ESTRANHO RELATO - CLTS 19
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Miles Ludlow estava enterrado há pouco mais de uma hora. A Igreja não permitiu seu último repouso no campo santo, por tal motivo seu corpo descansa até o dia do Juízo Final aos pés da mais antiga aveleira na propriedade de seus pais. Acompanhei o velório residencial e assisti à família no que me foi possível. Forçoso admitir que o número dos condolentes não foi elevado e muitos deles apenas se fizeram presentes o tempo suficiente para atender à mínima regra social. Miles não era muito admirado em vida e a morte apenas acentuou em muitos o desgosto por sua pessoa. Os pais de Miles, apesar da dor inerente à perda trágica, portaram-se como se espera dos bem nascidos em situações dessa natureza, embora eu tenha resgatado dos olhos da senhora Ludlow uma pequena lágrima quando ela julgava-se sozinha num dos corredores da mansão. Uma pequena, e perdoável, indiscrição materna, nada grave. Lorde Ludlow manteve-se completamente rijo em sua poltrona, recebeu educadamente todos os cumprimentos e à exceção de uma ou duas doses do aromático conhaque de avelã não se notou o real sentimento em seu interior. A criadagem, por outro lado, não fez questão de esconder seus pensamentos, pois mesmo quando a governança da casa exigia decoro, eles traziam estampados nas faces uma genuína expressão de medo todas as vezes que precisavam atravessar o amplo local onde o caixão com os restos mortais de Miles estava acomodado. Isso muito me espantou, mas não ousei tecer comentários.
O falecido e eu não éramos íntimos, mas havia certa afinidade entre nossas famílias por motivos comerciais. Trocávamos correspondência com relativa frequência e na época dos estudos iniciais freqüentamos a mesma classe de aula. Sim, se não havia um laço robusto de amizade, ao menos existia o esboço, o que já era bastante em dias tão inóspitos. Miles possuía a mente ágil, era dotado de enorme compreensão do sistema financeiro e comercial, apesar de jovem. Certamente, se não tivesse os dias abreviados de maneira tão incomum, seria um dos grandes da nação. Isso e o fato de possuirmos a mesma idade nos tornava, naturalmente, companheiros de negócios. Talvez por essa razão ou outra que desconheço, ele tenha principiado a confidenciar certas situações e pensamentos bastante tenebrosos, digamos assim, algumas semanas antes de seu passamento.
Certa tarde, estando em meu escritório no centro da cidade, um entregador particular trouxe-me carta de Miles lacrada com cera vermelha e o timbre da família aposto. Por óbvio estranhei o fato, vez que fazíamos uso de nossos empregados normais quando precisávamos nos comunicar e nunca lacrávamos tais missivas. Assim que o rapaz saiu, debrucei-me sobre o texto na letra característica de Miles. Li e reli. Estava pasmo com o papel ainda em mãos como se se recusasse a ser abandonado sobre a mesa. Eu não podia acreditar no que havia ali. “Miles perdera o juízo”, eu pensei. Muitos casos de loucura rondavam nossa comunidade. Era até normal que cada família possuísse sua cota de desafortunados mentalmente, todavia, os casos assim não surgiam de repente, eram pessoas que já demonstravam sua incapacidade desde a infância. Não, não poderia ser essa a explicação para as palavras de Miles que pareciam flutuar e se enovelar com a fumaça do charuto aceso para auxiliar a deglutição da leitura. Mas essa foi apenas a primeira de muitas outras que se seguiram, todas no mesmo tom do absurdo, do fantástico, do inacreditável.
Enquanto os dias seguiam seu rumo traçado pelo sol, mesmo sem retirar o pensamento das epistolas ruidosas de Miles, outros eventos vieram somar-se a elas ocorridos nas proximidades ou na própria residência da família Ludlow. Houve relatos dos mais variados envolvendo desde gritos inexplicáveis vindos do cemitério local, passando pelo desaparecimento de crianças recém-nascidas e abarcando aparições de vultos etéreos rondando as estradas circundantes do território, sem mencionar o estranho surgimento de animais exangues. Como não poderia deixar de ser, os boatos fizeram rastro. O medo se tornou regra. Os negociantes estavam preocupados. A população se refugiou em casa ou na Igreja. As ruas adotaram o ar de abandono. Nem mesmo as escolas resistiram a tantas aflições. Havia algo acontecendo. E não era algo bom. Foi quando Miles me convidou para uma conversa pessoal.
A mansão Ludlow era tipicamente uma declaração de apoio à arquitetura clássica e à opulência. Construída em dois pavimentos, térreo e superior, ela se descortinava por uma área enorme, possuindo seis níveis de largura, sendo o primeiro menor e os demais sempre maiores que o anterior, assemelhando a uma pirâmide horizontal. Essa visão da casa em degraus confundia os olhos e a fazia quase viva, respirando. Estava inserida no bosque natural da propriedade cortado apenas por uma via de acesso para a entrada e iluminada por lampiões a querosene em toda a sua volta, os mesmo lampiões que, nessa noite, clareavam a estrada e o jardim. Cuidado que os anfitriões adotavam ao receber visitantes noturnos. Como era minha primeira ida à residência nesse horário, senti-me extasiado com as cores e o brilho das luzes refletindo nas muitas fontes, ao mesmo tempo que tornavam a floresta em seu derredor mais escura e assustadora. Para meu alívio, Miles me aguardava à frente do hall principal.
Já fazia algum tempo que não o via pessoalmente, lembrava-me dele como um rapaz de corpo delgado, porém proporcional, cabelos curtos, bigode reto e olhos azuis muito vivos. Entretanto, aquele que me esperava aparentava mórbida magreza, cabelos tendendo para longos, mal aparados, uma barba de muitos dias e os olhos, estranhamente, afundados nas órbitas. Em um encontro noutro local, eu não o reconheceria.
- Boa noite, meu amigo – ele disse – muito obrigado pela atenção.
Suas palavras denotavam, apesar da singeleza do cumprimento, uma sinceridade ímpar. Ele estava em perigo realmente, conforme havia alertado nas cartas a mim enviadas.
- Miles Ludlow, estou a seu dispor – respondi com total simpatia.
- Entremos, não é seguro ficarmos aqui – essa observação trouxe à minha mente todos os eventos terríveis dos últimos dias e, confesso, um calafrio percorreu minha espinha.
Uma vez acomodados na sala confortável de estar, servidos de conhaque e canapés, desfrutando dois excelentes charutos e após as conversas triviais de rotina, Miles levantou-se e trancou a porta da sala. Encaminhou-se às cortinas e as cerrou decididamente, não sem antes olhar profundamente lá fora. Meus nervos, sobressaltados. Os pais de Miles estavam na cidade, os criados foram dispensados. As lidas letras enigmáticas e soturnas do homem à minha frente vieram martelar ante meus olhos: “O mal está entre nós, e suspeito que esteja em mim, necessito ser exterminado antes...”
- Meu amigo – ele interrompeu meu pensamento – sei que devo tê-lo assustado com minhas tolas cartas, peço perdão.
Aquilo pegou-me desprevenido, bem como o olhar severo e perscrutador pousado em mim. Miles estava de pé junto à lareira, a poucos metros de mim. A qualidade de sua indumentária não condizia com a aparência de seu rosto. Atreveria dizer que ele usava roupas de outra pessoa. Também seu caminhar me soou estranho. Não parecia natural para alguém de sua idade. Era reticente, quase receoso, como se ainda aprendendo a dominar os membros inferiores. De certa forma, todo o movimento do corpo era conturbado. Notei pequenas oscilações nos lábios a cada mínima intenção de fala. Ele perguntou-me se eu trouxera as epístolas que ele mesmo enviara e o que havia pensado sobre elas. Em respeito aos nossos supostos laços de amizade, confessei ter estranhado o tom das narrativas e esperava uma explicação. Miles apenas sorriu ao afirmar que não passara de uma travessura para afastar o tédio que iniciava rondar-lhe. Rimos juntos. Eu por nervosismo, não me parecia ser o caso. Entreguei-lhe os papéis amarrados por barbante e ele os atirou ao fogo sem hesitação.
- Espero que não se importe – falou num tom de voz amigável – eram apenas abstrações sem valor, mas que se de conhecimento geral poderiam prejudicar os negócios da família, não que haja desconfiança para com sua pessoa, mas há muitos empregados que poderiam lhe roubar estes documentos.
Concordei imediatamente com Miles, até porque sentia-me aliviado dos horrores descritos naquelas páginas. Gostaria mesmo que eu pudesse esquecer aquilo o mais rápido possível.
- Então, muito bem, eu agradeço imensamente a compreensão – falou definitivamente. O assunto definhou. Ficamos ouvindo o crepitar da madeira por alguns minutos e levantei-me para a despedida. Miles não fez menção de retardar minha partida, apenas pediu cuidado na volta, nem mesmo me acompanhou à porta.
Alguns metros depois de atravessar o portão do jardim, iniciando, de fato, a estrada para fora do bosque, pensei ter ouvido um grito vindo da residência. Cogitei voltar, mas um criado estava terminando de fechar à chave a grade do portão. Ele nada disse, apenas apontou com o indicador para que eu prosseguisse. Todo seu semblante refletia assombro. Sem mais o que fazer, fui-me embora.
Durantes as semanas seguintes, não obtive mais informações de Miles, não houve mais correspondências. Os graves acontecimentos continuavam. A polícia local não conseguia desvendar coisa alguma. Toda uma família de camponeses foi encontrada assassinada nas redondezas com seus pescoços quebrados por força imensurável. Padre Yoseph desapareceu sem deixar notícia. Dizem que atendeu no confessionário normalmente num dia e no outro sumiu. Ao que consta, a senhora Ludlow foi a última fiel a se confessar para o bem de sua alma.
Em meio a essa balbúrdia, Miles Ludlow foi encontrado pendurado em seu quarto. Havia se enforcado, conforme relatório médico. O restante dos eventos já o disse. O velório vazio, a sensação de medo da criadagem perto do ataúde e o choro contido da mãe de Miles.
Pois bem, ele estava enterrado aos pés da aveleira há mais de uma hora, e eu voltava para casa pela estrada do bosque pensando no motivo de não terem feito a última homenagem ao defunto com o caixão aberto para uma derradeira e costumeira visualização do seu rosto. Fui informado pela governança que os pais ordenaram que assim fosse e assim foi. Somente quem testemunhou os restos mortais de Miles Ludlow foram os pais e o médico da família, vez que o esquife funerário foi levado ao quarto do rapaz e de lá saiu fechada. Não atinei motivo justo para tal comportamento, salvo evitar o espetáculo deprimente da morte por asfixia.
Súbito, uma imagem foi captada por meu ângulo de visão aberto. Virei automaticamente a cabeça para direção notada. Ainda era dia. Em meio às muitas árvores do bosque, o que gerava bastante sombra, observei algo se escondendo. Ou tentando. Por alguns instantes paralisei-me em atenção tomada por inteiro. Não havia sons, até mesmo meu cavalo respirava silenciosamente. “Quem está aí”, gritei a pleno pulmão. Nada. Fiquei mais um pouco a observar, e resolvi continuar o caminho. Nem bem andamos um trote e vi uma coisa correndo para o interior da mata. Estava vestido como um homem. Calças e camisa. Porém não levava botas nos pés, nem poderia, eram enormes. A cabeça também imensa e bastante peluda. Cabelo que lhe parecia sair igualmente abaixo das mangas da camisa. O modo como aquilo corria imitava ou parecia de um humano, mas era diferente, como se estivesse aprendendo a lidar com suas pernas. Por brevíssimo instante, o que quer que estivesse fugindo, virou-se para trás. Nossos olhos se encontraram. Não havia muito que se ver naquela face, salvo os dentes bem salientes e os olhos muito claros e surpreendentemente muito vivos. Azuis eram aqueles olhos. Após esse mínimo contato, esporeei o animal e corremos o máximo que podíamos deixando todo o horror daquela visão para trás.
Ao chegar no centro citadino comuniquei o evento às autoridades, ocultando muitos detalhes que me deixariam parecer louco. Emitiram um alerta de caça ao animal que estaria trazendo tanta dor e medo às famílias locais. Após muitos dias de busca, nada foi encontrado, exceto alguns corpos não identificados e meio enterrados no bosque.
Alegando prudência, a família Ludlow mudou-se da região levando consigo todos os empregados da residência e, ao que cochicham em segredo, uma urna grande totalmente lacrada. A aveleira mais antiga da propriedade foi removida, o que fez perder a localização da cova de Miles. Ainda hoje lembro dos olhos muito azuis naquele bosque e de fechar muito bem todas as portas e janelas de casa.
Tema: Terror Gótico.