M” se sentou… mãos e braços trêmulos, apontados pra barriga.

Você saiu sem comer carne? – Perguntei. Ela me encarou com olhos tristes… Se eu pudesse filmar apenas seu rosto durante as consultas, ela era apenas mais uma adolescente com olhos entediados e infelizes. – Não, não… Eu comi um pouco, sabe… daquele “jeito” que a gente conversou. “Crua e etc, etc”. Eu… ah, sei lá… só não me sinto bem. Eu não consigo ficar satisfeita… – No caminho pra cá, você ficou olhando na rua… as Pessoas?

Fiquei, sim… – “M” estava parada… ESTÁTICA de tal maneira que indicava total desconforto no divã. Ela não deitou e não se encostou, não quis tirar os sapatos, nada… Se sentou com as pernas juntinhas e mal se mexia. Apenas olhava. Seus olhos percorriam todo o consultório nos mínimos detalhes. Desde a mesinha de centro logo em sua frente (com alguns bombons e livros, biscoitinhos, frutas, comida que ela ignorava) até a escrivaninha, ar-condicionado, cortinas, um pequeno altar budista que eu fiz (mas que no fundo… nem a mim mesma convencia). Tudo ela olhava.

Eu saio de óculos escuros na rua. Fico tentando me controlar, não olhar, mas… Não dá. Nem sempre… Eu as VEJO da janela do apartamento. Fico olhando da varanda… E… cê sabe… eu, eu… Ah!! Semana passa eu consegui DIZER em voz alta como você pediu, mas hoje…

Você sente desejo de COMER elas?

Desculpa, hoje eu não consigo falar… hoje não…

Mas você sente o desejo… E aqui é um lugar seguro “M”. Onde podemos falar sobe tudo que quisermos. – Ela sempre tinha uma desconfiança num quase sorriso. Mas seus olhos brilhavam.

Então, VOCÊ tem… sei lá, tipo… Marido, filho, namorado… essas coisas?

Acha que posso contar pro meu marido, sobre você? Na mesa de jantar? Ou… Naquela “conversa de travesseiros”? – “M” riu e eu também… Era uma menina linda. Tímida? Não exatamente. Ela parecia mesmo inconformada. Seus trejeitos quase não diferenciavam dos viciados nas clínicas de recuperação. No fundo no fundo: Aqueles internos ficariam felizes se conseguissem consumir a droga sem se prejudicar e sem prejudicar no processo. Nunca conseguem. A substância é cruel, traiçoeira… gradativamente degradante. Então eles procuram maneiras de barganhar com o vício. Que lhes coloca num lugar onde, possivelmente se arrependerão depois. E lhes desloca pra perto de pessoas que, também possivelmente, lhes trarão arrependimentos… vergonha… uma espécie de “auto-nojo”. A diferença entre “M” e um viciado é que ela não tinha “provado” ainda a substância… e já vinha tentando PARAR de sentir o desejo. Mas…

Ela estava falhando.

 

**********

 

Se eu não quebrasse o silêncio talvez “M” passasse algumas sessões inteiras, sentada no sofá, calada… às vezes se balançando pra frente e pra trás, mordendo os lábios, “perguntando e respondendo” de um jeito inaudível… suas próprias questões. estou perdendo você, …”, pensei… Tive uma súbita vontade de chorar que disfarcei num sonoro e exagerado pigarro. “M” suspendeu a cabeça como se saísse dum transe. – Desculpa… nos outros lugares… ficam me fazendo perguntas e oferecendo… “coisas”.

Comida?

Sim. Será que eu fico ASSIM com cara de FOME desse jeito?!

Acho que as pessoas não podem lhe oferecer outras coisas, né?

Sim… Se me oferecerem dinheiro eu não vou recusar! Não que esteja querendo comprar nada.

– “M”, esta é uma boa pergunta… o que te diverte? Ultimamente? – “M” me olhou nos olhos, entortando um pouco a boca.

Tem um rapaz, na escola…

Você gosta dele?

Ele… bem… ELE têm piorado as coisas. Sabe… Eu sinto… uma “atração”, mas… Eu queria poder TIRAR… algum “pedacinho” dele pra mim depois… e não posso.

Entendo… – Todas as vezes em que conseguíamos entrar no “foco da terapia” que era o fato de “M” ter impulsos canibais latentes, meu desejo era trancá-la num hospital. Mas havia uma curiosidade (que também era insana) dentro de mim. Uma vontade de dizer: “VÁ em frente! Solte esse bicho que mora dentro de você… MORDA ELE, SIM!”. No fundo eu queria saber de uma vez até onde “M” era capaz de ir… Isso daria ao menos uma sensação de “conclusão”, pra mim e pra ela.

Eu sinto vontade de ficar com ele… ele até me abraçou um dia desses e tentou me beijar. Ele me faz rir… O problema é… O CHEIRO. – O olhar de “M” se perdeu mais uma vez. Passou a encarar os próprios pés e balançá-los. Tinha um olhar perdido… mas tinha também um SORRISO. Aquele sorriso eu ainda não conhecia… Nunca tinha visto. Era algo entre irônico e maléfico… Seu rosto mais uma vez suspendeu como se sua própria linha de pensamento tivesse injetado alguma alegria de viver dentro dela. Não somente alegria… O que vi naquele olhar – que “M” passou a repetir diversas vezes depois… – foi um emaranhado de intenções… Até sexuais, inclusive.

O que têm o cheiro dele…?

Não dele… O cheiro de TODOS VOCÊS. – Senti meu corpo tremer…

 

**********

Estremeci na cadeira deixando cair uma caneta; Totalmente desconcertada, tentei pegá-la rapidamente e corrigir minha postura, mas… num movimento involuntário (meu coração disparado) chutei a caneta pra perto dela. O rosto de “M” retornou ao seu “normal” extremamente aérea e constrangida. Me encarou e vi seus olhos brilharem numa tentativa frustrada de prender um choro que queria sair.

Pode pegar a caneta. Eu nunca faria nada com você…

Adotei uma postura quase robótica. E olhei o relógio. – Semana que vêm, mesmo horário? Promete tentar comer? Daquele jeitinho? – “M” seria muito burra se não percebesse meu total desconforto. Mas era uma garota inteligente. Inteligente o suficiente pra saber que no fundo eu não estava nem um pouco “OK” com tudo aquilo.

 

**********

 

M” entrou no consultório… ela não tinha vindo na semana passada; disse que tinha um “compromisso inadiável” e eu nem perguntei o que era… Estava feliz (“esperançosa” melhor dizendo) só de saber que ela tinha saído de casa e estava animada com alguma coisa. Entrou com uma vasilhinha roxa e abriu. O cheiro subiu… eram uns pasteizinhos.

Eu mesma fiz! Descobri que gosto da minha comida. Tenho feito uma PORÇÃO de pratinhos. Trouxe pra você! – “M” estava radiante! Olhei os pastéis e o cheiro subiu… realmente parecia muito bom. – É de quê?

Frango com catupiri…

Ficamos alguns minutos apenas comendo juntas e tomando café. – Mas, me conta… Algo aconteceu? Vou tentar adivinhar…o paquera do colégio…?

haha eu SABIA que você ia perceber… – Enquanto comíamos e conversávamos “M” esbanjava um constante sorriso de adolescente apaixonada. Por dentro me senti aliviada, e ao mesmo tempo… Nem tanto. Uma desconfiança me cutucava no fundo da minha percepção. Minha consciência tentava me informar enviando alertas convertidos em palpitações… uma inquietação que geralmente não tenho. E minha consciência estava certa… Estava me preparando pro que viria depois. Aquela foi a última sessão de “M” no consultório como uma pessoa livre…

 

**********

 

Dois dias depois eu estava em casa dormindo… Era meu dia de folga e já era perto de meio-dia, meu marido ligou. Ele estava fora do país, participando de um simpósio… Devido ao fuso horário, eu não esperar ligações dele durante a manhã.

Meu Deus! Que BOM que atendeu! Você está bem???

Estava dormindo… Por quê não estaria bem? – Ele ficou mudo no telefone. Mas eu podia ouvi-lo respirando rápido e com força. Parecia desesperado.

EI! Eu estou BEM e em casa… O que aconteceu?

ESTÁ EM TODOS OS JORNAIS, AMOR….! TODOS… TODO MUNDO SÓ FALA NISSO, A NOTÍCIA CHEGOU AQUI TAMBÉM.

De quê?

Aquela menina… que você estava tratando. – Engoli seco.

De repente, meus pensamentos ficaram muito mais rápidos do que eu suportava. Comecei a suar e senti um verdadeiro pânico. Por alguns segundos intermináveis eu não queria saber as notícias. – Você tá na linha?!

Tô, desculpe… você diz… “M”? É dessa pessoa que você tá falando? O QUE HOUVE COM ELA?

Ela sequestrou um garoto da escola e comeu várias partes do corpo dele!!

Desliguei. De repente tudo ficou lento em minha volta… uma câmera lenta enquanto eu andava pela casa, chorando, falando sozinha, gritando…Repetia em voz alta “não, não, não, não…!!!”, balançava a cabeça. “NÃÃÃO… NÃO, NÃO, NÃO…”. O telefone não parava de tocar e não era só meu marido; eram todos. Desde colegas da faculdade, até meus pais, familiares, amigos, outros psicólogos, professores, todos os outros clientes… E também… diversos números desconhecidos que eu tinha certeza de ser a imprensa. não tenho obrigação de lidar com isso… tenho?! Não, não, não… não…!!! Sim é CLARO que você precisa lidar com isso! PRECISA, sim.”. Finalmente tive coragem de procurar as notícias sobre o ocorrido. “M” estava lá em todas as capas. Em todos os vídeos. E ela estava… RINDO… Ela sorria, sim… A mesma “M” sorridente do último dia. A mesma “M” com aquele sorriso cheio de más intenções. O mesmo sorriso que me assustara há semanas atrás. Agora parecia a única cara que ela sabia fazer. Pois esta era ela… a verdadeira “M”.

O garoto sobreviveu… Ele teve pedaços da coxa, braço e pedaços de um lado do rosto, arrancados. Como esse menino pode seguir em frente depois de fazerem isso com ele… Meu Deus?

 

**********

 

Fui conduzida por enfermeiros… Encontrei “M” totalmente imobilizada numa cama. Ela me olhou e sorriu. Mais uma vez “aquele” sorriso doentio… cheio de maldade. Puxei uma cadeira pra perto. Acho que tentei sorrir (ao menos penso que tentei) e não consegui. Devo ter feito uma careta triste…

Como você se sente… agora. Aqui, nesse lugar…?

Me sinto… satisfeita. Ao menos…

A foma que você fez… O “método”… você sempre quis fazer assim, desse jeito?

Eu não fui ruim… Vocês criam galinhas, estudam milhares de formas de se manter um boi vivo, um bezerro macio… Então… – “M” deu de ombros enquanto me respondia. – Eu fui só uma HUMANA, comendo uma coisa.

De repente sua insanidade parecia nítida e clara como vidro. Ela não precisava de terapia, qualquer um em cinco minutos já sabia o que ela era. Sabia que não tinha mais volta; ela só precisava de contenção dali em diante. Me levantei, olhei-a nos olhos uma última vez…

Se lhe consola, eu realmente gostava MESMO, de você.

E eu de você, “M”… – Fui andando tentando manter passos firmes até a porta, sem olhar pra trás. Meu rosto e meus olhos queimavam de vontade de chorar. Eu só queria ser teletransportada daquele hospital pro meu quarto, meu marido, meus filhos…minha vida.

AH! Doutora! Só mais uma coisa… esqueci de falar. – Olhei pra trás fingindo impaciência.

Sabe, o pastel que a gente comeu…? ERA ELE! – Atirei minha pasta no chão. Meu corpo cambaleou… Os enfermeiros se aproximaram. Apertaram um botão vermelho na parede. “M” tinha um olhar confuso como quem não entende “motivo de tanto alarde”. Ficou em silêncio enquanto eu vomitava no chão, chorava e gritava.

É que gosto de comer acompanhada. – Disse enquanto se virava de lado, deitando na cama.

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 18/03/2022
Reeditado em 18/03/2022
Código do texto: T7475596
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