CONHECENDO O MEU PAI

 

Desde o sumiço de uma tal de Dona Zilda, quando meu pai ainda era rapaz… o casarão nos limites da cidade de Ballerina City permanecia vazio, por vários e vários anos. Durante minha infância as crianças da cidade diziam que a casa era mal-assombrada pelo espírito da PRÓPRIA Dona Zilda e os idosos reforçavam nosso medo. Talvez porque ficava mais fácil nos trazer de volta pra casa na hora do jantar: “Olha que Dona Zilda vem te pegar…”. E a criançada disparava correndo com medo, para dentro das casas. Mas eu já estava crescendo … meu pai, que era um homem muito sério, distante e rigoroso me chamou pra conversar… olhou pra mim por debaixo dos seus óculos de leitura, com aqueles olhos sempre cansados…

– Senta aí… Bruno, fale comigo… – Eu acho que tinha mais medo de meu pai do que de qualquer história de fantasmas. Não sabia o que estava por vir… Ele nunca tinha me mandado sentar no mesmo sofá que ele. Éramos distantes, e Pra falar a verdade mal ficávamos no mesmo recinto. Eramos muito ricos, ricos demais se comparados com o resto da cidade. Eu fui um menino criado por babás e governantas. Era como se fosse proibido ou desrespeitoso, que me sentasse no mesmo lugar que o prefeito da cidade – vulgo, meu PAI. Sentei-me ao seu lado de cabeça baixa. Minhas pernas estavam já estavam tremendo… Pela primeira vez na vida meu pai fez um gesto de carinho… Pôs a mão no meu joelho trêmulo – dando uns tapinhas – disse sorrindo:

– Ué! Você não precisa se agoniar perto de seu pai, menino! – Dito isto, tentou sorrir outra vez… Pareceu-lhe um enorme esforço. Era impressionante como ele parecia estar sempre infeliz.

– Desculpa pai… – Respondi após um longo suspiro. – Me senti morno de repente. Tudo em minha volta também, estava morno… O ambiente estava confortável e seguro. Muito mais do que vinha sendo… até onde minha memória alcançava.

– Você já tem 17 anos! Eu com sua idade já trabalhava DURO. Cuidava de sua avó… Mal sobrava pro meu próprio estômago. Seu avô … morrer numa briga de bar foi a MELHOR coisa que ele fez por nós. – Ele parou por alguns instantes encarando o vazio com desgosto… Como se encarasse o próprio pai.

 

– Desculpa pai… – Respondi após um longo suspiro. – Me senti morno de repente. O ambiente estava confortável e seguro. Muito mais do que vinha sendo… até onde minha memória alcançava.

– Você já tem 17 anos! Eu com sua idade já trabalhava DURO. Cuidava de sua avó… Mal sobrava pro meu próprio estômago. Seu avô foi um vagabundo… morrer numa briga de bar foi a MELHOR coisa que ele fez por nós. – Ele parou por alguns instantes encarando o vazio com desgosto… Como se encarasse o próprio pai. Depois continuou… – Quero o melhor pra você… filho. Tive que trabalhar demais… E… DEUS… o que me sobrou pra viver?

– O Senhor fez sempre muito bem pai, todo mundo na cidade respeita o senhor… – Respondi sentindo um genuíno orgulho. – Ele então esboçou um olhar cabisbaixo, cansado… frágil e sensível. Como se tivesse – afinal – removido uma máscara. Foi quando percebi pela primeira vez que meu pai estava cumprindo um papel, uma missão… e isso meio que… estava matando ele.

– OK… Vamos direto ao assunto. – Ele disse me parecendo um pouco constrangido. – Você é meu filho e NÃO É CERTO esconder a verdade de você. Bruno, você é a pessoa que mais confio… Carregamos o mesmo sangue. Você é meu bem mais importante. Sempre foi um bom garoto… Um menino EXCELENTE! Eu não tenho do que me queixar e não podia estar mais orgulhoso. Tudo faz SENTIDO quando te vejo crescer…

– Puxa, obrigado pai (eu estava quase chorando, mas me segurei… Meu velho queria me dizer alguma coisa e eu precisava deixá-lo falar)…

– Pois bem… QUERO VOCÊ LONGE DESTA CIDADE ATÉ O FINAL DA SEMANA. Quero você estudando e morando na capital. E principalmente: Quero você longe daquela… daquela CASA!!

– Pai… Eu gosto daqui! E aquilo é só brincadeira, não somos mais crianças e…

– NÃO ESTOU FAZENDO UM PEDIDO! VOCÊ VAI!! VOCÊ PRECISAR IR!! Me compreenda, você precisa… precisa ir… – Ele estava muito aflito e tinha um certo PAVOR nos olhos. Engoli seco. Ele estava muito nervoso, na verdade parecia… aterrorizado. Parecia que tinha visto um fantasma.

– Você confia em mim?

– CONFIO, claro!

– Pois então vou lhe contar uma história… A história da “Menina dos Olhos de Gato”…

 

… E o motivo da morte de sua mãe. – Meu coração disparou…Falar sobre a mamãe ou fazer qualquer pergunta sobre ela era assunto proibido em casa até então. Quantas vezes chorei sozinho ou tentei arrancar alguma informação das babás e funcionários.

Todos me evitavam, pareciam ter algum tipo de medo ou cumplicidade com meu pai… Era o que eu pensava. Na verdade não era – exatamente – de meu pai que tinham tanto medo. Meu coração disparou e minha respiração ficou forte. Mas tentei disfarçar e ser o “cara maduro” que ele queria que eu fosse assim tão apressadamente.

– Do que ela morreu, pai? – Perguntei, tentando conter uma imensa, súbita e inexplicável vontade de chorar.

– Sua mãe foi assassinada, filho… Apesar de dizerem que ela morreu no parto. – Sua voz estava engasgada… envergonhada. Tinha um olhar de profunda tristeza… e raiva…

Conto: "OLHOS DE GATO"

 

"Conhecendo o meu pai" (final)

 

Estávamos no verão de 1984 quando Dona Zilda – uma senhora de muita idade, muito misteriosa e que mal saía de casa, simplesmente desapareceu da cidade. Você sabe como é Ballerina City, filho… Todos comentavam e criavam teorias. Diziam que ela era uma bruxa, que passava a maior parte do tempo adorando o demônio e fazendo magia negra. E que as pessoas que tinham má sorte e perdiam a fortuna, tudo era culpa dela… Diziam que coisas ruins aconteciam com alguns moradores da cidade, e que isso se devia às maldições e bruxarias exercidas pela velha. Mas… é claro… que na verdade, o motivo era outro. Os homens da cidade torravam dinheiro em bordéis e com filhos fora do casamento, havia muita farra e muita jogatina. Não vou mentir pra você, filho… nessa época eu fazia parte desse mundo. Sempre após o expediente nas obras, eu corria entre bares e bordéis. Só parei depois que perdi sua mãe. Na época já éramos namorados. Mas, por não ser um rapaz estudado e com muito futuro… a família dela não me aceitava. Resolvemos nos casar escondidos. E então meus sogros foram obrigados a me aceitar. Com o tempo, apesar da bebida, perceberam que eu trabalhava duro e tinha ambições. Além disso era um marido amoroso e fiel… o que era raro naqueles tempos e ainda é. Como eu dizia: todos na cidade comentavam o desaparecimento da Dona Zilda, chegando ao ponto em que a polícia, junto com algumas pessoas da cidade (eu era um deles) iniciamos uma espécie de “operação de busca” pelas matas de Ballerina City… Uma busca que não durou muito tempo. Morta ou não… não fazia muita diferença pra ninguém. Até que a menina apareceu...

 

“QUEM DIABOS É VOCÊ, MENINA?”

 

Filho, eu tive apenas três grandes amigos: Seu tio Vicente, seu tio Zeca… e meu amigo João que você não conheceu, pois está morto. Andávamos juntos, trabalhávamos juntos como pedreiros e fazíamos muita farra, juntos. Mas, minhas andanças pelas noitadas de Ballerina City já estavam ficando menores. Sua mãe estava grávida, você estava a caminho. Zeca foi o primeiro a ver a Menina dos Olhos de Gato: Parada em frente ao portão do antigo casarão de Dona Zilda segurando uma boneca de pano… Aparentava ter uns sete ou oito anos…

– Ei, menina… Tá perdida? – Ele perguntou.

– Não senhor, eu moro aqui… – Ela disse, sorrindo.

– Você é neta de Zilda? AAH… E cadê ela?

– Vovó morreu… e meu pai tá chegando na lua cheia. – Completou com um olhar distraído, balançando uma boneca encardida.

No mesmo dia Zeca apareceu contando aos ventos a situação da criança “SOZINHA!! Naquele casarão horrível!”. Ficamos meio chocados… Como um pai era capaz de deixar uma menina tão pequena cuidando daquela casa enorme? Mas nossa indignação não passava de reclamações sem ação nenhuma. Pouco tempo depois a cidade já sabia da menina…

Mas só mesmo Dona Jaci, resolveu se meter… Dona Jaci era uma senhorinha que: Tenho convicção de dizer que foi uma das pessoas mais adoradas da cidade. Ela acordava cedo e rodava toda Ballerina City vendendo deliciosas tortinhas de diversos sabores. As crianças corriam atrás dela, que - sempre com um sorriso imenso - distribuía algumas fatias de graça. Quando ficou sabendo da menina, não conseguiu se conformar… “Vocês ao menos sabem o NOME dela?”. Mas, até então... tudo o que sabíamos dela, era exatamente isso… seu nome era Flora.

– Achei ela estranha… – disse Zeca… – Não gostei dela.

– NÃO FALE ASSIM! Ela é uma menina, como é que vai falar direito com UM MARMANJO chegando da obra?! Eu vou lá HOJE conhecer ela...

 

Continuando o conto: "OLHOS DE GATO" (inicio em post anteriores)

 

Vicente era o nosso amigo meio calado, mas intuitivo… E ainda É... até hoje. Era impressionante… Se ele dissesse: “melhor irmos embora”, a gente podia ter certeza de que alguma coisa ruim aconteceria… uma briga de bar ou alguma confusão. Neste mesmo dia, após a passagem da Dona Jaci: Ele nos chamou para perto e disse: “Tô sentindo uma coisa estranha… acho melhor a gente ir direto pra casa. Nada de botequim…”. – Ele não sabia exatamente o motivo, mas eu obedeci.

Filho, como já tinha contado, durante esses acontecimentos sua mãe estava grávida. Eu já ia entrando em casa quando encontrei seu avô, ele estava preocupado... sua mãe prostrada na cama, sentindo tantas dores que mal conseguia conversar. Ela sentia dores terríveis que o médico não tinha explicações. Estava perto do nono mês e… Deste dia em diante não a vi de pé outra vez… nunca mais. E o horror que ocorreu durante a noite, fiquei sabendo, na manhã do dia seguinte, pelo Zeca que não aguentou e acabou saindo de casa... Antes das seis da manhã esmurraram a porta… Seu avô e eu levantamos assustados e fomos abrir. Quando vimos era ele… Zeca, com olhos inchados, vermelhos de quem esteve chorando… Ele estava ofegante, confuso… Sentamos no sofá da sala… Ele então nos contou a tragédia. A primeira…

 

– Dona Jaci… das tortas… Foi encontrada na porta do casarão, SEM A CABEÇA! Meu Deus, era só o corpo… aquele vestido dela sabe… SEM CABEÇA!! Eu procurei meu Deus!! Eu procurei… a gente ficou procurando… de madrugada… a cidade toda… Não achamos a cabeça!!!

– Calma homem… calma… – Eu dizia, mas estava quase tão nervoso e apavorado quanto ele. – Quem fez isso?

– NÃO SEI. Ninguém sabe! Ela foi encontrada na porta do casarão da Dona Zilda. E lá só mora aquela criança! Aquela menina esquisita!

– Como assim? Uma criança? – Perguntou seu avô.

 

– … AQUELA MENINA! Eu não gosto dela!! Ela é… ESQUISITA. Vicente mesmo já falou…

– Mas é SÓ uma criancinha Zeca! Ela deve ter visto alguma coisa… Ela deve estar APAVORADA em casa! Coitada! E vocês foram olhar se não mataram ELA TAMBÉM?? VÃO LÁ! VOCÊS TEM QUE IR LÁ! – Disse seu avô.

– Pois é isso que vamos fazer… Chama lá o João e o Vicente também… vamos lá! Ela deve estar horrorizada… De lá a gente corre na delegacia pra saber se já pegaram o desgraçado que fez isso. – Falei.

Saímos de casa e ao chegarmos no casarão, o corpo de Dona Jaci continuava lá. Estava coberto com um manto, mas o sangue era indisfarçável. Praticamente todos os moradores de Ballerina City estavam ali e todos choravam ou demonstravam um enorme pesar. Batemos no portão da casa e estávamos quase pra arrombá-lo quando a menina afinal apareceu… usando um vestido rosa e segurando uma boneca, exatamente como em todas as outras vezes em que a vimos.

– Veja só… Os olhos dela como são claros e esquisitos. Meio amarelos..! – Disse João se aproximando de nós.

– Não gosto dessa pirralha… – Disse Zeca. – Mas ela não teria força pra fazer uma coisa dessas.

Todos os olhares se voltaram a criança misteriosa que morava sozinha na famosa casa mal assombrada da cidade. A menina chamada Flora. Ela então, se aproximou do corpo de Dona Jaci… Ninguém a impediu só Deus sabe por que. Sua presença mexia com as pessoas. Ela afastou o cobertor. Acho que todos queriam ver o que ela ia fazer… A menina segurou a mão já acinzentada de Dona Jaci e sorriu. SORRIU… Como o verdadeiro demônio que era… Parecia estar se divertindo! A multidão (inclusive eu) ficou petrificada, em choque. O delegado vinha chegando ao local. Se aproximava quando viu a cena. dirigiu-se até a menina e puxou-a violentamente pelo braço. “VOCÊ LARGUE ISSO AÍ!!”, berrou.

– Vai se arrepender se me puxar assim de novo!! Quando MEU PAI CHEGAR!! – Ela disse com aqueles olhos terríveis… – Me lembro de ter ficado impressionado por ela não ter chorado com o puxão e os gritos. Qualquer criança choraria… Mas ela só tinha ódio. E o encarava quase sem piscar…

 

– RESPONDA A PERGUNTA! – Gritou o delegado outra vez… – Algumas pessoas se aproximaram tentando acalmá-lo, afinal até então… Ela era apenas uma criança. Estranha, maldosa, talvez até insana… Mas apenas uma criança. – Ouvi gritos durante a noite… Mas tive medo de levantar da cama… – Ela respondeu fazendo uma cara nitidamente forçada de inocência e vontade de chorar. – Então alguém gritou da multidão “essa menina não pode ficar sozinha nessa casa!”.

– É isso mesmo… Você virá comigo. – Disse o delegado.

– Será um prazer… – Ela respondeu sorrindo.

– Antes de anoitecer, passarei aqui pra buscar você… quer queira quer não. – Sim senhor. – Ela repetiu com satisfação.

Neste momento Vicente começou a dar passos pra trás com um olhar assombrado e a boca trêmula. Zeca e eu o seguimos até que ele se encostou num muro. – Repito. Amigos… que… Pelo amor de Deus vamos ficar em casa esta noite. – Ele disse.

– BAH!! Eu estou indo tomar uma gelada e SÓ DEPOOOIS… eu vou pra casa. – Gritou o Zeca, mais uma vez contrariando conselhos.

******

“ZECA O QUE HÁ COM VOCÊ?!”

 

Filho, logo no dia seguinte… sua mãe me chamou em seu leito.

– Amor.

– Diga meu bem.

– Você acredita que o mal pode encarnar em pessoas… em coisas… e até mesmo em casas?

– Ultimamente…? Minha opinião vêm oscilando… Mas você está SEGURA aqui, nosso bebe logo vai nascer… A gente pode se mudar pra São Roque que ainda é perto de seus pais.

– Eu acho que o mal está tentando contra mim. Se eu morrer, você toma conta do bebê?

– Você não vai morrer. Está sendo uma gravidez complicada, mas… não ponha as superstições do povo da cidade na cabeça… isso não lhe fará bem.

– Alguém deveria tomar conta da cidade também, enquanto ainda ela existe… – Ela concluiu. – Me chamaram lá de fora… e eu senti alívio. Não vou ser hipócrita filho… eu evitava conversar com sua mãe. Acho que pelo mesmo motivo que evitei tanto você. Você se parece demais com ela. A sensação que tinha quando sentava ao seu lado na cama, era de que a morte cercava os quatro cantos do quarto e isso me matava de medo. Todas as manhãs sua mãe aparentava estar mais morta. Ela tinha uma certa… “Conexão” com a morte.

 

No dia seguinte ela me chamou outra vez…

– Querido… O casarão… A menininha, ela… Não entre lá… por favor, não entre lá!

Vicente apareceu na porta do quarto, sorriu… “como está o futuro prefeito da cidade?”, brincou com a gente. Depois veio entrando no quarto sem pedir licença, coisa que nunca fez. Seu rosto estava abatido. Na realidade até hoje tenho a impressão de que Vicente sabia exatamente o que estávamos lidando, desde o início.

– Venha… Zeca tá no hospital.

– O que ele tem? - Perguntei. – Foi encontrado vagando pela cidade, em choque. Dizendo coisas sem sentido, ao menos pra maioria das pessoas.

– Fazem sentido… pra VOCÊ? – Perguntei sorrindo com ironia.

– Sim. Eu acho que ele entrou no casarão. Precisamos acabar com isso. Amanhã será impossível terminar sem que haja algum tipo de… “sacrifício” de nossa parte.

– Você diz coisas impossíveis de entender, amigo… - Vicente não respondeu, continuou calado. Se aproximou e beijou a mão de sua mãe e saiu. Ela sorriu. Ele tinha um olhar de soldado prestes a entrar de cabeça numa batalha e já esperando que fosse perder.

Fomos ao hospital ver Zeca… E com exceção do momento em que perdi sua mãe, nunca vi uma cena que me deixasse mais triste. Ele estava amarrado numa cama, se secudia e babava. Seus olhos pareciam ver algo que ninguém mais podia ver… E o que quer que fosse: deixava-o num estado de completo pavor.

– Zeca… Sou eu, Bruno.

– CORREDORES NEGROS… SOMBRAS!!!! Sombras do povo que morreu nos ritos… O LOBO… na Pele do Cordeiro… O lobo… O lobo… – Ele repetia.

– Não entendi, amigão… O que você tava fazendo no casarão ontem?

– A casa de DEUS todos dizem, ela… – Ele disse.

– Sim Zeca. – Disse Vicente… – E temos uma… lindíssima aqui.

– Mas a casa do outro… aqui TAMBÉM…!! Precisa ser… destruída! Corredores, sombras… o lobo… lobo… lobo…

– Vamos embora… Ele não está dizendo coisa com coisa, preciso ficar com minha esposa.

(continuando conto "OLHOS DE GATO")

Zeca me encarou com olhos vidrados. Depois se virou para a parede e continuou falando.

– A maior das redenções… foi e sempre será… SACRIFÍCIO. Ahhhh meu Deus, meu Deus… é sacrifício demais, pra ele…!! Demais, demais…

– Olha, eu tenho mais o que fazer Vicente. Zeca é meu amigo, mas é obvio que tomou tanta cachaça que ficou MALUCO… É isso! – Vicente pegou meu braço e apertou com firmeza.

– A casa de Dona Zilda pertence ao DIABO!! Aquela criança está possuída, há muito tempo… Talvez desde que nasceu e o chama de PAI! E ela aguarda a chegada do seu PAI… AMANHÃ!! Sua mulher tá fazendo a parte dela, se sacrificando por nós e pelo seu filho que vai nascer.

Sem pensar no que fazia, acertei um murro na boca de Vicente, fazendo-o cair no chão. Sua boca sangrava. – Me arrependi instantaneamente.

– Se você não for comigo dar cabo daquela menina, hoje… EU VOU SOZINHO!

Saí da sala batendo a porta. Andei em passos rápidos, desnorteados por toda cidade, sem saber pra onde ir ou o que pensar. Vi o casarão de Dona Zilda e parei em frente ao portão de madeira. Então… A menina apareceu na janela, no andar de cima.

– Gostaria de tomar uma xícara de chá, senhor Bruno? – Perguntou com um sorriso que me deu um nó no estômago…

– Como você sabe meu nome? Nunca conversamos. O Delegado não vinha lhe buscar?

– O delegado… sim… talvez vocês devessem procurar por ele. E pelo João também. A gente podia brincar de “Achado não é Roubado”, com suas cabeças. Você brinca comigo? NINGUÉM QUER BRINCAR COMIGO! A propósito, a esposa… como vai?

– Vá se foder! Não tenho medo NENHUM de você!

– É o que te torna tão interessante! Mas hoje você terá… TE GARANTO!

Pisquei os olhos e ela tinha sumido. Engoli seco e meu coração disparou. Me senti enjoado e doente, tive que me abaixar no chão e vomitar. Porém, minha mente estava clara. – Seja lá qual for realmente o seu nome, de noite a gente volta aqui. E terminaremos essa conversa… de uma vez por todas. – Senti a voz dela como se subitamente tivesse parado bem ao meu lado e cochichado: “Eu aguardo você…”. Me virei sem olhar pra trás e corri para casa.

 

Conto: "OLHOS DE GATO"

Pt. Final

“UMA 38 E ALGUMAS FACAS”

 

Meu pai coçou a nuca como se sentisse dores terríveis no pescoço enquanto contava sua história. Manteve os olhos fechados por alguns segundos, depois sem dizer nada entrou na cozinha e voltou com um copo com uísque.

– Minha cabeça… Parece que vai explodir! – Então bebeu todo o líquido num só gole. Eu estava tão pasmo que mal conseguia falar.

– Continuando…

Quando voltei pra casa… Filho… Minha maior alegria e minha maior tristeza na vida tinham acontecido. Sua avó e seu avô estavam em prantos, segurando você nos braços… e sua mãe jazia na cama, morta. Havia muito sangue no chão e já chorando e sem saber pra onde eu corria primeiro, perguntei atordoado, com uma sensação de que ia desmaiar… o que tinha acontecido.

– Ela ficou repetindo… que o demônio estava morando aqui… na cidade! E que queria levar o bebê com ele… Depois disso entrou em trabalho de parto. Não foi um parto normal. Sofreram demais. Quando ele nasceu, fechou os olhos, suspirou… e morreu. – Disse sua avó. – É um menino! – Peguei você no colo por alguns instantes e o apertei em meu peito. Lembro das lágrimas molhando seu rosto. – Não vou deixar você morrer. – Sussurrei.

Eu não era um homem de muita fé… Mas, naquele momento. Entreguei minha vida a Deus. E realmente entendi… o diabo estava do outro lado da cidade, numa casa. E ele esperava por mim. Entrei no quarto, beijei a testa de sua mãe, beijei você… e saí de casa. Já estava anoitecendo. Vicente já estava encostado no muro de minha casa, me aguardando. – Nos abraçamos. – Vamos dar cabo daquele demônio. – Ele disse.

– Como faremos?

– Ela é mesmo humana… a Menina dos Olhos de Gato. Mas está possuída já há tempo demais… Não tem salvação. Sua alma foi corrompida…É um receptáculo, mas tem poderes. E a gente não vai exorcizar ninguém. .

– A GENTE VAI MATAR ELA E PRONTO. – Eu disse. Vicente assentiu e continuou… – A casa a gente vai derrubar, tijolo por tijolo. Eu tenho aqui uma 38, e… algumas facas e você?

– Tenho minhas mãos e minha dor…

– Bastará.

 

Estávamos chegando no casarão quando encontramos Zeca entrando na casa correndo e corremos atrás dele. Ao chegarmos lá dentro, a menina estava parada na sala em frente ao seu corpo. Zeca estava no chão se contorcendo de maneira que ouvíamos seus ossos quebrando um por um. Podíamos ouvir seus grunhidos de dor. Os olhos da menina brilhavam amarelados. Seus… “olhos de gato” como dizia Zeca. Sem pensar muito eu corri como louco em direção a ela derrubando-a no chão e tentei estrangulá-la com toda minha força, mas ela gargalhava sem parar. De repente uma força invisível me fez ser jogado até a parede do outro lado da sala e o impacto me fez desmaiar por alguns segundos.

Vicente observava a luta apenas tentando achar a mira certa com a pistola e quando encontrou, acertou em cheio um tiro na cabeça da menina, que caiu morta na mesma hora. Eu despertei com o barulho e a vi no chão. Ao seu lado, Vicente estava parado de pé quase sem piscar. – Você mesmo disse… não tinha jeito… – Eu disse. Ele veio até mim e me ajudou a levantar. Tremíamos os dois… Não eramos assassinos. A gente sabia que aquilo nunca deixaria de nos atormentar. Existia uma vida ali dentro, e tivemos que tirá-la. No final das contas, com o saldo de mortes e dor… O demônio tinha vencido. – Temos trabalho a fazer. – Ele disse.

– vamos.

Pusemos fogo na menina. O fogo foi se espalhando tomando conta da casa e saímos correndo pra rua. Todos na cidade saíram de suas casas e foram contemplar a cena… Todos sabiam. Sabiam que era necessário. Ninguém dizia uma palavra… Alguns se aproximavam de mim e me abraçavam… Nada era dito.

– Meu Deus… E quem foi o louco de reconstruí-la pai?

– Ninguém, filho! No DIA SEGUINTE DE MANHÃ a casa estava lá. Depois disso ninguém mais entrou, ninguém chegou perto… É por isso que não quero você morando aqui…você não merece!

– Eu… eu… eu nunca soube disso. Isso é HORRÍVEL.

Acho que as pessoas têm medo demais de falar sobre aquilo. Guardamos na memória aqueles olhinhos de gato. A cidade simplesmente se calou...

 

18 ANOS DEPOIS...

 

Conto: OLHOS DE GATO (final)

 

18 ANOS DEPOIS…

 

Um sujeito acaba de chegar na cidade de Ballerina City às cinco da manhã cambaleando de sono. Ele segura uma mala e procura um lugar pra dormir, mas a rua está deserta. Todas as portas fechadas. – Meu Deus, parece uma cidade-fantasma… A casa que herdei… é AQUI? Nesse fim de mundo? Ele enxerga o casarão no fim da rua… – É ALI! Parece ser grande! Muito boa! – A porta se abre e uma mulher aparece. Cabelos pretos e curtos, olhos extremamente claros quase amarelos. Ela sorri. O sono do viajante passa imediatamente… – N..NOSSA!! Você é a governanta? ERA VOCÊ… No telefone?! Acho que estou com sorte!

 

– Ela sorriu outra vez.

– Eu estava esperando você…

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 17/03/2022
Código do texto: T7474423
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