Vilarejo Eleutheria - CLTS 19
- Augusta -
O canto das calopsitas eram ouvidos por todos os recantos do vilarejo. As copas das árvores farfalhavam violentamente, o vento estava insuportável naqueles dias. Augusta precisou aguentar firme para sair de casa e ir até o poço buscar água. Afinal, suas duas filhas precisam se alimentar, e daquela água a mulher faria a refeição diária, sopa de batatas e pão adormecido.
Aquela guerra estava assolando o longínquo vilarejo que dependia do centro para as principais vias de abastecimento. O poço público era o mais rápido em disponibilizar água, mas como o vilarejo agora dependia somente dele, se não acordasse antes do dia clarear, Augusta poderia ficar sem seu abastecimento diário.
Com muitas vestes, para se proteger do frio, Augusta pegou dois baldes médios, tapou o rosto com uma tira de pano deixando apenas os olhos à vista. Verde era a cor, verde esmeralda, profundamente encantadores e misteriosos. Túlio, o falecido marido, dizia a ela que se perdera na profundeza dos seus olhos e, de lá, retirava toda a força necessária para viver. Augusta jamais se esquecera do dia de seu falecimento.
Fora um dia completamente incomum. Túlio estava rabugento e mal-humorado, completamente diferente do homem alegre e bondoso que sempre fora. Augusta não reconhecia o seu esposo naquele estado, jamais deixou as intempéries da vida lhe chatear ou moldar seu comportamento, sempre fora firme e decidido. Porém, naquele dia estava abatido, irritado, despejando caturrices para todos.
As meninas estavam assustadas com o comportamento do pai, jamais o tinha vista daquela forma. Túlio chamou Domine para auxiliá-lo em uma tarefa no celeiro, a menina, com medo rejeitou, mas o pai a forçou sair com ele. No celeiro, Túlio soltou o braço da menina que estava apertando, e ralhou com ela para nunca mais desobedecê-lo. Da cozinha, Augusta escutou o grito estridente da menina e correu a ver o que era. Quando notou Túlio caído ao chão, jogou-se em cima do marido e atestou a morte, estranhando uma marca em seu pescoço.
Afastando os pensamentos turbulentos, Augusta saiu de casa com a porta rangendo, o vento cortante lhe açoitava e a estrada estava deserta, as carroças paradas, sem cavalos, em quase todas as portas; na dela, porém, não havia. Caminhou uma longa estrada até chegar ao centro do vilarejo, devagar e cuidadosa aproximou-se do poço e prendeu o primeiro balde. Ao emergi-lo retirou-o com dificuldade e o encostou ao chão, repetindo o processo com o segundo balde. O retorno para casa fora mais devagar, pois além de se proteger do frio, precisava tomar cuidado com os baldes, para não derramar a água.
De longe notou sua casa, de cor ocre e portas amarronzadas, coberta por musgo. Aquela visão não lhe era satisfatória, mas não havia muito o que fazer. As meninas dormiam tranquilamente ainda quando Augusta fechara a porta e dirigiu-se à cozinha para ferver a água. Retirou os pães do armário e preparou a mesa com esmero, mesmo tendo apenas os pães e o chá fumegante de erva-cidreira que logo ficara pronto.
O silêncio do andar de cima era evidente, mas quando Augusta abriu a porta do quarto das meninas aterrorizou-se com a cena. Domine, a mais nova, estava estrangulando Fabrícia, que já estava com os lábios roxeados e tremendo. Augusta gritou e Domine largou sua irmã ao chão, com os olhos abertos e expressão vazia. Ao se aproximar, a mulher tremeu, seu choro foi copioso e silenciador, notara a mesma marca que encontrara em Túlio, o pescoço rodeado por uma cor verde-musgo, como se fora um colar.
No mesmo dia, Augusta enterrou Fabrícia. No campo mesmo, bem próximo da casa. Não quisera se afastar muito por conta do frio que fazia. Domine, chorava próximo a mãe durante todo o momento, seu pranto era dolorido e fino. Ao fim do enterro, a garota levantou os olhos bruscamente e alarmou a mãe apontando para uma parte da mata desmatada. Ouvia-se passos de galhos quebrando e mato sendo amassado ao chão. Augusta aproximou-se de Domine e a abraçou num ato de proteção, mas relaxou quando da mata saíram uma camponesa e um garoto, do tamanho de Domine, no colo da mulher.
Augusta a levou para dentro e os acomodou no pouco calor que conseguia juntando cobertores.
— Fico muito feliz que me acolha em sua casa. Meu filho está muito doente, o frio poderia matá-lo.
— Mas o que ele tem?
— Febre. Muito alta. Desde o seu nascimento que ele passa por momentos como esse.
— Eu não entendo, nunca o levou ao médico ou a uma benzedeira?
A mulher a olhara com cansaço. Respirou fundo e chorou baixinho. Augusta somente a observava, enquanto Domine se recusava a se aproximar da mulher e do garoto. Ficara longe, também observando toda a movimentação.
Recompondo-se, após um gole de chá, a mulher olhou para Augusta e sussurrou um pedido de desculpas e logo se explicou:
— O meu menino não é normal, senhora – balança sua cabeça com pesar. – O sábio de onde eu venho sempre me disse que ele possui um dom. Que sofrerá muito por conta disso, mas pode ser o alívio para muitas pessoas.
— Que tipo de dom? – questionara Augusta.
— Revocare, chamamos. É como se ele recolhesse a dor das pessoas para ele. Sempre entra em crise de choro quando algo está prestes a acontecer e sua febre só passa quando ele recolhe esse sofrimento. Mas dessa vez não passou, não entendo o motivo dele ainda estar com febre.
— Talvez, por não ter tido tempo de recolher esse sofrimento. Mas de que sofrimento estamos falando?
— Não faço ideia, estávamos de mudança hoje pela manhã. Nosso pequeno vilarejo fora invadido pela guerra e tivemos que fugir. Quando avistei esse vilarejo ao longe ele começou a tremer e a febre começou.
— Vamos descansar? – Augusta cortara a conversa abruptamente. – Espero que ele se recupere logo. Mais tarde o frio diminui e conseguiremos conversar sem tremer tanto.
— Tudo bem.
Augusta deixara a mulher dormir ao lado de seu filho no sofá pequeno. Eles estavam aconchegados e enrolados em muitos cobertores. Levara Domine para o andar de cima e lhe dera ordens para a menina não falar nada do que acontecera com Fabrícia. Que se fosse questionada sempre fora somente ela e a mãe.
- Júlia -
O dia não amanheceu favorável no Vilarejo Arco-Íris, situado em posição estratégica de toda a região, fora dominado pelos invasores. Mais um vilarejo invadido pelos soldados da guerra.
Júlia estava despertando quando o alarme sonoro do vilarejo soou, a mulher começou a ouvir a movimentação e gritaria das outras pessoas. Compreendendo o sinal, teve tempo apenas de agarrar o seu filho e sair correndo, deixando tudo para trás. Durante sua corrida, virou-se para trás e viu os soldados arrasarem o vilarejo, expulsando todos com grosseria e violência.
Voltou-se para a estrada e continuou correndo com o menino nos braços.
Durante o caminho lembrara-se de João, o pai do seu filho. Obrigado a servir a guerra, fora recolhido dois meses antes e ainda não se tinha tido notícias. Omen, o sábio de seu vilarejo lhe informara que o destino de João era incerto, mas que ele jamais voltaria para casa. A dor de Júlia só aumentara, pois tinha poucos recursos sem o marido. Não poderia trabalhar mais do que já fazia, porque precisava cuidar de seu menino.
E agora o vilarejo fora invadido e ela estava sem nada na vida, somente com o filho.
Distante do vilarejo, o menino fora posto ao chão e questionou a mãe o que havia acontecido. A mulher lhe explicara com dificuldade e choro que não possuíam mais uma casa, que tudo lhes havia sido tomado.
Continuaram caminhando sem rumo, por onde a estrada ia levando. O garoto começou a tontear e caiu ao chão.
— Saulo! – gritara Júlia.
Ao pegar o filho sentiu sua temperatura aumentar. Acomodou-o em seu colo novamente e lhe cobriu o rosto, pois o frio estava cortante e ficando cada vez mais forte. Continuou caminhando e avistou do seu lado esquerdo, outro vilarejo. Mas a estrada daria muitas voltas, então decidiu se embrenhar na mata mesmo, com cautela e passos firmes foi descendo. Saulo ficava cada vez mais quente e a mãe preocupava-se com o que poderia estar acontecendo e com quem. Jamais o menino ficara tanto tempo ardendo em febre.
Aproveitou-se de algumas trilhas que encontrava no caminho para não correr muitos riscos na mata. E quando avistou uma saída da mata pela trilha que estava tropeçou e caiu. Saulo rolou para o lado e ela estatelou-se no chão. A testa do garoto ralou e Júlia se levantou desajeitadamente do chão para socorrer o filho, agarrou-o novamente e correu para o fim da trilha. O seu coração se encheu de esperança em ter encontrado uma mulher com uma menina.
Correu a lhe pedir ajuda, mesmo notando medo nos olhos delas. Informou que precisava de ajuda para ela e o filho. A mulher questionou de onde eles vinham e Júlia respondera que de longe, que se embrenharam na mata para chegar o mais rápido possível ao vilarejo. Alarmando a mulher com a situação de Saulo.
- Eleutheria -
Augusta ainda não confiava em Júlia. Não poderia imaginar o que aconteceria se Júlia descobrisse seu segredo, descobrisse o que Domine havia feito ainda naquela manhã. A condição de sua filha já lhe era um grande peso para carregar, não precisava de mais uma preocupação, então decidira que mandaria Júlia e seu filho embora no mesmo instante que eles acordassem.
Também, não poderia saber se Domine e ela estavam correndo algum risco com esses estranhos. Saindo da cozinha e se direcionando à sala, notou que o menino estava com uma pele diferente, translúcida. Notara que Saulo estava se tremendo e tinha pontos de luz sobre o corpo.
Se afastou e encostou-se no batente da porta da cozinha. No mesmo instante, Domine despontou no topo da escada. Augusta a chamou com rouquidão, e a menina estava com os olhos brancos. A mulher assustara-se ao ver sua filha; pensara que algo iria acontecer naquele instante e sua intuição dizia que era algo bom, mas o medo a dominava por inteira.
Júlia despertou assustada. Desesperou-se ao notar o filho novamente passando por um processo de recolhimento. Mas o pavor em seus olhos estava evidente, pegou o filho no colo e o chamara na tentativa de despertá-lo. Sem sucesso.
Olhou para os lados e notara Augusta escondida no batente da porta e a pequena Domine a encarando, nas escadas, com os olhos completamente brancos. Júlia colocara a mão à boca imediatamente, incrédula. Afastou-se do sofá e deixou Saulo deitado, ainda se tremendo e com os picos de luz ficando cada vez mais fortes.
— Nunca fora desse jeito. Tem algo de diferente acontecendo – disse à Augusta se escondendo junto a acolhedora.
— O que acha que está acontecendo? – Augusta estava com medo.
— Infelizmente, não faço a mínima ideia. – Olhou com receio para o rosto aflito de Augusta, que somente balançou a cabeça positivamente em silêncio.
Domine começou a descer os degraus lentamente. A cada degrau alcançado o corpo de Saulo pulsava e brilhava. Uma sensação estranha, porém, calmante, passou a percorrer pelos corpos de Augusta e Júlia; sem saberem o que esperar daquele momento.
Os pés de Domine alcançaram o chão e se paralisaram. Saulo levantou o corpo e sentara-se no sofá sem abrir os olhos; os picos de luz estavam pestaneando; e Domine começou a refletir o brilho de Saulo. A garota continuou caminhando até o menino lentamente.
A cada passo da menina, as mulheres, que estavam escondidas, sentiam um pulsar gélido no coração. E quando, finalmente, Domine alcançou a frente de Saulo, elas soltaram um grunhido de alívio.
Domine estava parada, completamente imóvel na frente de Saulo.
O garoto abriu os olhos, faiscavam. Ele levantou as mãos devagar e segurou as mãos de Domine, que começou a tremer imediatamente. Saulo foi parando de tremer enquanto Domine foi recebendo toda sua carga. A garota começou a gritar e uma grande sombra tomava conta de seu corpo, ao mesmo passo que uma luz vívida se estendia pelo corpo de Saulo.
A visão das mulheres era desfocada. Porém sabiam que estava acontecendo uma grande batalha interior entre os dois. A luz e as sombras, a dor e a redenção, o bem e o mal. Augusta estava com muito medo por sua filha, não queria que a menina sofresse mais do que já sofre quando percebe o que causou durante os seus transes.
Com muita dor, Domine não conseguiu segurar o grito e cada vez mais ia ficando gradual e rouco.
Saulo levantou-se e ficou cara a cara com Domine. Seu brilho percorria todo o corpo e entrava em contraste com as sombras que dominava a garota. O menino fraquejou, os gritos da menina diminuíram e Saulo aos poucos foi abrindo a boca e recolhendo as sombras de Domine.
Suas pernas começaram a tremer e as sombras entravam de forma abrupta para o seu corpo. Domine foi se enrijecendo, sentindo cada vez mais firmeza no corpo e um grande brilho começara a tomar o lugar que antes era dominado por sombras. Os dois cerraram os olhos e o último sopro de sombras invadiu o corpo de Saulo.
O garoto fora jogado violentamente para o sofá e Domine desmaiara.
As mães correram para seus filhos e Júlia notara que Saulo estava com a boca, o nariz e a testa sangrando e com uma marca no pescoço. Seu brilho havia sumido e a temperatura do corpo estava diminuindo rapidamente; sentiu-se aliviada, pois logo o filho melhoraria e eles poderiam sair para encontrar uma nova morada.
Domine lentamente abria os olhos e levantava-se com dificuldade. Augusta acolheu-a com rapidez nos braços e notou que a filha estava diferente. Não poderia crer que tinham se livrado do maior tormento das suas vidas.
Augusta olhou sorrindo para Júlia e notou o pescoço do menino. Seu sorriso desfizera-se, e seu horror recomeçou.
— O que está acontecendo Augusta? – questionou sem receber respostas.
Augusta começou a chorar nervosamente e a repetir que aquilo não era possível. Que precisava ser diferente. E que Saulo não merecia.
Júlia ficara nervosa e não estava entendendo o que Augusta falava sem parar. A questionava a todo instante, insistentemente. E apavorou-se quando a mulher respondera aos gritos:
— Ele está morto! – A mulher chorava sem parar e Domine entrava em tristeza novamente, após perceber o que causara.
— Não! Não pode ser! – Júlia repetira. – Eu só tenho meu filho neste mundo. Não posso perdê-lo.
— Me perdoe – sussurrou Augusta.
Júlia agarrara-se ao filho chorando.
Novamente, as mulheres se encontravam no quintal da casa.
A pá começou a invadir a terra novamente e logo o espaço necessário ficara visível. Júlia levantou o corpo de Saulo enrolado em um lençol, o deitou na terra e olhou para o céu.
— Senhores do céu, recebam o meu menino, o meu anjo. Um dia o recebi em confiança de vós, e, hoje, o devolvo com o coração partido. Os senhores entendem de tudo, e eu confio em vós.
Após o enterro de Saulo, todas entraram para casa. E o vilarejo Eleutheria estava, enfim, liberto.
Tema: Vilarejo.
Significado dos nomes:
Eleutheria: do grego, significa liberdade.
Domine: do latim dominetur, significa dominada.
Revocare: do latim, significa recolher.
Saulo: do latim salus, significa salvação.
Omen: do latim, significa presságio.