Céu e ao Inferno em busca de respostas, mas também a conviver em constante luta com a vontade-involuntária de sangue — não mais queria servir de ferramenta à proliferação da morte e desolação, ainda que a ânsia sanguinária arraigada à sua maldita existência o compelia a fazê-lo.
Sendo assim, continuou matando, só que em menor número e dando às suas vítimas ao menos o direito de um arrebatamento rápido e indolor.
***
Levou algum tempo para a população perceber o declínio das mortes, porém o estrago fora perpetrado e ninguém mais queria permanecer em Jardim das Folhas Secas, afinal aquele poderia ser apenas um ardil do Lavrador de Corpos para fins ainda mais tenebrosos.
E gradualmente Jardim das Folhas Secas fora minguando e ao longo de poucos meses, a nódoa da negligência denegrira aquele (antes) aprazível lugar, impregnando-o de uma aparência solitária e fantasmagórica.
***
1983. 16 de setembro. 18h e 27min.
Seus mórbidos olhos abriram-se lentamente, desorientados e entorpecidos, vislumbrando na tonalidade cinzenta do cômodo toda a infinidade de temores para qual a realidade o despertava.
Meu Deus, ainda estou vivo, pensou com angústia, conservando o rosto escorado no assoalho, relutante para manter a mente indiferente a todo o dissabor do mundo real. Mas não podia: mesmo seu cérebro putrefato sabia que logo sua maldita condição inumana estaria cobrando tributo pela sua imortalidade.
Fraquejando, estendeu as palmas no assoalho e num solavanco guindou o corpo, sentindo cada músculo proferir injúrias contra ele. Por instantes, sondou sua antiga casa, pensando se talvez seu algoz não fizera o mesmo antes de atravessar a rua e matá-lo.
Saiu.
Taciturno, caminhou pela Rua Dos Salgueiros, indiferente ao som agourento de seus passos em contato com o pavimento molhado, assim como às dezenas de folhas secas que se abatiam mortas ao seu redor.
Vagueou noite adentro, contemplando a fantasmagoria de ruas desérticas, habitadas pelo silêncio da morte e pelas marcas do desamparo, inflamando-lhe a alma de dor e piedade ao ver o comércio local de portas fechadas, calçadas e avenidas fervilhando de pisadas inexistentes e de mudo falatório — o eco do nada, o eco de uma cidade fantasma.
Circundou o malcuidado jardim do coreto, observando flores murchas e bancos de madeira enegrecidos por corrosivos fungos e ávidas trepadeiras, forcejando para não atender à exigência daquele instinto carniceiro — seu corpo, sua abominável existência, implorava por alimento, mas por outro lado sua virtude o repudiava. Entretanto, nos abismos de sua consciência, sabia que o instinto da fera bestial que se apossara do seu corpo o impeliria a enveredar pela noite, caçando gatos, cachorros, ratos e quaisquer outros animais errantes — e, decerto, logo a fera se fartaria de míseras migalhas, partindo para cidades mais prósperas.
A fera da imortalidade era indomável.
***
Decidira ir à sua antiga residência.
Usou a entrada de costume, parando no centro do quarto, atordoado pelo seu cheiro de bolor e pela causticidade de suas lembranças. Foi até a cama, agarrando os lençóis desalinhados e levando-os ao nariz, imaginando sentir longinquamente o olor de Amanda.
Foi nesse instante que uma lúgubre ideia o atingiu com tamanha ferocidade que ele teve de se apoiar na cama, profundamente abalado:
Por que o mesmo não se dera com ela?
Meneou a cabeça, tentando se livrar de tal pensamento — contudo, seu espírito se entusiasmara com a ideia e progressivamente imagens foram se sobrepondo à sua vontade, corrompendo-a, devorando-a, excitando-a a regressar ao dia em que todo aquele caos tivera início.
Recordou de quando despertou na escuridão;
Seu desespero ao constatar onde estava — um caixão, a quase um metro da superfície;
Enterrado vivo;
Suas mãos batendo e arranhando o forro de cetim numa batalha desenfreada e inútil;
Seu fôlego acabando, os ouvidos escutando o ribombo dos trovões e as marteladas da chuva;
A tampa não cedia, as mãos diminuindo o ritmo devido aos lacerantes ferimentos;
A respiração ficando cada vez mais difícil, estrangulada.
A sensação aniquiladora de pânico e repulsa inflamando-lhe os pensamentos…
Então veio a fúria louca daquele instinto inumano, com sua brutal insensibilidade, se apossando de seu corpo e libertando-o daquele cárcere mortuário com extrema facilidade, arrombando o tampo de madeira do caixão e de imediato fazendo uma avalanche de lama e água podre cair sobre seu rosto; mas ainda assim ele continuando, empurrando as fétidas camadas de terra ensopada, abrindo caminho em meio ao lamaçal que lutava para oprimir sua saída… até finalmente emergir da sepultura, despedaçando a lápide que a recobria e gritando para tomar fôlego — como se nascesse das entranhas da terra e berrasse para anunciar sua hedionda existência!
Retornando à realidade do quarto, soltou subitamente o lençol, abandonando a casa às pressas, correndo para o Pax Aetérnam.
O alcançou, se encaminhando diligente à sepultura de Amanda, onde passou a cavar obstinado com as mãos, murmurando, devaneando:
— Espere, vou resgatá-la.
Naquele instante de suprema loucura, imaginava que a esposa poderia ter retornado, só que por alguma razão não se libertara do caixão.
Cavou obstinadamente, encravando seus dedos lânguidos na terra enlameada e jogando seus montículos para o lado, ansiando escutar voz da amada a cada nova camada de terra removida.
Escavou esperançoso até enfim chegar ao deteriorado tampo do caixão, que momentaneamente hesitou em abrir, mas depois o fez, abrindo-o com impaciência — e sem qualquer noção da loucura que estava cometendo, abraçou o cadáver.
— Venha, levante-se, está salva agora — encorajou.
Não houve movimento.
— Venha, não tenha medo.
Ferrez esperou alguns minutos, e nada. Intrigado, levantou e olhou dentro do caixão.
Amanda se encontrava em adiantado estado de decomposição, enormes vermes lamacentos caminhando sobre seu rosto e o consumindo — odientos vermes carniceiros que engordavam a custa da carne de sua amada Amanda!
Inconformado, ele começou a chorar e gritar, esmurrando o cadáver, despedaçando-o e fazendo um cheiro nauseabundo envenenar o ar.
— Por quê, por quê… por quêêêêêêê?! — estrugiu num berro colossal.
***
Horas se passaram, quando enfim deixou a violada cova para trás, açoitado por grossos pingos de chuva. O céu chorava.
Caminhava ao lado do muro do cemitério, quando de algum ponto distante, talvez um rádio abandonado numa das residências, os versos de “How Can You Mend A Broken Heart” o atingiram:
Eu consigo lembrar dos dias mais jovens, quando vivia minha vida
Era tudo que um homem poderia desejar fazer.
Eu nunca conseguia ver o amanhã, mas nunca me contaram sobre o sofrimento.
E como você pode consertar um coração partido?
Como você pode impedir a chuva de cair?
Como você pode impedir o sol de brilhar?
O que faz o mundo girar em círculos?
[...]
Por favor, ajude-me a consertar meu coração partido e deixe-me viver novamente.
Eu ainda posso sentir a brisa que sussurra através das árvores
E as lembranças nebulosas dos dias que se foram.
[...]
Refletiu.
E pela primeira vez após a morte de Amanda, Ferrez ascendeu o rosto ao céu, deixando-o ser golpeado pelas agressivas alfinetadas de chuva — e era como se ela viesse, o banhasse, e, ao escoar, levasse consigo certa parcela de dor.
Ferrez ficou ali parado um bom tempo, sob a torrente que parecia lhe purificar a alma, e por fim lentamente torceu o pescoço, fitando o espaço vazio ao seu lado, suspirando e agradecendo por estar sozinho ali — e saber que continuaria sozinho trilhando seu nefasto…
Inverno Eterno.