ANTES DO AMANHECER

* O relato da criatura

Antes do amanhecer. Eu preciso sair desse lugar antes que o maldito sol ponha sua face pelas reentrâncias da parede. Eu não aguento mais um dia sendo torturado como um rato pelas mãos de uma criatura inferior, um ser tão insignificante. E pensar que me encontro aqui, preso e indefeso, a mercê de suas vontades, por minha própria culpa.

Quando a vi pela primeira vez naquela noite fria, entendi que havia algo traçado em nossos destinos, mas eu jamais poderia imaginar que o enlace que viria a unir nossas histórias acabasse por se revelar como algo tão diferente do que eu pretendia e, que no final das contas, se tornasse uma experiência tão nociva para mim. Logo para mim, tão acostumado a incutir o pânico nos corações daqueles que cruzam meu caminho.

Confesso que fui soberbo, revestido de confiança e negligência. Claro, quando a escolhi por vítima eu poderia ter estraçalhado sua garganta e me servido de sua vida como havia feito incontáveis vezes. Mas, não. Eu quis reviver uma época mais romântica, uma aura que já não existe nos dias de hoje. Vivemos tempos tão imediatos e simplistas. Eu quis que aquela desconhecida se oferecesse de bom grado a mim, do mesmo jeito que inúmeras já haviam feito numa era tão remota.

Quando faço uma escolha, não há desistência, não existe retorno, e quanto a isso não havia discussão. E, do alto dos telhados, enquanto a observava com seus passos apressados, era possível perceber que ela estava plenamente ciente da minha presença a cercá-la. Eu sentia que ela queria isso, que ansiava por nosso encontro.

Por noites eu a segui, a espera fazia com que o meu apetite se estendesse projetando um festim ainda mais saboroso ao meu paladar. Havia nela algo familiar, um aroma talvez, não sei explicar, mas essa espécie de vínculo tornava o cerco mais prazeroso, fazia com que me sentisse vivo, embora nenhuma palpitação se fizesse presente em meu peito.

Na noite definida como decisiva, escolhi um galho oculto pelas sombras numa frondosa amendoeira defronte à janela do seu quarto. As trevas da noite escura conspiravam para que minha presença se mostrasse apenas como uma sensação, a despeito de um faiscar avermelhado e ocasional do meu olhar. Mas, ainda assim, diante do vão aberto, ela fixou os olhos diretamente em minha direção e, de forma displicente, deixou o tecido que envolvia o bronze de sua tez deslizar ao encontro do acarpetado do assoalho.

Com o braço direito apontado, ela encolheu os dedos da mão espalmada num convite mudo. Em seguida, a tênue luminosidade do aposento se tornou em negrume absoluto. Então, com a fluidez inerente aos meus movimentos de aproximação, pousei de modo suave no beiral da janela e entrei. Entrei porque havia sido convidado para tal. O breu não guardava segredos de mim. O rubro em meus olhos descreveu seus contornos sobre o leito no exato instante em que a fúria assassina me dominava por completo. Afinal, era tempo demais esperando por algo tão desejado. Saltei sobre seu corpo como a fera que eu era. Venci a espessidão dos seus cabelos e finquei os dentes na maciez da sua carne.

O líquido viscoso invadiu minha garganta. Mas, o calor adocicado e usual não veio com o gesto, pelo contrário, o licor nos meus lábios era amargo e pútrido, remetia a profanação. Só então percebi que o tecido rasgado por minhas presas também não era tão tenro como deveria ser.

Logo, não tardou para que uma dor lancinante apunhalasse com afinco meu estômago. Eu queria sorver o ar como se precisasse dele para viver, pois meu corpo inegavelmente sufocava. Eu definhava de modo acelerado, a olhos vistos. Se eu fosse humano, estaria prestes a ser abraçado por aquilo que eles chamam de morte, porque eu havia me servido do sangue de uma pessoa morta.

Antes de minhas pálpebras se fecharem por um peso indescritível, ainda pude ver a silhueta daquela que eu havia desejado. Ela me oferecia um sorriso dissimulado e, mais uma vez, gesticulava para mim, porém, agora como um claro sinal de adeus.

Quando abri os olhos, o primeiro pensamento que invadiu minha cabeça foi: não fui tocado pela não existência, afinal. Eu estava numa cela lacrada por espessos tijolos intercalados. O teto apresentava o mesmo padrão de peças alternadas, a não ser por uma estreita reentrância junto a uma das paredes. Eu estava tão fraco que quase não conseguia me mexer, mas continuava vivo, ou outro termo mais apropriado que pudesse definir a minha presença nesse mundo.

Olhei ao meu redor e notei algumas carcaças decapitadas de ratos espalhadas no chão. Não foi difícil entender que a minha carcereira me alimentara com o sangue dos bichos no intento de não deixar que o sangue proibido me destruísse, mas que, ao mesmo tempo, também não me revestisse com forças suficientes para escapar do seu jugo.

Esperei por toda a noite, mas nem ela, nem qualquer outra pessoa veio me ver. A costumeira sonolência, própria das horas do dia, acariciava meus ombros, quando me dei conta de algo aterrador.

Olhei para o alto e vi uma luminosidade ganhar força pelas ranhuras sobre minha cabeça. Como flechas incandescentes, os raios do sol invadiam o ambiente e incineravam meu corpo. Não há como descrever a dor que me acometeu, e não por falta de palavras, pois estas se esparramavam fartas, moldadas pelas eras, mas sim porque não existia um verbete capaz de fazer justiça a tamanha agonia.

O único espaço livre do brilho mortal era a acanhada concavidade às minhas costas. No entanto, a abertura não passava de um nicho na pedra, insuficiente para que eu pudesse me sentar ou deitar sem ser apanhado pelo esplendor do dia. Só havia uma posição possível: de pé e sem me movimentar para os lados. Não havia como me mexer. Era como estar espremido num caixão na vertical, qualquer relaxamento significava um ataque potente e incinerador. A amplitude do teto mostrava-se maquiavelicamente projetado para que em qualquer hora do dia, independente da movimentação do sol, sempre houvesse um facho de luz me limitando naquele recluso espaço.

Quando as horas de luz finalmente se dissiparam, a presença da noite trouxe um acalento ao meu peito. Os séculos trataram de eliminar da minha memória qualquer vestígio de como era a dor, mas bastaram algumas horas para que as lembranças de uma vida mundana, e há muito perdida, viessem à tona. Eu era apenas uma sombra do meu verdadeiro existir.

Eu não fazia a menor ideia do porquê daquela mulher, que me observava do outro lado da amurada, estar fazendo isso comigo. Claro, eu sempre fui uma ameaça e se ela simplesmente atravessasse uma estaca em meu coração e me decapitasse em seguida, eu entenderia, mas havia algo doentio em suas intenções.

As ameaças em minhas palavras iniciais logo se tornaram ponderações para, no fim, se converterem em súplicas. Mas nada do que eu dissesse ou fizesse seria capaz de arrancar qualquer som da boca daquela maldita.

Os dias e noites se alternavam em tortura e loucura. Eu já não aguentava mais o som dos meus próprios gritos e os demônios que eu costumava disseminar na mente das minhas vítimas agora me faziam companhia num coro próprio dos infernos. Eu já sofria há trinta desses ominosos ciclos de dor e apreensão sem uma reles gota de sangue na boca. Para mim, que sempre desdenhei do tempo, pude entender toda a crueldade que ele era capaz de proporcionar, pois esse ínfimo intervalo, que numa situação normal não passaria de um suspiro, acabara por se tornar a mais longa jornada da minha vil existência.

Nessas horas de sofrimento e pesar, muitos homens se apegam à fé e encontram a resiliência ou resignação, mas como alguém como eu, uma criatura que não compreende o próprio existir pode alcançar algo em que depositar toda a credulidade?

Eu ansiava por perecer, por desaparecer por completo, uma vergonha para os iguais a mim. Eu já não suportava e não conseguiria passar por mais um ciclo de inanição e luz. No entanto, antes do amanhecer de mais um dia, algo inesperado aconteceu.

Mesmo com os sentidos debilitados, percebi uma nota diferente no ar, era um perfume adocicado. Ouvi passos, um anúncio de que alguém se aproximava. Uma voz feminina ecoou pelo ar, um nome que não reconheci era chamado. Tentei chamar sua atenção, mas tive a certeza de que apenas um grunhido escapou de minha garganta, mas algo inteligível o suficiente para que a estranha se dirigisse em minha direção. Mais uma vez ela chamou pelo nome ao perceber minha presença do outro lado da cela de pedra. De certo, naquela escuridão, ela nada enxergava e não poderia compreender o horror físico no qual me tornara.

Ingenuamente, e para a minha satisfação, ela colocou o braço por uma das aberturas da parede. Não sei como fui capaz de me mover com tamanha velocidade, a julgar pela decadência na qual me encontrava, e sofregamente mordi seu pulso. Fui invadido por uma sensação que mal passava de um sopro em minha lembrança. O doce mel da vida enchia minha boca e escorria pelo meu rosto. A mulher gritava em desespero, mas eu não insinuava a menor intenção de soltá-la. Entretanto, um estampido seco ecoou pelo ambiente e senti um impacto que me fez cair no chão. O disparo de arma de fogo partiu não sei de onde, e, embora não fosse capaz de me ferir, foi eficiente o suficiente para me desvencilhar da moça.

O dia já lançava suas garras pelas inúmeras cavidades do abrigo, de modo que não tive alternativa que não fosse me proteger no casulo de pedra, a mais espremida e desconfortável salvação que eu tinha. Ouvi minha vítima correr pela vida, deixando o lugar e a esperança de encontrar quem quer que fosse. E, assim que ela saiu, a minha torturadora se apresentou de arma em punho. Ela não ousaria entrar para me enfrentar, não com as forças renovadas pelo sangue recém-ingerido me revestindo. De onde estava, ela não conseguiria me ferir e a única coisa que me impedia de retalhar a sua garganta eram os raios do sol poluindo o espaço entre nós. Mas era questão de tempo até a noite chegar e eu destruir aquela parede de pedra. Gritei para que corresse, para que fugisse e se escondesse no mais sórdido buraco, mas que ainda assim eu a acharia e saciaria meu desejo de vingança.

Eu a acharia, sim, eu a acharia. Mas antes encontraria a mulher que me nutriu com seu sangue. O meu veneno corre agora em suas veias e logo ela vai perecer e isso não é justo para alguém que me deu uma nova chance. Se ainda eu a tivesse drenado até a última gota, e ela tivesse uma morte decente, seu propósito em vida teria sido cumprido, mas ela não merecia morrer sufocada e desesperançada como quase acontecera comigo por beber daquela pessoa sem vida, peça da armadilha que a minha captora preparara no intuito de me subjugar. Não. Seu doce néctar me deu um propósito e eu a recompensaria com uma nova vida ao meu lado. Mas ela não tem muito tempo, logo o viço de sua existência será absorvido até o fim. Preciso achá-la o mais breve possível, antes de uma nova aurora, antes do amanhecer.

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Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 13/03/2022
Reeditado em 13/03/2022
Código do texto: T7471904
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