A Maldição dos Campestres
E começou como se começa a maioria das estórias e causos curiosos: com um incidente súbito e inesperado. Aquelas duas vilas, presas em seus contextos pobres de sentido e ricos em devaneios, vivenciaram momentos de plena agitação, auge e declínio de suas respectivas dignidades e bens, até se reduzirem a pó.
É ainda mais curioso o fato de como, em tantos séculos de terra, tantos antepassados fixando seus pés magros e suas fés raquíticas em um solo úmido e lamacento, apenas nessa combinação de fatores ocorreram tais incidentes. A síntese de toda aquela disputa oculta, renascida perante sinais dos deuses, se moldou em formas tão nefastas, que talvez nem autores mais instruídos ou mais inspirados possam descrevê-las em sua completa exatidão de detalhes e sentimentos. Tentarei eu fazê-lo, mesmo que minhas palavras soem como ecos no espaço.
Aquelas duas montanhas, separadas por uma mata densa e escura, com um apenas um caminho cruzando seu leito úmido e selvagem, eram mais coadjuvantes do que protagonistas da visão alheia naquele campo. Primeiro, antes de qualquer impressão natural, as duas torres tinham sua superioridade e preferência aos olhos dos viajantes que desciam aquele vale para passar por aquelas caminhos.
São torres construídas a sangue. Sim, pois a luta e a disputa pelo poder que iniciara com antepassados indizíveis e esquecíveis - duas famílias querendo a melhor parte de terra -, fora banhada à dor e muito sangue. Atentarei eu para esse detalhe, brevemente.
Conta-se que, numa época remota - tão remota que se comparada com as épocas pré-históricas nas quais aqueles montanhas se moveram e se ergueram pelo solo, pareceriam as mesmas – duas famílias existiam naquele vale. Se hoje ele é circundado por matas densas e virgens, talvez com uma picada ou uma trilha aqui e acolá, nestes tempos as matas eram tão longínquas que fora bastante coincidência que dois grupos distintos de pessoas tivessem tentado possuí-las ao mesmo tempo.
Mas, é nas coincidências que se abrigam os fins mais nefastos. Pois, conta-se ainda que a briga de poder fora tão intensa, que cada chefe da família havia construído uma torre, cada uma com seus troncos tirados daquela mata virgem e seus faróis de fogo, duas torres tão grandes que seria impossível que uma família não tivesse plena visão do que a outra estava fazenda do outro lado. Esses detalhes – as torres – se tornaram, na época, símbolos de identidade e encorajamento – mesmo que isso tenha se perdido com o decorrer dos anos – e fora numa noite de luar que as duas famílias, descendo os morros, travaram uma luta épica e oculta que resultou na morte de seis pessoas.
Seus corpos, deixados no leito úmido da mata, serviram de memória e reflexão para aquelas duas famílias, desgraçadas pela ambição. Tão cruel fora a ressaca moral das mulheres e jovens restantes, que os corpos ali mesmo se desfizeram, e cada família fundou sua vila em cada montanha.
O tempo passara, os lugares foram crescendo, e hoje – depois dessa breve história da terra – as vilas ainda têm uma inimizade, embora mais recalcada do que exposta. As torres têm uma energia centrífuga, olhar para elas e vê-las enfeitando a visão do campestre é como olhar para o limiar de dois mundos opostos, duas contradições que não podem coexistir. E, de fato, não puderam.
E foi nas torres, estas personificações do macabro, que começara esta história... Os incidentes são súbitos, como eu falara no início. Dois corvos. Sim, dois corvos voavam naqueles trechos. Não se sabe como, quando, ou o porquê deles estarem ali, o que se sabe é que estavam. E cada uma atingiu, em cheio, uma das torres.
Os guardiões, as duas pessoas encarregadas, uma em cada torre, de manter os farois acesos, se assustaram com súbito impacto. E cada um deles, de forma síncrona – mesmo que eles não soubessem – se inclinaram de costas para o fogo, e se aterrorizaram. Primeiro, por não reconhecerem que era um corvo. Segundo, por não entenderem como um corvo tinha colorações tão curiosas em seus corpos.
Eram os mesmos corvos que povoam os interiores e cidades mundo afora, mas tinham um detalhe a mais: seus corpos eram totalmente vermelhos. É de espanto imaginar algo tão excêntrico, mas de fato estava ali. Os corvos, mortos e totalmente incorruptos por semanas, serviram de deleite e terror dos habitantes.
Perguntas se faziam ali e acolá e, à princípio, cada cidade achava que o corvo era uma chacota da cidado defronte. Em apenas uma noite, a ponta de um icebergue imerso há seculos naquela terra úmida se fazia vísivel na luz de um luar tenebroso. Sim, pois nenhuma das cidades havia pensado que algo assim poderia acontecer. Quando as duas cidades admitiram que cada uma tinha recebido a visita de corvos iguais, vermelho rubro, os olhares se voltaram para os céus.
Sim, pois, se algo tão ultrajante havia ocorrido de forma tão curiosa, só podia ser um sinal divino. O icebergue falado, ainda estava parado, não havia emergido. Foram semanas de matutação e ponderações. Os corvos, que se negavam a se decompor, estavam totalmente inscritos na primeira página do imaginário popular. Algo se remexia na mente daquelas pessoas, tão longe de serem subjetivas em suas palavras, com suas ideações pobres e suas vidas massantes. A inimizade era recalcada, não havia nenhum comportamento que delimitasse esse sentimento de forma concreta, mas era na subjeção que havia o impasse.
E agora, esta coisa tão indizível estava enfim passando pela mentes deles.
Fora numa noite quente de julho. Os campestres acordaram com gritos na mata, e como ratos indo para a ratoeira eles saíram de suas casas simples e rústicas e desceram a encosta. Os faróis continuavam acesos, agora refletindo as luzes de tochas.
Caído no chão úmido, estava o corpo de um dos habitantes de uma das vilas. Fora um pandemônio. Talvez eu não consiga nem imaginar o nível de debate e agressão verbal que houve naquela noite. Enquanto a mulher chorava pela morte súbita do marido, as pessoas subiam as encostas com ódio em seus olhos, jurando vingança.
A outra vila sequer sabia o que dizer em sua defesa, já que cada um se negava do ato. E foi então, que eles tomaram aquele como ultraje e armação, como se aquele corpo fosse um mártir de uma sabotagem, um plano maligno. Mais uma vez, o icebergue emergira, e sua superfície gélida congelaria a pele de quem se abraçasse em seu corpo de gelo. Era o início do fim.
Tão densa foram as semanas sucessivas, que quando o segundo corpo aparecera, vários homens se armavam de espingarda e se escondiam nos arredores das montanhas. Em breve teria início uma guerra. Um dos prefeitos, talvez o mais ambicioso, percorria com o dedo indicador um mapa feito às pressas, enquanto era iluminado pelo fogo da torre atrás de si e fumava um charuto.
É terrível o que se sucedeu. Quando o prefeito olhara pela janela e dera a última baforada, fora visto uma criança descendo as encostas. Onde estava sua mãe, ninguém sabe, talvez no calor do momento ninguém estivesse prestando atenção a esses detalhes, mas apenas eram guiados pelo visão. A criança, em seu traje de inocência, tropeçava nas pedras e trazia na mão algo que ninguém ainda conseguira identificar.
Foi na luz do pôr do sol, aquela iluminação quente e tétrica, que a pena vermelha reluzira na mão do garoto, que agora saltitava na trilha. Foram momentos de horror. A cidade vizinha, temendo que aquilo fosse uma distração, não sabia o que fazer. Talvez, em um deles, o sentimento tinha virado ódio, pois uma flecha cortara o ar e transpassara o coração do pequeno.
É curioso, no mínimo estranho. O sentimento que tomara conta daquelas pessoas ainda era indizível. Não importava quem mirara ou atirara. Não importa quem era a criança ou quem era sua mãe. Seu signo era o puro desfecho em si. Aquilo tinha quer acabar. E foi, assim que o sol se pora e a noite jogara seu manto negro sobre o mundo, que as duas cidades desceram as encostas. Os que estavam na mata, se dirigiram a trilha. Não importava também como seria a luta, já que alguns seguravam facas, lanças ou pistolas.
Foi sob a luz da lua que a maldição dos campestres se repetira, mesmo que as tenazes do tempo tivessem apagado totalmente as lembranças conscientes de seu primeiro feito. Talvez, cada golpe dado por alguma daquelas pessoas tivesse um significado que encorajasse ainda mais a dispusta. O icebergue agora estava todo emergido, prestes a colidir com um Titanic qualquer. E o barco que colidira com a pedra de gelo fora a sanidade.
É difícil narrar a luta em si. Talvez, quando a luz da manhã atingira os corpos sanguinolentos e moribundos, a visão das facadas e tiros, os gritos e puxões tivessem ficados mais claros. Mas o último cidadão do vale expirara, e os corvos, deitados em seus altares, abriram os olhos. Tomados de curiosidade, eles se ergueram na esteira e olharam para o céu. Mas logo voaram, pois o destino e coincidências fatais necessitam de um gás inicial.
Enquanto voavam pelo céu, buscando outros mundos, talvez – em suas memórias de corvos – não pensassem nos estragos que seus corpos vermelhos trouxeram. Mas o fato é que, uma cor apenas fora o elemento que desencadeara toda uma estrutura coletiva, antes social do que psíquica, e mais psíquica do que muitos e muitos casos de consultório.
Encerro aqui esta história, e deixo como reflexão um detalhe: até onde se embrenha o ódio?