SOMBRAS DIÁFANAS - CLTS 19
Uma sombra pairava sobre Gaspar. Olhos estranhos e curiosos sondavam o pequeno vilarejo. As poucas pessoas que ali viviam eram observadas intensamente sem sequer desconfiarem que coisas muito além da sua compreensão em breve iriam cruzar o seu caminho.
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Gaspar era distante de tudo, cercada por altas montanhas e envolvida por uma densa floresta. Não se podia dizer que era o melhor lugar do mundo para viver, mas essa não era uma questão que tirava o sono dos seus moradores. Eles estavam mais preocupados com as ocupações cotidianas de suas vidas simples e sem grandes acontecimentos do que com qualquer outra coisa.
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O inverno havia chegado e quando isso acontecia era muito comum chover o dia inteiro. Na estação das chuvas o mato ficava mais verde e as noites eram bem mais frias. Muitas vezes amanhecia chovendo e a vontade de estender o sono um pouco mais era sempre algo tentador. Foi em uma época assim que estranhos acontecimentos tomaram de assalto o pequeno vilarejo.
Certa noite quando a chuva já tinha expulsado o último caboclo da venda de Mané Gago e as poucas ruas já tinham virado uma poça de lama começaram os estranhos eventos que, semelhantes a uma sombra diáfana, iriam estender suas garras sobre a pequena comunidade.
As horas já estavam bem avançadas e um vento frio e cortante fazia as árvores ao redor de Gaspar desenharem estranhas coreografias. Lamparinas e lampiões forneciam a única iluminação possível para enfrentar a escuridão que envolvia os poucos casebres.
O silêncio da noite era cortado apenas pelo leve gotejamento da chuva ou, eventualmente, pelos barulhos fortuitos de um ou outro animal noturno. Todos em Gaspar dormiam a sono solto quando terríveis gritos quebraram a quietude noturna. Vindos sabe lá de onde passaram a ser ouvidos por todos no pequeno povoado. Gritos que eram ora agudos, ora graves e que, para alguns, soavam como se alguém estivesse sendo rasgado por dentro.
Sons de desespero, que causavam uma desagradável inquietação em quem os ouvia, vagavam por entre os pobres casebres.
Em suas humildes casas os moradores de Gaspar se perguntavam quem seria capaz de gritar daquele jeito tão horrendo.
Ninguém abriu a porta para ir ver a origem daqueles sons horríveis.
Tão repentinamente quanto surgiu os gritos sumiram.
Naquela noite muitos dormiram embrulhados dos pés à cabeça...
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O dia seguinte encontrou os moradores conversando sobre o ocorrido da noite anterior. Houve aqueles que, talvez encorajados pela luz do sol da manhã, acharam que tinha sido algum animal ou então alguma brincadeira de mau gosto de alguém que agora estava rindo escondido.
O velho Idelfonso foi o primeiro a falar.
- Aquilo de ontem à noite foi gente ou foi bicho? Eu já estava dormindo quando começaram a gritar.
- Eu num escutei nadinha. Tinha tomado uns negócio... – Gito vivia bebendo e com certeza havia sido o único que não tinha escutada nada. – Foi coisa feia?
- Foi coisa feia sim. Juro que me benzi todinha. Parece até que estavam gritando na porta de casa. Credo em cruz! – Disse dona Pedrinha fazendo um pelo sinal da santa cruz.
- Tem gente que não presta. Fizeram isso só para assustar a gente. Essa molecagem foi bem feita, mas ela só funciona uma vez. Quem fez isso não vai conseguir fazer de novo – Fabiano falou alto, mas ao mesmo tempo percebeu que não acreditava nas próprias palavras.
Essa reunião acontecia bem na frente da venda de Mané Gago, que não era gago e ninguém sabia dizer por que ele tinha aquele apelido. Logo os afazeres de todo mundo começaram a pedir urgência e aos poucos o assunto foi murchando e terminou que todos foram cuidar de suas tarefas.
A noite estendeu seu manto sobre o pequeno aglomerado de casas e outro fenômeno aconteceu. Dessa vez não foram gritos.
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A madrugada corria alta e a chuva que tinha caído o dia todo há muito que havia passado. Todos em Gaspar dormiam pesadamente quando foram acordados com o barulho de coisas que se chocavam contra as paredes de suas casas. A maioria das casas era de madeira, algumas eram de barro com partes de madeira. A melhor casa era a do velho Idelfonso, que vivia nela com o filho, a nora e os netos. A mais humilde era a de Gito feita toda de barro.
O velho Idelfonso acordou assustado com o barulho e se perguntou o que era aquilo que batia com força nas paredes de sua casa. Maria de Lourdes, mesmo com um barrigão de oito meses, pulou para a rede de seu marido, Fabiano. Mané Gago, com os ouvidos atentos, começou a achar que aquelas coisas não iriam parar por ali. Dona Pedrinha enlaçou nas mãos um terço quase tão velho quanto ela e passou a rezar baixinho. Gito começou a achar que iriam terminar derrubando a casa em cima dele. Fabiano pensou em ir lá fora e averiguar o que era aquilo. Ameaçou se levantar e pegar o seu facão, mas desistiu quando sentiu o corpo de Maria de Lourdes junto ao seu, a barriga grande não lhe tirara a formosura e, afinal, talvez não fosse muito seguro sair mesmo... Principalmente quando não se sabe o que poderia estar lá fora.
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A manhã chegou e com ela mais conversas e especulações sobre o que poderia ter acontecido. Alguns mostravam as grandes pedras amarelas e estranhamente polidas que teriam sido encontradas junto às portas e janelas das casas. Um se queixava de que uma pedrada teria quebrado um pote novinho seu. Outro falava que as pedradas foram tão fortes que chegaram a rachar a porta de sua casa.
Percebia-se uma inquietude muito grande e um desencontro de teorias e informações sobre o que poderia ter causando aquilo.
- Quero saber quem foi o filho duma égua fedorenta que jogou pedra na minha casa – a raiva era grande em Fabiano – Passo o facão no safado que fez isso.
- Isso não foi coisa de Deus. Por que apedrejar a gente? Só os pecadores é que eram antigamente apedrejados. A gente deveria era fazer uma missa, mas o padre Justo só vem uma vez no mês. – falou pesarosa dona Pedrinha.
- Passo o facão no desgraçado... E não sou pecador para ser apedrejado – tornou a falar Fabiano, dessa vez olhando com desdém para dona Pedrinha.
- Isso parece coisa de maldição. Dá vontade de ir embora daqui. Eu hoje à noite vou dormir fechando bem tudo quanto é janela. – disse a mulher de Fabiano.
- E isso vai bem adiantar de alguma coisa? Se apegue com Deus, minha filha, isso sim. – dona Pedrinha falava com um leve tom de reprovação na voz.
- De onde vieram essas pedras? – se perguntava Mané Gago sem tirar os olhos da enorme pedra amarela em suas mãos. – Nunca vi uma pedra assim na vida.
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O dia terminou. A luz do sol foi embora e as sombras da noite submergiram o vilarejo em incertezas, medo e o receio de coisas que ainda sequer tinham sido nomeadas. Nessa noite todos os moradores se recolheram com a expectativa de que alguma coisa iria ocorrer
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Nessa noite Mané Gago, Fabiano, Gito e um morador que morava mais afastado de Gaspar, após algumas discussões, decidiram que ficariam de tocaia no campanário da igreja, que era o lugar mais alto do vilarejo. Dali eles poderiam ver boa parte das casas, ou melhor, dizendo, tentariam, já que o máximo que conseguiam divisar era a fraca iluminação das lamparinas e lampiões que escorria por baixo das frestas de portas e janelas. Não daria para ver o campinho de futebol e nem o caminho que levava para o riacho do Pedral.
A noite avançava e nem gritos ou pedradas aconteceram. Os quatro homens no alto da igrejinha já estavam cansados de tanto espremerem os olhos e ouvidos. Para piorar choveu de madrugada e o frio aumentou. Foi uma chuva passageira, mas colaborou para deixar o vilarejo com uma aparência mais assustadora e triste.
No campanário apertado da pequena igreja os quatro vigilantes conversavam o mínimo possível e tentavam espantar o frio fumando e bebendo goles de aguardente
.- Não dá para ver quase nada daqui. A gente tem é que descer. Lá embaixo dá pra gente ver melhor – falou Fabiano com determinação.
- Não, não. Acho melhor a gente ficar aqui. Seja o que diabo for aparecer lá embaixo eu acho mais seguro aqui em cima. – ponderou Mané Gago sendo prontamente apoiado por Gito e pelo outro morador.
Perto de o dia raiar os galos do vilarejo não entoaram o seu rotineiro canto. Eles não cantariam nunca mais. Foi o morador que tinha a casa mais longe do vilarejo que percebeu a ausência do canto dos galos. Alguma coisa tinha acontecido. Tropeçando uns nos outros os vigilantes desceram correndo sem saber ao certo o que de fato havia ocorrido.
Em desabalada carreira pelas ruas lamacentas constataram, com horror, que todas as criações de patos, galinhas e porcos tinham morrido. Pássaros em gaiolas, cães e gatos também estavam mortos.
Choque, raiva e medo se espalharam como rastilho de pólvora entre os moradores. Todos estavam incrédulos e nao conseguiam entender como é que os animais tinham morrido. Não se falava de outra coisa. Como foi que os bichos anoiteceram saudáveis e amanheceram mortos? Nenhuma gota de sangue derramada foi encontrada, nem um pio, cacarejo, latido ou miado foi ouvido. Como entender uma maldade daquelas?
- Isso é obra do Tinhoso. Tem uma maledicência aqui nesse lugar. – Falou desconsolada a nora do velho Idelfonso olhando para as suas galinhas mortas espalhadas no terreiro.
- Ficamos no alto da igreja a noite toda vigiando e não vimos nada. – Fabiano falou meio que se justificando.
-Não vimos nenhum vulto e nem ouvimos nenhum barulho estranho. – completou Mané Gago.
- Eu também passei a noite vigiando. Fiquei acordado a noite inteira com um facão na mão e até arrisquei dar uma olhada lá fora e não vi nem escutei nada – disse um sujeito que morava depois do campinho de futebol.
- O que vai acontecer agora? Será que vão queimar as casas com a gente dentro? – Gito falava e gesticulava muito. Seu nervosismo era o nervosismo de todos.
- Reparei que só tem as pegadas da gente aqui. Não tem nenhuma outra marca. – Fabiano falou enquanto se agachava para olhar melhor o chão lamacento.
- E tu bem sabes dizer as pisadas de todo mundo aqui? – questionou a nora do velho Idelfonso.
- As pisadas de todo mundo eu não conheço, mas só tem marca de pé de gente aqui...
Fabiano seguiu falando.
- Acho que a gente tem que saber o que diabo está causando tudo isso. Tem coisa por trás disso. Não é certo o que está acontecendo. Olha, eu vou buscar ajuda lá em Maniteua.
- Isso dá meio dia de viagem. Quando tu retornares já vai tá anoitecendo e me diz uma coisa, vai adiantar fazer essa viagem toda até Maniteua? – perguntou Mané Gago.
- Não sei te responder, mas quando eu chegar lá vou falar sobre o que tá acontecendo aqui. Tenho um compadre lá, se for o caso, amanhã cedinho eu pego a Lourdes e vou embora daqui. Ela tá com um barrigão e eu não quero ela parindo aqui nessa situação.
Fabiano prosseguiu.
- Quem quer ir agora comigo lá em Maniteua pedir ajuda?
Todos se olharam, murmuraram entre si, mas ninguém se prontificou a seguir com ele.
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Decidiu não falar para sua mulher sobre a sua intenção de ir buscar ajuda, com certeza ela não iria deixá-lo ir. Ele não sabe dizer que tipo de ajuda espera encontrar, mas sabe que tem que fazer alguma coisa. O que está acontecendo em Gaspar não é normal. Algo de muito ruim estava acontecendo ali. Temia que coisa pior fosse acontecer, tinha medo por ele e pela sua mulher prenha.
O dia tinha acabado de nascer e um vento frio bate em seu rosto fazendo lembrar-lhe do calor do corpo de sua mulher. Fabiano pragueja por causa do caminho todo encharcado que dificulta os seus passos. Resolve acender um cigarro de palha para tentar desanuviar os pensamentos.
Aquela estradinha silenciosa, cujo único som era os dos seus passos no terreno enlameado transmite-lhe uma sensação estranha. O vento frio parece moldar formatos estranhos nas árvores e isso faz Fabiano se lembrar das histórias de visagem que seus pais contavam quando ele era criança. Ele fica se perguntando se não será medo o que está sentindo. Uma repentina vontade de dar meia volta e retornar para o aconchego de seu pobre casebre lhe assalta o espírito. Não, ele tem que continuar seguindo em frente. Novamente acende outro cigarro e, fazendo isso, o medo parece diminuir.
Nunca se considerou um caboclo medroso, mas aquela estrada estava silenciosa demais e ele, definitivamente, não queria estar ali. Acendendo mais um cigarro Fabiano continua caminhando. Ao fazer uma curva um pouco mais brusca à direita ele estanca de súbito.
Isso não estava certo! O que houve com a estrada? Ela terminava abruptamente em uma barreira de mato alto. Fabiano surpreso para e se volta em todas as direções tentando entender como uma estrada deixava de existir de uma hora para outra. Ele já havia feito aquele trajeto inúmeras vezes, não tinha nem dez dias que ele tinha vindo por ela trazendo mantimentos. Era o único caminho para Maniteua e não tinha como ele estar enganado. Como é que a estrada deixou de existir?
Algo de muito errado estava acontecendo ali. Agora era muito tarde para voltar. Fabiano pegou o seu facão e decidiu seguir em frente.
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Seus braços fortes e mãos calejadas estão acostumados ao trabalho braçal, mas a mata é fechada e Fabiano está cansado e com medo de estar perdido. Ele não confia nas marcas que deixou nas árvores enquanto vai abrindo picada mato adentro. Decide descansar um pouco, seus braços e rosto já apresentam alguns arranhões, ele está sedento, bebe da garrafa que trouxe enrolada em uma trouxa e acende o seu último cigarro de palha.
Por que ele não volta para casa? Um drama começa a se formar em seu espírito. Sua mulher está para parir, mas algo ruim se apossou de Gaspar e ele tem que conseguir ajuda, mas que ajuda? Não! Fabiano decide que é tarde demais para voltar e que ele tem que tentar descobrir que malefício é aquele que se apossou de Gaspar.
Com ânimo redobrado ele investe mais e mais com seu facão. O terreno é íngreme e dificulta a sua jornada. O afiado instrumento manejado com destreza vai cortando galhos e arbustos até que este para de repente.
Que merda era aquilo? Fabiano ficou com medo do que seus olhos viam, mas também sentiu raiva. O que estava acontecendo ali? Tomado de uma súbita coragem chutou e esmurrou aquilo que para ele surgia como uma espécie de parede translúcida. Sem pensar em nada mais pegou o facão e pôs-se a tentar furar e cortar aquela coisa, mas foi inútil. A ponta da lâmina entrava naquilo e logo era empurrada de volta. Meu Deus, o que estava acontecendo? Tentou várias vezes, mas era inútil. Aquela coisa era impenetrável.
Assustado e brandindo o facão em posição de defesa Fabiano se afastou daquela estrutura quase invisível e ficou a olhá-la de longe. Sua mente estava a mil tentando elaborar alguma explicação para o que via quando um estranho entorpecimento invadiu seu corpo. Tentou correr, pensou em lutar, mas aquilo era mais forte que a sua vontade. Sentiu como se estivesse sendo esvaziado.
Seu último pensamento foi para sua mulher prenha...
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Filo 31 dá um suspiro resignado. Ele tinha que refazer o experimento. Era a terceira vez que uma das cópias humanas conseguia descobrir a cúpula que delimitava a área experimental. Tinha algo no comportamento daquelas criaturas que havia se perpetuado mesmo elas tendo desaparecido há muitos milênios.
- Refaça todos os passos metodológicos e analise cada variável. Se os resultados continuarem os mesmos talvez seja hora de você formular outra hipótese – A voz de seu mentor soava forte e o rosto mostrava uma severidade que, mesmo sendo apenas uma imagem holográfica, fazia Filo 31 sentir-se inseguro.
- Mentor, é muito difícil manter as cópias deles por mais do que alguns ciclos. Os poucos corpos encontrados estão muito deteriorados. O pessoal da engenharia genética não vai ficar nem um pouco satisfeitos...
- Eu sei das dificuldades, Filo 31. Crie uma nova ambientação geográfica, delimite novos padrões linguísticos e culturais, implante novos repertórios cognitivos e comportamentais. Analise com calma os dados coletados. Dentro de mais alguns ciclos mostre-me os resultados – Trauss 79 falou isso e desligou seu comunicador com impaciência pondo fim a audiência.
Era hora de Filo 31 voltar para o seu alojamento e tentar relaxar um pouco. Antes de retirar-se ele dá uma ultima olhada em seu esboço de pesquisa. Que criaturas fascinantes eram aquelas. Pensou nelas com admiração e respeito Como funcionaria a mente delas quando o seu mundo estava em sua plenitude?
Sua tese intitulada “Anatomia do medo: um estudo antropológico acerca da construção de mecanismos de defesa em criaturas extintas do terceiro planeta” um dia seria concluída.
Um tímido sorriso de satisfação surgiu em seu rosto antes de ir embora.