Cacau manchado de sangue

Ao alvorecer de minha vida, eu sentia o aroma esfuziante do café sendo coado lá na cozinha, lugar onde as conversas e histórias são produzidas com o rigor dos antigos.

Eu, uma criança atenta, escutava minha vó recontar prosaicas aventuras e desventuras de pessoas amigas ou conhecidas por ela e pela família, tradicional família que pertenço.

Certa vez, uma comadre de minha vó veio visita-la, numa tarde de sábado. Uma fresca e outonal tarde de sábado. E no meio de xícaras de cafés e chás, pratos de bolinhos, sequilhos e doces ao creme, aquela senhora bem vestida e de fala austera, relembrou a minha vó o fato que aconteceu com dois irmãos, primos dela.

O ano era 1974. A roça de Abílio e seu irmão Ageu ficava perto da roça de minha tia Lindaura. Ao sul da região cacaueira.

Os ânimos deles não estava bem. Sempre umas farpas de confusão adentravam sem modéstia à casa de ambos, culpa, por vezes da esposa de Ageu, a galega Berenice, assim chamada pelos mais próximos. Os mais distantes chamavam de “diaba” Berenice.

Abílio era um homem sereno, bem caipira, bem tranquilo. Entrava nas roças de cacau e ficava por lá horas e horas: amassando o terreno, recolhendo os galhos, vendo os pés frondosos crescendo e produzindo o fruto que enchiam os cofres dos empresários fabricantes de chocolate. Ageu era mais ardiloso. Preguiça inerente desde o nascimento. Pagava uns e outros para realizar o trabalho que o irmão fazia com vivacidade.

Abílio era casado com Haidê. Jovem estudante da capital que conheceu o marido e deixou família rica, para ser uma esposa de produtor de cacau. Se seria feliz ou não sendo arquiteta e casada com algum médico em Salvador, jamais saberemos.

Eu estava doido para comer o último sequilho do prato feito por Mainha. Mas dona Suzane, comadre de minha vó, arrebatou de suas mãos direto na boca, e pude imaginar o biscoito derretendo lá dentro. Ó raiva!!

Já era tempo de ir embora, mas escutei na sala a derradeira parte da história que minha vó junto a dona Suzane, ajustava na memória de ambas. Algo que havia acontecido vinte anos antes daquela tarde singela de sábado.

A roça de Abílio e Ageu era cortada por um fio de lagoa, de água límpida e cristalina que enchia os poços da roça e geminava a pequena vereda que ali existia. Caso residisse pessoas de boa valia, a vida daquele povo seria um lago sereno e pacífico. Mas existia a galega Berenice. Ela sumariamente provocava rusgas entre os dois irmãos. Haidê era a santa mulher que iluminava o ambiente com palavra de doçura e sensatez.

Berenice, numa tarde de domingo, depois que Abílio, a esposa e o pequeno herdeiro Joaquim, estava chegando da missa. Logo foi aprontar das suas. Entrou na sala da casa e com os olhos arregalados e as mãos voando de um lado para o outro trovejou ao marido que a água da lagoa da parte da roça deles, havia secado e do lado da roça de Abílio, abundava com grandiosidade.

Ageu, levantou do sofá e foi até a parede da antessala onde estava uma espingarda calibre 12 pendurada feito troféu e correu para o meio do terreiro e vendo o irmão, a cunhada e o sobrinho se aproximando da casa, gritou que Abílio era ladrão de água, que não estava aquentando os despautérios de suas ações e iria dá fim nas provocações quase diárias.

Minha vó tinha os olhos marejados, assim com minha mãe e dona Suzane.

Influenciado pela ganancia, pelo ciúme, pelo ódio. Ageu matou seu irmão com um tiro certeiro no ombro e dois no coração.

Avistava-se Haidê caindo desmaiada ao lado do corpo do marido e o pequeno Joaquim soluçando desenfreadamente. A galega Berenice com um sorriso gélido no canto da boca e o covarde Ageu fugiram para dentro das roças de cacau. Um silêncio corroído de sangue se espalhava por aquela região.

Essa história jamais saiu de minha fatigada memória. Vez ou outra eu vejo Joaquim caminhando pelas ruas da cidade. Ficou fraco da cabeça. Nunca estudou, nunca teve uma vida normal. Foi criado pela mãe, que nunca se casou e até hoje sonha em ver Ageu preso.

Um roteiro inspirado de um drama conflituoso. Minha tia Lurdinha, semanas atrás disse-me que a galega Berenice, foi para São Paulo. Tentou ser cafetina, mas foi enrolada por um traficante de mulheres e morreu com uma facada no coração. Morreu assassinada numa rua escura num dia de chuva torrencial e só um mês depois, alguma alma benévola reconheceu seu corpo no IML e deu um enterro cristão.

Luciano Cordier Hirs
Enviado por Luciano Cordier Hirs em 12/05/2022
Código do texto: T7514693
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