Jéssica- clts 18

" O que você esconde debaixo de sua máscara, e que não mostra para a platéia

Mostre-me o seu verdadeiro rosto sem maquiagem

Aquele que sente dor quando quando o ferem, ou o que chora quando se angustia"

Vocaloid- Pierrot

*

Jéssica sempre chegava no parquinho com alguma história para contar. Ela era a mais sorridente e falante do nosso grupinho que sempre se reunia de tarde para brincar no parquinho do prédio em que a gente morava.

Alguns brinquedos do parquinho não estavam mais funcionando e outros eram para crianças menores do que a gente, mas, mesmo assim, o local continuava sendo o nosso quartel general. Eu era o primeiro a chegar, depois vinham os gêmeos que moravam no terceiro andar, e um pouco depois a garotinha ruiva que estudava comigo. Jéssica sempre era a última a chegar.

Quando ela chegava, geralmente a brincadeira já tinha iniciado. Ela sempre contava uma história para justificar o atraso. Às vezes, era sobre uma brincadeira nova que ela inventou e outras sobre as aventuras que ela vivia sem sair do apartamento em que ela morava.Jéssica às vezes mostrava um roxo no braço ou um ralado no joelho como provas das aventuras que viveu.

Em meio às histórias e as brincadeiras a tarde logo passava. Logo, era hora de cada um voltar para seus apartamentos. Os pais, que estavam sempre por perto, logo nos apressavam porque a noite estava quase chegando . Agora, revisitando essa memória, noto que a mãe de Jéssica nunca a acompanhava até o parquinho. A menina sempre descia sozinha e também era a última a ir embora do parquinho.

Em uma das noites, ao chegar ao meu apartamento olhei pela janela e vi que Jéssica ainda estava sozinha no parquinho. Ela brincava no balanço. Por alguns instantes nossos olhares se cruzaram e ela acenou sorrindo enquanto embalava cada vez mais alto.

Jéssica gostava dos balanços e sempre embalava alto. Uma vez ela brincou que talvez se embalasse muito alto conseguisse pegar uma estrela para ela.

*

O tempo passava e tudo corria normalmente, sem mudanças nas nossas tardes de diversão. Até que chegou o carnaval e as pessoas do condomínio resolveram fazer uma festinha para as crianças. Decoraram o parquinho e teve até máquina de algodão doce e pipoca.

Fui fantasiado de um super-herói que estava na moda, os gêmeos foram de fantasias combinando e nossa amiga ruiva foi com uma fantasia com asas de borboleta rosa e segurava uma varinha completando o visual de fada. Como sempre Jéssica foi a última a chegar. Ela usava uma máscara colorida que cobria todo o seu rosto e uma roupa comum.

Logo que ela chegou notei que tinha algo de diferente nela. Jéssica andava meio cambaleando como se estivesse tonta.

-Está tudo bem?- lembro de ter perguntado.

Jéssica apenas acenou com a cabeça e esse movimento pareceu deixar ela mais tonta. Éramos crianças, então logo ignoramos esse fato e como a turma estava completa fomos brincar de esconde-esconde.

Encontrei Jéssica escondida atrás de uma árvore. Ela estava sozinha, mas era nítido que ela falava com alguém. Ouvi apenas o final da frase:

-Só mais alguns minutos, por favor.

Não ouvi nenhuma resposta, mas era como se Jéssica tivesse ouvido. Aquilo me deixou realmente assustado. Com passos trêmulos me aproximei dela e perguntei:

-Com quem você estava falando?

-Bora voltar a brincar.- respondeu ela ignorando completamente a minha pergunta. Me segurando pelo braço me levou para onde as outras crianças estavam.

Enquanto ela me levava olhei para trás da árvore rapidamente e por um minuto tive a impressão de ver alguma coisa. Foi tão rápido que não consegui definir o que era.

Aquilo ficou no meu pensamento, mesmo durante as brincadeiras me pegava olhando na direção daquela árvore.

Em um dado momento percebi que Jéssica também olhou naquela direção. Estava de olho nela tentando entender o que estava ocorrendo. Revisitando essa memória percebo que depois de um tempo o foco da árvore mudou e Jéssica olhava para pontos em que aparentemente não tinha ninguém também.

Foi uma manhã animada. Como era feriado teríamos o dia todo para brincar e conversar. Pelo menos era o que eu pensava.

Quando estava próximo das dez da manhã paramos um pouco de brincar para comer alguma coisa.

Jéssica não quis comer nada, pois reclamou que estava com um pouco de enjôo. Ela também continuou de máscara o tempo todo.

-Viveu alguma aventura hoje antes de vim para cá?- perguntei pensando que o fato dela falar sozinha talvez tivesse relação com alguma das histórias que ela sempre contava ao chegar ao parquinho.

Jéssica me respondeu apenas com o silêncio. Ela me encarou e mesmo com a máscara vi que seus olhos estavam cheios de lágrimas. Não entendia o que estava ocorrendo, mas a abracei mesmo assim. Parecia era a coisa certa a fazer.

Ainda estava a abraçando quando ouvir ela sussurrar para alguém que parecia está atrás de mim:

-Só mais alguns minutos, por favor.

Não queria deixar de abraça-la, mas minha curiosidade foi maior e olhei rapidamente para a direção que ela olhava. Como da outra vez, não tinha ninguém.

-Vai começar o concurso de fantasias.- disse nossa amiga ruiva confiante que ia ganhar. Os gêmeos que estavam perto de nós, mais interessados na pipoca do que em qualquer outra coisa foram com ela.

Jéssica e eu ficamos um pouquinho mais.

-Quero ir no balanço- ela pediu para mim. – Bora aproveitar que todos estão reunidos no concurso.

Concordei com ela e fomos para o balanço. Ela se sentou em um balanço e quando eu ia me sentar no balanço ao lado dela, ela disse algo que me surpreendeu:

-Você me embala, por favor.

Estranhei o pedido, pois ela sempre conseguia embalar alto sem ajuda, mas fiz o que ela me pediu. Depois de alguns impulsos ela estava indo tão alto quanto costumava ir. Era possível ouvir as risadas dela. Em meio as risadas ouvi novamente aquela enigmática frase:

-Só mais alguns segundos, por favor.

O balanço foi parando aos poucos. Quando ele parou completamente, ela olhou na minha direção e logo depois disse de forma sussurrada:

-Obrigada. Você foi um bom amigo.

Foram as últimas palavras que ouvi ela dizer.

Um pouco depois de falar essa frase , Jéssica tentou se levantar do balanço, porém cambaleou para frente e caiu. Minha primeira reação foi gritar, mas com a música do concurso de fantasia ninguém me ouviu direito. Minha segunda reação foi me aproximar de Jéssica e falar:

- Jéssica, levanta. Bora brincar.

Nenhuma reação.

-Jessica!

Silêncio.

Minhas mãos foram até o rosto dela. Queria acreditar que ela estava brincando comigo e que quando eu tirasse a máscara encontraria o rosto sorridente de Jéssica, feliz por ter me pregado uma peça. Mas quando tirei a máscara tive o maior susto da minha vida.

O rosto de Jéssica estava machucado e ela estava com o que parecia ser um baque forte na testa. Naquele momento gritei como nunca antes. Cai sentado no chão e continuei gritando segurando a máscara. Pedindo ajuda, pedindo para que ela acordasse e principalmente pedindo para que não tivesse ocorrido o que eu pensava que tinha ocorrido.

Dessa vez meus gritos conseguiram atrair a atenção das outras pessoas. Quando a ambulância chegou ainda estava em choque, mas logo que eles chegaram falaram o que eu suspeitava. Minha amiga Jéssica tinha partido.

Só fui saber a causa da morte anos depois. Só adolescente fui pesquisar sobre o caso, que virou manchete na época, e descobrir que ela tinha morrido de hemorragia cerebral por causa de um baque forte na cabeça.

Conforme investigado a mãe dela batia nela há algum tempo e pelo que ela tinha confessado tinha batido a cabeça da Jéssica na parede um pouco antes da festinha de carnaval. Durante todo o tempo em que ela brincava com a gente o cérebro dela sangrava lentamente. Hoje sei que a tontura e o enjôo estava tudo relacionado com o machucado.

A mãe dela ainda está presa, porém isso não diminui a tristeza. Ainda tenho dificuldade para absorver a informação de que minha amiga Jéssica era agredida por quem devia a proteger, porque desde o momento em que descobrir isso evito pensar naquele dia ou nos dias anteriores. É doloroso demais lembrar de como as vezes ela aparecia machucada e nós, crianças, achávamos que eram por causa das aventuras que ela contava.

Mas hoje resolvi revistar essa memória. É carnaval novamente e estou no antigo parquinho do condomínio. Estou sentando no balanço e recontando a história para mim mesmo e vejo como os últimos momentos dela assumem um novo significado.

Seguro uma flor, pois achava que deveria deixar alguma coisa como uma forma de homenagem. Percebo que um vendedor ambulante me encara, pois faz muito tempo que estou no balanço segurando a rosa.

- Acho que a garota que está esperando não vai vim.- ele comenta quando percebe que estou olhando na direção dele.

-Eu sei.- respondo deixando a rosa em cima do balanço – Eu sei.

Vou embora. Enquanto ando ainda penso em Jéssica e sinto as lágrimas molharem o meu rosto. Em meio as lágrimas fico me perguntando com quem ela falava naquele dia.

Tema: Carnaval

Ana Carol Machado
Enviado por Ana Carol Machado em 05/03/2022
Reeditado em 13/05/2024
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