A LUZ DA NOITE E AS TREVAS DO DIA
* O relato da esposa
Desde sempre tive a propensão de procurar pelos dois lados da situação, seja ela qual for. O copo meio cheio ou vazio, as faces da moeda, a luz da noite e as trevas do dia. Sou incapaz de definir se essa característica é algo bom ou ruim, dado que em determinadas circunstâncias fui impelida adiante por agir e pensar dessa maneira, ao passo que em outras coloquei-me em dificuldades.
O certo é que a história que aqui relatarei tem muito a ver com essa inclinação. Vejam, casei-me com um bom homem, de família tradicional, e juntos tivemos uma adorável filha. Ele sempre foi muito ocupado por conta das atribuições da empresa sob sua responsabilidade. No entanto, isso não impedia que se dedicasse totalmente a nós duas quando estava em casa.
Ele era um homem importante e eu sempre soube que ele utilizava seus atributos para se aventurar vez ou outra extraconjugalmente. De coração, isso nunca foi um problema, uma vez que ele sempre retornava quando tinha de retornar e, como disse, nunca falhara com as devidas atenções de qualquer espécie.
Sei que posso ser julgada por pensar assim, mas o pragmatismo me consome e não consigo imaginar o casamento como algo além de um contrato social. Desde que cada um cumprisse com o que dele era esperado, para mim tudo bem. Além do que minha consciência estaria sempre livre para agir como eu bem entendesse caso fosse de minha vontade.
Acredito que tenha ficado claro que para a instituição funcionar, as partes devem contribuir para tal e, justamente, as estruturas viriam a ruir por conta das falhas que começaram a surgir da parte dele. No início eram atrasos. Em seguida, eram pernoites fora de casa. Essas anomalias comportamentais acionaram um alerta em mim, e imediatamente me encontrei numa situação de ter de interferir, mas para isso precisava entender o que estava acontecendo.
Passei a segui-lo e descobri que ele se encontrava com uma jovem da cidade vizinha aqui mesmo na região metropolitana. A insistência em vê-la denunciava um indício de que não parecia um caso passageiro como sempre fora e isso seria uma ameaça ao contrato. Eu precisava agir e já sabia como. Daria um flagrante e exigiria que ele deixasse de ver aquela moça sob o risco de um divórcio altamente dispendioso para ele. No entanto, na noite em que eu pretendia levar adiante meus planos, algo inacreditável aconteceu.
Vi quando a garota o acompanhou até o portão de sua casa e se despediu retornando em seguida. Ele caminhou, como sempre fazia, até a rua pouco movimentada a uma quadra dali, exatamente o local defronte onde eu me encontrava, mas ele não estava só. Havia mais alguém o observando. Percebi um vulto se movimentando pelos sobrados e do seu sembante envolto pela penumbra um brilho avermelhado se destacava. Aquilo era uma ameaça, e quanto a isso não havia dúvida. Tive vontade de correr em seu auxílio, mas além da paralisia que de súbito me dominara, um pensamento me acometera: se algo acontecer a ele o mesmo ocorrerá comigo. Não posso permitir que minha filha fique só nesse mundo, sempre procuro enxergar a amplitude do cenário.
Então, onde estava permaneci. E assisti, com o horror que apenas a própria cena seria capaz de retratar, a sombra se projetar sobre o meu marido. Ele emitiu um grito curto e sufocado, mas logo parou de se debater. O brilho rubro que eu havia visto aumentara de intensidade, de maneira que pude descrever o rosto do agressor lavado num líquido que não foi difícil imaginar o que seria, assim como também fora algo instantâneo entender a natureza de sua existência. Tenho a mente aberta o suficiente para aceitar que naquele momento a vida do meu marido tinha encontrado o seu fim. O estranho o colocou sobre os ombros como se nada pesasse e, aos saltos, chegou até os telhados para de lá desaparecer na noite.
Demorei a me recompor da tremedeira que me chicoteava em espasmos. Eu soluçava e não conseguia interromper as lágrimas. Fiquei ali parada por mais tempo do que gostaria. Um turbilhão de pensamentos me assolavam. Eu sabia que não poderia dizer uma só palavra do que havia visto. De certo, me tomariam como louca, ou pior, como uma suspeita de um possível assassinato, se bem que seria improvável escapar de tal alcunha, as viúvas nesses casos sempre são tratadas assim. Era fato que dificilmente encontrariam o seu corpo, e o melhor a fazer seria relatar o seu desaparecimento e aguardar o desenrolar das investigações. Isso na maneira oficial, porque estou decidida a tomar as rédeas da situação e punir aqueles que interferiram na minha estrutura familiar. Ninguém além de nós poderia tê-lo feito e aos transgressores, o castigo.
Os dias seguintes foram difíceis. Apareci na televisão e olhei diretamente para a câmera suplicando para que sequestradores imaginários devolvessem o meu marido. Naquele momento senti um ódio imenso de mim mesma por saber a verdade e ter de exprimir a dor de modo incorreto. O que me confortou foi entender que ao menos aquele teatro teria sua serventia em minhas intenções.
Para obter sucesso em minha empreitada era preciso compreender todos os elementos da natureza da criatura. Assimilar seus hábitos, estudar suas fraquezas, saber exatamente o que seria preciso fazer.
Meu plano era simples. Passei a usar meus meios para monitorar a região do ataque. Como todo predador, aquela criatura também deveria ser territorialista. Com as observações ao longo dos meses, entendi que havia realmente estabelecido sua área de caça naquela região e que a investida ao meu marido possivelmente fora algo circunstancial, uma vez que ele preferia vítimas do gênero feminino, normalmente mulheres solitárias ou deslocadas socialmente.
Não foi tão difícil identificá-lo e chamar sua atenção, predadores, via de regra, não se preocupam em serem caçados e esse foi o seu erro. Para atraí-lo bastava que eu me colocasse em seu campo de ação.
Por noites eu percebi ele me observando, seguindo os meus passos pelas esquinas e praças. Eu sabia que ele não me atacaria de primeira, e entendi isso ao fazer com que ele soubesse de que eu estava ciente de sua presença ali. Estabeleci uma conexão. Fazia parte do seu jogo essa dança de gato e rato e eu o atrairia para a minha ratoeira.
Eu havia alugado um sobrado na mesma rua da maldita amiga do meu marido, e deixei bem claro o endereço para o andarilho noturno há algum tempo. Ele sempre me acompanhava até lá, oculto pelas sombras, mas jamais ousou invadir meu espaço. Ele só faria isso se assim eu consentisse. E aquela seria a noite da permissão.
Como de hábito, ele me encalçou e postou-se nos galhos de uma árvore em frente à janela do quarto. Quando deslizei o alumínio e deixei o ar da noite entrar, notei um faiscar rubro por um instante. O cenário estava armado.
Coloquei-me no vão aberto e fiz um gesto com a mão, um convite explícito que o liberava a adentrar meus domínios. Minhas vestes escorreram livres até o chão, porque essa era a sua expectativa e eu não poderia decepcioná-lo.
Tornei o quarto em trevas e tomei meu lugar. Ele, de modo soturno, postou-se como uma ave de rapina sobre o beiral da janela antes de pousar para dentro do aposento. Seus olhos eram duas brasas e eu sabia que nenhum segredo a noite guardaria deles.
Suave, mas decidido, ele saltou sobre a cama, afastou os lençóis e cravou os dentes na maciez da carne exposta. Com satisfação, eu o ouvi gritar, cair e se contorcer no chão. Aquela no leito não era eu, era um recém cadáver que meu dinheiro de modo profano pôde comprar para atender meus planos.
O maldito se revirava como uma fera abatida. Em sua garganta escorria o líquido proibido, o sangue de um morto, e definitivamente morto ele ficaria se eu não agisse. Sim, ele não morreria tão fácil.
Com a ajuda de homens que o dinheiro pode comprar, levei meu prisioneiro para um lugar afastado e especialmente adaptado para ele. Uma cela no porão de um casebre. A ratoeira ostentava uma parede de tijolos intercalados e teto igualmente vazado, a despeito de uma pequena fresta rente a parede. Um espaço mínimo para ele se esconder se não quisesse ser incinerado pelo sol. Ela passaria bastante tempo ali. Seus dias seriam espremidos e suas noites de inanição. Sem forças para nada. Quando já não estivesse mais aguentando, eu lançaria o cadáver de um rato o qual ele teria de esticar o braço para pegar sob o último raio de sol.
Mas a minha vingança não estaria completa se eu não desse conta do outro expoente nessa equação, a vigarista que deu origem a tudo isso. Com ela seria mais fácil. De certo, sem saber o que aconteceu, ela deveria estar em desespero com o desaparecimento. Os noticiários fizeram bem o seu papel e agora qualquer faísca de esperança a faria se agarrar com unhas e dentes. Ela quer achá-lo seja por amor ou por desejo de uma boa vida. Mas a razão não me interessa. O que sei é que ela pagará pelos danos causados à minha unidade familiar.
Com um modulador de voz, liguei para seu número e lhe contei uma história de que o homem que ela procurava era refém de um grupo de sócios enganados que pretendiam torturá-lo até a morte e que eu era um capanga a vigiá-lo. Através de um acordo financeiro, eu havia me proposto a ajudá-lo a escapar e, para isso, ele precisaria da ajuda dela, pois o sequestrado não confiava na esposa ou na polícia.
Ela deveria seguir até o local no horário combinado, pouco antes do amanhecer, durante a troca da guarda, onde por um espaço curto o prisioneiro ficaria sem vigilância. Ela precisava chegar pontualmente no horário, encontrar uma chave postada ao lado da entrada externa do porão e seguir para salvá-lo. Por mais absurda que fossem as instruções, ela não só acreditou como as cumpriu, exatamente do jeito que eu imaginava e queria.
Eu estava escondida num dos cantos do porão quando ouvi seus passou descendo as escadas e sua voz chamando por meu marido. Da cela, o maldito prisioneiro balbuciava grunhidos ininteligíveis. O dia estava para raiar e logo ele teria de voltar para seu resquício de trevas, bom, pelo menos era isso o que ele imaginava.
A garota chegou ao pavimento e, seguindo minha visão, percebeu a presença na cela que ela supôs ser de quem buscava e, inadvertidamente, colocou um dos braços num dos intervalos de tijolos da parede. Sorri ao ouvi-la gritar de dor. A criatura cravara os dentes em seu pulso. A vida da garota se esvaia pela garganta ávida do demônio. Eu a deixaria morrer ali, mas ainda não era a hora. Assim, sutilmente, saí do meu esconderijo, apontei a arma com a qual praticara por meses e fiz mira no meio do peito da criatura e disparei.
O impacto não o mataria, obviamente, mas na sua condição atual seria o suficiente para lançá-lo ao chão, desvencilhando-o de sua presa. A garota, ainda atordoada, tentaria escapar o mais breve possível. Subiria as escadas, tomando o caminho de volta até o veículo numa fuga desabalada.
O demônio permanecia no chão e antes que pudesse esboçar qualquer reação, fora obrigado a rastejar de volta para sua fresta de sombras, porque a luz do dia se espalhava pela cela. Olhei diretamente em seus olhos e pude vislumbrar seu desejo. Ele queria sair dali e retalhar a minha garganta e, agora que estava com as forças parcialmente renovadas, pelo sangue roubado da garota, não acredito que encontraria dificuldades para escapar do seu confinamento.
Deixei a criatura com seus pensamentos e saí do ambiente, pois sob as novas circunstâncias só havia um local para onde ir. Não restava dúvidas de que ele seguiria em meu encalço, mas antes sei que ele procuraria a garota, era algo de sua essência. Ou ele a beberia até a última gota ou a tornaria um igual, essas criaturas não desperdiçavam sangue.
Se o que eu estudei estiver certo, a garota, pela conexão com o demônio, já sabe que está condenada à morte e que o único jeito disso não acontecer, ou de ela não se tornar uma morta-viva definitivamente, é pondo um fim na existência do ser que bebeu do seu sangue, mas ela teria pouco tempo para isso, apenas até o próximo anoitecer.
Ao cair da noite, como eu previ, a criatura conseguiu romper a barreira de tijolos em busca de liberdade. Com o gosto do sangue da garota ainda na garganta, seria fácil seguir seu rastro de modo instintivo, mas ele também não dispunha de tempo, algo tão banal em sua existência, uma vez que o próximo amanhecer acabaria com as suas chances de transformá-la num igual e o período até o posterior anoitecer seria uma morte em vida para a infeliz, que se contorceria numa dor sufocante, pois não teria sangue para supri-la e não conseguiria ir atrás de alimento porque a luz do sol não deixaria. Assim, até a noite seguinte, ela estaria definitivamente morta.
Seu radar interno o levou até uma velha fábrica abandonada. Com facilidade, seus olhos em chamas perscrutaram as trevas e encontraram a jovem recostada na parede de uma sala. Ela já deveria estar sentindo as dores da transformação, uma mudança efêmera a bem da verdade. De fato, apenas ingerindo o sangue negro de seu agressor ela teria forças para aguentar a inanição do dia e poder caçar em seguida.
A criatura mal entrou na sala e a garota correu em sua direção com ferocidade e, sem que o ser conseguisse entender, ela já tinha cravado uma estaca em seu peito, fazendo com que ele caísse paralisado. Imediatamente, acionei o dispositivo que puxava a corrente atrelada a um dos tornozelos da menina e que também lacrava a sala com grades. Agora, ambos eram meus prisioneiros.
Enquanto tentava escapar do casebre, meus homens interceptaram a garota. Seu veículo estava sem combustível, providencialmente retirado no tempo em que ela estava no porão. Esta seria a minha isca perfeita. Por trás de uma máscara, lhe falei que a criatura viria em sua procura e que para obter a liberdade, além da própria salvação, bastava que enterrasse o pedaço de madeira no peito do demônio. A estaca apenas o deixava sem ação, embora estivesse consciente. Se ela quisesse evitar o destino que a aguardava seria preciso matá-lo de fato, a decapitação seria uma boa opção.
Já livre de ocultações, confesso que enquanto contava aos meus prisioneiros as minhas motivações, percebi que a jovem realmente amava o meu marido, talvez de uma maneira que nem mesmo eu poderia ter amado. Por um instante, duvidei das minhas decisões e fiquei inclinada a jogar o facão ao meu lado para ela.
Mas ao me lembrar da instituição familiar destruída, logo fui destituída dessa ideia. Então, ordenei para que meus rapazes os levassem até o poço de pedra, uma abertura retangular no solo onde aguardariam o nascer do sol.
Assim, como peças descartadas, ambos foram jogados no buraco para serem incinerados com a chegada do brilho da manhã. Entretanto, a luz nascente já insinuava seus primeiros sinais e não ouvimos os esperados gritos de dor. Desse modo, olhei para a cova e vi a garota com sangue negro na boca e a criatura livre da estaca.
Ambos me ofereciam um sorriso de fera, as presas apontando um caminho de morte. Eles escalavam as pedras do poço com as garras, mas mesmo que conseguissem chegar até o topo e destruíssem a grade que lacrava a abertura, eles jamais escapariam da luz do sol. A luminosidade fatal que naquele momento lhes atingia os rostos quando esses apontaram nos vãos de metal.
Gritos e um terrível odor de carne queimando se espalharam no ar. Gargalhei e perguntei a eles onde estaria a eternidade, afinal? Porém, mal tive tempo de terminar de proferir a pergunta quando senti um impacto na cabeça. Antes de perder os sentidos, um dos capangas contratados dizia para o outro: “Podemos trocá-la por essa eternidade com os monstros. Eles se alimentam dela, recuperam as forças e como pagamento nos fazem iguais a eles. Cubra o poço. Muito melhor que dinheiro.”
Não sei se eles conseguiram o seu intento, mas enquanto cerrava os olhos para nunca mais abri-los novamente, senti as trevas do dia sobre mim e torcia para encontrar um pouco de luz na longa e escura noite que me aguardava.
Leia também:
ANTES DO ANOITECER
ANTES DO AMANHECER