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Júlia observava o pequeno David cercado por maquiadores e sorria um sorriso largo de orgulho de mãe.

 

– Acha mesmo que ele vai conseguir dizer as falas?

– Ele não vai ter falas… – Respondeu T.Bone com um ar meio distraído.

 

T.Bone era de longe o pior namorado que Júlia poderia arranjar. Mas com a idade, uns quilinhos a mais e uma autoestima quase inexistente, Júlia sentia que ele era tudo o que ela podia conseguir. O menino precisava de uma figura paterna mesmo que fosse uma “não muito boa”. No terceiro encontro ela o deixou entrar em casa e passar a noite. Ele olhou David e deu um sorriso cínico. O garoto brincava com um lego, mas não conseguia criar nada que fizesse sentido.

 

– Fala, pequeno. – Ele disse sem o menor carinho. – O menino continuou destruindo o lego batendo com as peças no chão.

– Você não tinha me contado que ele tinha um retardo… – Concluiu, enquanto se desfazia das roupas ficando apenas com um pequeno short. A partir dali T.Bone estava lá todos os dias e dava todas as ordens também. Mas… pra Júlia apenas o fato dele não ser violento e ser de grande ajuda com dinheiro, compensava toda a falta de carinho. T.Bone era dono de um pequeno restaurante de boa comida e bom publico. Conhecia meio mundo de gente e Júlia adorava isso nele. Era um verdadeiro boa-praça. Mal sabiam as pessoas que na verdade, era preguiçoso, egocêntrico e insensível.

 

Certa noite conheceu o diretor de um filme. O homem disse que precisava de um garotinho pruma cena pequena. Mas segundo ele, a criança tinha que: “não se importar demais com cenas violentas…”, pois estava sendo: “muito difícil encontrar pais que aprovassem essas coisas…”.

 

– Sou o seu cara meu amigo. – Disse T.Bone. E sem ao menos conversar com Júlia, confirmou a presença de seu enteado num filme de terror de baixo orçamento.

 

Ao chegar em casa muito bêbado e muito animado contou a novidade pra família. Júlia levou a mão ao peito nervosa e confusa. O dinheiro era grande e era necessário… Ela não conseguia contrariar T.Bone então deu um riso forçado e comemorou, tentando explicar com todas as palavras que pôde, para David… o que estava por vir. O menino balançou a cabeça positivamente e olhou nos olhos da mãe por alguns segundos, coisa que ele raramente fazia. Parecia uma reação positiva.

 

No dia da gravação… quando finalmente David ficou pronto, puseram-no uma tenebrosa mascara de Satanás.

 

– Não entendo… Pra quê a maquiagem se ele vai usar uma máscara?! – Perguntou Júlia.

– Não tente entender esse povo da arte, Baby… – Suspirou T.Bone abraçando-a e beijando-a no pescoço. Tudo que T.Bone podia enxergar eram cifrões. “Esse menino tem de servir pra alguma coisa…”, pensou. Ele não o odiava… Apenas acreditava que teria que cuidar do garoto pra sempre e não gostava muito da ideia. Mas era um menino quieto, não dava trabalho. Mal se sabia quando estava por perto. Ele pensava em ter um outro filho um dia… “Um filho normal.”, dizia… Mas, Júlia não queria.

 

David ficou pronto… Era um pequeno diabinho. A máscara era grotesca… vermelha, com chifres enormes. T.Bone se aproximou de David tentando fazer, de sua forma, um ar paternal se agachando em sua frente acariciando seus ombros.

 

– Ei cara. Você só precisa fazer tudo que o diretor mandar, OK? É rapidinho, tá bom? Daí a gente pode comprar uma porção de brinquedos pra você quebrar! Hahaha… – Havia um pouco de verdade naquele carinho, mas T.Bone jamais poderia assumir. Porém, Júlia em seu eterno otimismo, conseguia ver claramente.

 

Um carro que quebrava no meio do nada numa noite de Halloween; Dentro do carro… três adolescentes: dois garotos e uma garota. Estavam bêbados e ouviam Heavy Metal. Desceram no meio nada, com uma garrafa de bebida sem se importarem com o fato de estarem perdidos no meio do nada. Cantavam e cantavam… dançavam e diziam palavrões. Até que o pequeno Diabinho surgia segurando uma faca enorme e enferrujada. Perseguição e muita matança. Era um filme bem tosco… Jatos de sangue falso e muito grito. Júlia não estava gostando nem um pouco do que via e T.Bone não dizia nada. Mas também não estava mais tão contente. De qualquer forma, logo tudo estaria acabado e voltariam com muito dinheiro pra casa… Ele compensaria David.

 

– Ele se saiu bem, Júlia… Me impressionou até. – Disse T.Bone ao fim da cena.

 

David veio até eles ainda fantasiado, mas segurando a máscara em mãos. Sorria, estava feliz… era incrível.

 

– Posso levar a máscara comigo? – Ele perguntou ao padrasto. – Era a primeira vez que David se dirigia diretamente a alguém, que não fosse sua mãe. Os olhos de T.Bone se abriram ao máximo e ele coçou a garganta sem jeito, tentando disfarçar qualquer sentimentalismo.

– Hã… Claro… CLARO GAROTO!! Hoje é teu dia!

 

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Chegaram tarde da noite em casa, pois pararam no shopping e compraram uma enorme caixa de Legos para David. O menino parecia feliz, mas já estava novamente desligado do mundo e todas as tentativas de conversa com ele foram em vão.

 

– Não abra isso hoje. – Disse T.Bone num tom áspero, arrancando bruscamente a caixa de brinquedos de David, que permaneceu olhando pro nada. – … er… é que já tá bem tarde, tá bom? Amanhã quando você levantar você brica.

– Vá dormir querido. – Completou Júlia, puxando-o pela mão até o seu quarto.

 

Passaram-se algumas horas…

 

David estava deitado no escuro de olhos bem abertos, piscando junto com o barulho do relógio da parede. Até que finalmente resolveu se sentar…Um quase sorriso se formou em seu rosto, e ele permaneceu ali por quase uma hora sem se mexer, até que se levantou bruscamente, como se tivesse tomado um susto. A Máscara de Satã estava em cima da escrivaninha que ele nunca usava. Ao vesti-la andou devagar até o banheiro e se olhou no espelho sem acender as luzes. “Travessuras?” – Perguntou sussurrando.

Desceu as escadas sem fazer barulho, pois usava apenas de meias. Era um pequeno Satanás usando pijamas azuis e meias do Mickey Mouse. Ao abrir a gaveta de facas, ficou indeciso e deu um – o primeiro de sua vida – riso incontido de menino fazendo traquinagem. Escolheu uma enorme faca de cortar peixe. Tocou-a na ponta, e mesmo com cuidado, tirou um pouco de sangue do dedo indicador… Estava muito amolada… ele muito animado…

Os passos inaudíveis foram em direção do quarto. O breu era intenso, mas David conhecia bem a casa e andava com facilidade no escuro se aproximando da cabeceira da cama. Nos segundos seguintes a única dúvida em sua mente era: “Quem vai morrer primeiro?”. Inesperadamente a luz se acendeu…

 

– SUUURPRESAAAAAAAAAA!!!!! – David largou a faca no chão de susto.

 

Estavam lá: sua mãe, T.Bone e algumas pessoas do Set de filmagens como os jovens atores da cena do carro e até mesmo o diretor do filme.

 

– Pensou que iríamos esquecer seu aniversário Dav… David…? – um silêncio se fez – Por quê você tá de máscara, filho?! – Todos ficaram mudos, atônitos e olhavam entre si.

– Filho, o que ia fazer com esta faca?

– David sorriu…

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 28/04/2022
Código do texto: T7504694
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