ANTES DO ANOITECER

* O relato da enamorada

Antes do anoitecer eu conseguia, até certo ponto, manter a sanidade. Mas, bastava chegar a escuridão para que uma espiral de agonia e sofrimento se apoderasse de mim de uma maneira tão efervescente e avassaladora, brutal e contínua, transformando-se numa massa crescendo mais e mais a cada amanhecer até o ponto de que agora nem mesmo a luz do dia é capaz de dissipar a nuvem acinzentada que me corrompe até a alma. Eu vivia uma morte em vida.

Morta viva. Estranho como repetimos palavras e expressões sem nos aprofundarmos muito nos significados e contornos que estas podem alcançar. Digo isso, pois até receber aquele telefonema anônimo, uma mensagem capaz de revirar minha já conturbada vida e colocá-la no estágio em que se encontra agora, eu não me atentava, ou melhor, não me importava com certas conotações e caminhos que as expressões podem tomar.

Mas agora eu sei e, acreditem em mim, não sou uma tola e bem sei que poderia ter desconfiado da origem, do teor e das circunstâncias em que aquela mensagem fora transmitida, sem dúvidas. No entanto, quando estamos desesperançados e enterrados tão fundo no poço que nem ao menos conseguimos enxergar a superfície, qualquer sopro de esperança é agarrado e sorvido tão sofregamente que relegamos quaisquer sinais de negação.

Entendam, eu precisava achá-lo, aquele a quem eu havia entregado o meu amor. Quase seis meses se passaram desde que desaparecera sem deixar rastros. Por mais que as notícias, que agora já rareavam, dessem-no como morto, eu me recusava a acreditar. Ainda nutria o sonho de ver o seu rosto vívido tal qual na noite em que nos despedimos e nunca mais o vi.

Quando o conheci, quase nada sabia a seu respeito, apenas que era demasiadamente ocupado e, por conta disso, quase não nos víamos. Aos poucos, nosso relacionamento se estabeleceu e descobri que além de ser um empresário influente e bem-sucedido, ele também tinha uma outra vida, vida essa que o impedia de ser inteiramente meu. Claro, imagino o que vocês devem pensar sobre isso e aqui, mais uma vez, enfatizo que não sou inepta nesses assuntos e, normalmente, um alerta teria surgido dentro de mim instantaneamente. Mas eu acreditava, não, eu acredito no seu amor e por isso depositei toda a minha fé em suas palavras de que em breve tudo estaria resolvido. Meu coração estava acalentado dessa forma e posso jurar pela luz do astro-rei, a qual espero sentir sobre minha pele novamente, que não havia qualquer incerteza sobre termos uma vida feliz juntos.

Porém, assim como castelos de areias acabam desmanchados pelas mãos impacientes de uma criança, meus sonhos desmoronaram com as notícias do jornal matinal na televisão alguns dias após a última vez que nos vimos. Seu rosto estava na tela. A repórter relatava o desaparecimento de um importante empresário da capital. A esposa, debulhada em lágrimas, implorava para que os supostos sequestradores entrassem em contato, jurava que pagaria o que fosse preciso para ter o marido de volta.

Meu mundo ruiu. Veio abaixo. Naquele momento minha vida entrou em derrocada. Os meses se sucederam sem que houvesse qualquer sinal do seu paradeiro. Nenhum pedido de resgate fora reclamado. Nem mesmo uma simples pista ou boato. Nada. Apenas um silêncio ensurdecedor. Logo, não tardou para que o caso fosse encerrado e aquele a quem eu amava fosse dado como morto. Mas, no fundo da minha alma ainda ardia a chama da esperança de vê-lo novamente e penso que isso, apenas isso, impediu que minha vida que entrara em completa derrocada tivesse encontrado um fim.

Fim. Mais uma palavra dúbia. Afinal o fim para todos é a morte. Mas descobri que existem muitas maneiras de estar morta e ainda assim viver.

A voz arrastada ao telefone me disse que sim, que aquele a quem eu buscava continuava vivo. Ele estava sob o domínio de antigos associados que ele ludibriara em negócios escusos. Eles não queriam mais dinheiro ou benefícios, queriam que ele padecesse, que pagasse com sofrimento a cada dia. Mas a pessoa do outro lado da linha sim queria receber algo e, secretamente, fizeram um acordo. Mas o meu amado pediu que entrasse em contato comigo e apenas comigo, pois a esposa colocaria a polícia envolvida o que de certo resultaria em sua morte.

O interlocutor me disse exatamente o que fazer. Suas instruções davam conta de que eu chegasse ao local indicado exatamente às cinco horas da manhã, no intervalo da troca da guarda, uma vez que o novo sentinela sempre se atrasava por um café, e o plantonista não esperava a sua chegada. Assim, pouco antes do amanhecer o prisioneiro ficava sem vigilância.

Eu deveria entrar por uma portinhola que levava a uma escadaria até o subsolo do casebre onde ele se encontrava. Uma cópia da chave de sua cela estaria providencialmente escondida num jarro de planta ao lado da entrada. Então, decidida, segui as instruções da voz desconhecida.

O amanhecer ocorreria exatamente às cinco horas e vinte e nove minutos. Escondida no carro, conferi o display do celular, onze minutos já haviam se passado desde o horário em que eu havia chegado e nada do guarda sair. Esperei mais dois minutos e já estava prestes a invadir o lugar de qualquer forma, mas não foi preciso, pois vi alguém deixar o local pela porta dos fundos. Era o sinal que precisava. Não havia muito tempo.

Corri através das últimas sombras da madrugava torcendo para não ser vista. Meu coração disparava dentro do peito, e ao lembrar disso uma melancolia me consome.

Tateei a terra do jarro encostado ao lado da portinhola externa do sótão e o objeto realmente estava lá, a chave que libertaria o meu amor. Tudo estava correndo exatamente como a voz havia dito. Destravei a tranca do tapume e ganhei o lado interno da casa. Pé ante pé, desci pelas escadas de madeira. Antes de ser quebrado por minha voz chamando o seu nome, a única sonoridade no ambiente era o ranger das peças envelhecidas do assoalho. Por mais escuro que o lugar estivesse, não ousei invocar nenhuma luminosidade, porque não queria correr o risco de ser surpreendida.

Chamei algumas vezes por ele, porém, a princípio nenhuma resposta obtive. Caminhei um pouco mais e cheguei a uma sala. Chamei novamente, e dessa vez um som chegou aos meus ouvidos, um ruído grave que até lembrava uma voz, mas carregada de dor e algo que só viria a entender depois.

Percebi o suave e níveo toque da alvorada que se avizinhava por uma incomum abertura numa área do teto. Do local da origem da voz, deduzi uma presença do outro lado de uma parede formada por tijolos intercalados, só poderia ser a cela de quem eu buscava. Chamei seu nome uma vez mais ao me aproximar da amurada. Não encontrei a fechadura ou algo que a valesse, mas coloquei um braço pela abertura do limite na ânsia de sentir seu toque.

Fora naquele ínfimo momento antes do amanhecer que perdi minha vida. Morri. Mas não fui tocada pela morte usual, antes fosse. Fui abraçada por um mal antigo e hediondo, algo que ultrapassava os limites da realidade. Senti uma pressão seguida por uma dor indescritível. Mas não tardou para que uma dormência se apoderasse do meu corpo. Um formigamento iniciado em meu pulso e que em instantes se espalhou como fogo em capim seco.

Eu havia desmaiado, essa era a sensação, mas mesmo assim permanecia de pé e, embora não pudesse mover um só músculo, estava ciente de tudo, não só ao meu redor, mas também acerca daquele que se nutria do meu sangue. Aqui eu digo que morreria, e dessa vez me refiro à morte usual, se não fosse o estampido que ouvi às minhas costas. Algo havia atingido o meu agressor e no instante em que ele caiu o transe que me dominava desapareceu por completo.

Desnorteada, olhei para trás e deduzi uma silhueta feminina por trás da fumaça causada pela pólvora queimada. Não pensei nem por um segundo em pedir ajuda, tudo o que me importava era ter a certeza que aquilo do outro lado da parede não era o meu amado, pois eu vi o seu rosto em minha mente, entendi a sua vida e tudo o que viria a seguir. Olhei para o ferimento em meu pulso enquanto corria, a despeito do sangue fresco que ainda manchava o meu braço, as perfurações estavam totalmente cauterizadas.

Venci os degraus que levavam ao ar livre. Senti o frescor da manhã em meus pulmões sabendo que seria a última vez que o faria. Ao longe, vi as nuanças do sol nascendo, a tristeza me esbofeteou com uma mão pesada.

Eu precisava sair dali. Era urgente chegar em casa e colocar os pensamentos em ordem. Acionei a ignição do veículo e parti. Muitas coisas passavam por minha mente rapidamente como flashes, numa delas me agarrei. Havia um jeito de solucionar o problema no qual estava naquele momento envolvida, um jeito difícil, mas havia. Eu me apegava à confiança de poder continuar como humana, como mulher, para encontrar o meu amado e ser feliz. E para isso eu teria de encontrar o maldito que sugou o meu sangue e acabar com a sua vida em morte. Só assim ficaria livre de me tornar um igual, um monstro parasita e sem coração. Entretanto, eu não teria muito tempo. Pisei fundo no acelerador e apertei firme o volante, enquanto mordia meus próprios lábios até sangrarem. Lágrimas escorreram livres pelo meu rosto. As palavras não saiam da minha cabeça. Antes do anoitecer. Antes do anoitecer. Antes do anoitecer.

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Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 13/03/2022
Código do texto: T7471902
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