A REZA DO GATO PRETO

 

     Corria o boato de que Zélia andava traindo Alfredo. 

 

     Numa madrugada quente de março, ela se levantou cuidadosa da cama, movendo-se de forma felina e desconfiada. Jogou o lençol para o lado, e escorregou suavemente para o chão, sempre observando se o outro abria os olhos.

 

     Alfredo como uma estátua, mal movimentava o diafragma no ato de respirar. Àquela noite ele nem roncava, como lhe era usual.

 

     De repente um espirro!

 

     Nossa que susto!

 

     Zélia que andava silenciosa, como dizem, pé-por-pé deu um pulo e se voltou em direção à cama. Alfredo dormia a sono solto, como um bebê!

 

     Com o coração disparado, mas cautelosa, ela continuou sua empreitada. Parece que a sensação do escuso torna o ato mais empolgante, delicioso, com um sabor especial de aventura, acompanhado por uma corrente elétrica que sobrevém na coluna e percorre todo o corpo no afã de ser apanhada... Resultando num estado de tepidez, Zélia chega a salivar arfando em soluços diminutos e autocontidos.

 

     Joga a manta por cima da camisola e sai silenciosa porta afora, desaparecendo no deslumbre da noite enluarada.

 

     Alfredo, que na verdade fingia dormir, levanta correndo e sai desembestado atrás da mulher, na esperança de segui-la e descobrir o seu segredo. A decepção de imaginar-se traído, tinge de vermelho a sua visão, turvando sua mente. O ódio que experimenta o faz grunhir e arrancar os cabelos da cabeça numa angustiante sofreguidão... Ele chora e cai de joelhos. Perdera-a de vista!

 

     Desmaiou ali mesmo como um indigente, no chão de terra do quintal. Acordou com a mulher acariciando-lhe o rosto.

 

     - O que ocê tá fazeno aí homi?!

 

     Ainda desorientado Alfredo tentou explicar.

 

     - Acordei c'ocê saino da cama. Vim atrais d'ocê! Aonde tu foi a essas hora, muié?

 

     - Vixe, homi, se avexe não! Qui vim foi na casinha, visse?!

 

     Concatenando as idéias, e voltando a si, o ódio voltou a saculejar-lhe o peito. Tinha certeza de que a mulher mentia, pois o Guido, o Maroto e a velha Goró o haviam alertado, de que Zélia enfeitava-lhe a cabeça com um belo par de chifres.

 

     "Ah, diabo! - pensou ele: minha vontade é estrangulá essa mentirosa e traidora do demonho!".

 

     Zélia sorria faceira, com aquele jeito fogoso feito o diabo e um olhar que denunciaria seu blefe até a quinta geração. Contudo, ela levantou seu homem do chão e o levou para dentro de casa. Tratou dele, deu-lhe uma caneca de café, e foi-se deitar.

 

     Pelo menos àquela noite, tudo passou...

 

     Noutro dia, como de costume na roça, Alfredo foi afogar sua mágoa num copo de pinga. Contando todo seu infortúnio para os amigos debochados, que faziam chacota com a sua condição de corno!

 

     Alto lá!

 

     - Corno é uma pinoia! O pessoar só acusa. Mais ninguéim teim prova, orais! - Alfredo deu aquele senhor tapa sobre a superfície metálica da mesa, fazendo-a tinir.

 

     - Hahaha

 

     - Hihihi...

 

     Caçoaram os amigos, depois do susto.

 

     - Alfredinho, ocê é besta sô! - Guido caçoava - Mas tu é memo o marido da pinoia!!!

 

     - Hahaha

 

     - Hahaha

 

     Maroto pôs-lhe a mão no ombro em tom solene de consolo e arrematou:

 

     - Meu cumpadi. Tome tento que tua batata já assou!

 

     A velha Goró dona do bar que observava o coitado de longe, sendo tripudiado pelos amigos da onça, com dó dele, aproximou-se furtiva e o chamou.

 

     - Alfredo, dê um chego aqui meu fio!

 

     - Senhora, D. Goró?! - Ele respondeu indo ter com ela.

 

     A velha o levou para uma salinha nos fundos do bar. Os dois cruzaram um portal passando por uma cortina de palha. 

 

     - Se achegue. Sente aí. - D. Goró indicou-lhe um banquinho baixo de madeira. Após vê-lo sentar, ela dirigiu-se até uma pequena cômoda de madeira antiga e desgastada pela ação do tempo. Agachou-se. Abriu uma gaveta e retirou um livro

empoeirado e antigo, de capa preta. Tratava-se do famigerado e temido livro de São Cipriano, o feiticeiro.

 

     - 'Cê sabe lê meu fio? - inquiriu ela voltando-se para Alfredo e mostrando-lhe o livro negro. A velha segurava-o com respeito e ar solene.

 

     Alfredo tossiu.

 

     - Sei sim, D. Goró!

 

     - 'Cê sabe iscrevê, meu fio?!

 

     - Sei sim, D. Goró! - Replicou ele novamente intrigado. 

 

     O clima de mistério mesclado com cheiro de mofo do ambiente, causaram náuseas nele ao mesmo tempo em que sentiu um medo súbito e irracional irromper sua espinha como um gélido calafrio.

 

     - Pois entonce, tome. Aponte esse lápis e anota nesse papel a Reza do Gato Preto. Ela vai ti protegê contra u mal e ti vingá di teus inimigo!

 

     A velha entregou-lhe o livro de São Cipriano, junto com uma folha amarelada de caderno uma faca afiada e um cotoco de lápis sem ponta.

 

     Intrigado, Alfredo pôs-se a fazer o indicado pela velha. Em seguida folheou o livro em busca da dita "Reza", quando a encontrou, tomou nota na folha amarelada, enquanto subvocalizava as palavras a medida em que lia.

 

     "Gato preto, que tens sete vidas, pela força de tua magia, que eu seja esperto e ladino, e que meus inimigos não me ataquem, pois contra eles eu tenho sete vidas e sete defesas: a do alho, a da água, a da luz, a do fogo, a da terra, a da maçã e a da força da chave de Salomão."

 

     Uma sensação de poder estufou-lhe o peito!

 

     A velha sorria enigmática, enquanto apanhava de volta seu livro e o guardava na cômoda.

 

     Depois de agradecer pela orientação e pela ajuda da velha, Alfredo saiu ruminando um pensamento, e sequer deu atenção quando seus amigos o chamaram de volta para beber.

 

     "Oxe! Será qui D. Goró é bruxa?!"

 

     Dobrou o papel e o enfiou no bolso de sua calça. Seguiu a campear os bois de seu patrão com àquela estranha sensação de que havia sido ajudado pelo diabo.

 

     De noitinha, ao voltar para casa, não encontrou sua mulher. Havia saído. àquele sentimento estranho voltava à tona! Um misto de ódio, impotência e frustração o sufocava. Quando, de repente, Alfredo enfiou a mão no bolso e apanhou a folha de caderno contendo a oração.

 

     Acendeu um lampião e sentou-se à mesa. Uma lágrima corria em sua face, enquanto ele comprimia com força o papel em sua destra. Havia um bilhete deixado por sua mulher sobre a mesa. Dizia que fora até a casa da Lurdinha vender o cuscuz e a pamonha que fizera esta manhã. 

 

     "Vender cuscuz o quê, vender pamonha o quê". - Ele pensou revoltado, amassando o bilhete. "O único "pamonha" aqui sou eu".

 

     "Mas hoje essa traidora vai ver só o qui é bom pra tóssi".

 

     Levantou-se decidido e parou diante do espelho no quarto. Fitou a folha com a Reza do Gato Preto, e, com intenção, recitou-a encarando seu reflexo.

 

     "Gato preto, que tens sete vidas, pela força de tua magia, que eu seja esperto e ladino, e que meus inimigos não me ataquem, pois contra eles eu tenho sete vidas e sete defesas: a do alho, a da água, a da luz, a do fogo, a da terra, a da maçã e a da força da chave de Salomão."

 

     Tempos depois, e nada da mulher voltar. Desanimado, Alfredo deitou-se e fingiu dormir. Quase meia hora depois, ele ouviu passos abafados. Continuou seu fingimento, para ver no que ia dar.

 

     Ela entrou, foi até o quarto. Estacou perto da cama, observando-o por alguns minutos. Depois, saiu novamente.

 

     Sussurros tomaram o aposento instantes depois.

 

     "Vem"; "Entra devagar"; "Está dormindo"; "Ele está sempre dormindo, esse traste"; 

 

     "psiuuu"; "Fale mais baixo"; "Não vai dar pra trás agora"; "Temos que fazer";

 

     "É perigoso"; "Ele está desconfiado"; "Se descobrir mata nós dois"; 

 

     "Vamos! Seja homem! Faça!"

 

     A luz do lampião fez uma faca nova de aço reluzir no ar. Um movimento ascendente, em seguida um descendente...

 

     "O que está fazendo?!" "Ficou louco?!"; "Pare!"; "Pare!" "Ohhhh... D-Deu-s, N-nãaaooo"...

 

     Seguidamente a mulher pérfida foi golpeada pelo assassino, que se viu engolfado por um vórtice negro de pesadelo e horror. Em sua insanidade temporária, o amante pensava estar esfaqueando o marido, quando na verdade matava sua amada, a traidora Zélia.

 

     Banhado em sangue o assassino urrava fora de si, aos pés do corpo exangue de Zélia. Sem entender o que havia acontecido.

 

     Guiados pelos gritos, os vizinhos invadiram a casa e se depararam com a horripilante cena. Em seguida dominaram o assassino, que não reagiu. 

 

     Em cima da cama, Alfredo observava impassível o desenrolar dos acontecimentos. Parecia estar em choque, todavia, um observador mais atento perceberia que ele estava em êxtase. Enfim se vingara da traidora, sem precisar mover uma palha. Seu próprio amante a matara. E quem diria. O maldito mancebo, Jonas. O filho do fazendeiro local. 

 

     "Não... A Reza do Gato Preto que a matou". - Um pensamento extravagante veio-lhe à cabeça.

 

     Em meio à confusão, a velha Goró entrou na casa. Ao adentrar o quarto, procurou por Alfredo e encontrou-o sentado imóvel sobre a cama. Ela sentou-se ao seu lado, e sem dizer uma palavra tomou suas mãos entre as suas. Alfredo fitou-a inexpressivo. A velha sorriu-lhe com ar de cumplicidade, meneando a cabeça. 

 

     Muito tempo depois que todo àquele horror passou, ele não soube dizer se vira realmente àquilo ou se não passou de alguma espécie de insanidade temporária, decorrente do trauma vivenciado. Mas àquela fatídica noite, quando D. Goró tomou suas mãos e o encarou, ele poderia jurar que a velha bruxa tinha olhos de gato.

Frater Mandrake
Enviado por Frater Mandrake em 28/04/2022
Reeditado em 06/11/2024
Código do texto: T7505241
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