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ANA REGINA

 

Damião não era – nem um pouco – amedrontador quando o encontramos… Era só uma criança precisando de ajuda… de carinho. Entrou correndo na igreja, suas roupas estavam imundas como se tivesse rolado na grama ou coisa assim. Todos olharam assustados. Alguns até fizeram cara de nojo… Ele estava fedorento, ofegante, suado como um porquinho. Mas nem toda a sujeira e suor eram capazes de esconder sua beleza. O padre Daniel se aproximou e Damião ajoelhou-se diante dele quase desmaiando. Outros homens se aproximaram, inclusive meu ex-marido.

– O que aconteceu, menino? O que aconteceu com você?! – Perguntou o padre segurando-o pelos braços, quase o abraçando. Todos na igreja ficaram de pé.

– Eu… eu…

– Acalme-se, sim? Respire fundo. Você agora está em boas mãos. Na casa de Deus.

– HÁHÁHÁHÁHÁÁÁÁÁ… – Aquela gargalhada ecoou por toda igreja como um vento maligno, uma má notícia. Ninguém sabia e nem podia saber que era apenas o início de tantas coisas horríveis… que nunca mais seriam esquecidas.

Damião caiu no chão desmaiado e o carregamos e improvisamos uma maca. Rosinha se aproximou e acariciou os cabelos lisos e negros do menino, levando em seguida – e com muita sutileza – um tapinha na mão de sua mãe… que a puxou pelo braço, saindo da igreja em seguida. Algumas horas depois ele acordou. Estávamos na igreja apenas eu e o padre. E como sou enfermeira, o padre Daniel pediu pra que eu ficasse e observasse Damião que já ia despertando…

– Onde estou? – Balbuciou.

– Você está na casa de Deus. – Respondeu o padre imediatamente.

– Sim. Eu preciso ser salvo… – Disse Damião, sentando-se na maca com um olhar perdido.

– Regina… eu posso dormir em sua casa? Eu posso ficar com você?

– COMO DIABOS VOCÊ SABE MEU NOME GAROTO?! – Perguntei assombrada.

– Eu acho… acho que sei de… de… algumas “coisas”. Eu não sei explicar. – Ele respondeu sorrindo timidamente.

 

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PADRE DANIEL

(DIÁRIO PÓSTUMO)

 

13 de agosto de 1984

 

Noite estranha…

 

Aquele menino… Damião o nome dele. Ninguém sabe de onde ele veio… E ele diz que não lembra de nada. Apareceu na igreja, todo surrado… e depois soltou aquela gargalhada… O que foi aquilo meu Deus? O que aconteceu com aquele menino? O que fizeram com ele?? Não consigo dormir… tenho medo de apagar as luzes… de fechar os olhos… e ficar… indefeso? Se estou na casa de Deus por quê estou tão inquieto? Eu não devo questioná-lo, jamais! … Mas quando fecho os olhos imagens terríveis assolam minha cabeça. Não sei... acho que estou tendo visões. Bebi uma garrafa de vinho.

(Estou dormindo…?)

Vejo uma mulher grávida… Ela está nua e parada em minha frente. Ela está ferida em todo corpo, vários cortes, profundos! Parecem feitos com navalha ou gilete. Ela está sorrindo pra mim… e me pede para que eu tire minhas roupas também. Eu tento orar… eu preciso muito orar! DEUS! Agora me vejo no quarto com as luzes apagadas (tenho certeza de que as deixei acesas). Meu Deus! (…) Há um bebê morto em cima de minha escrivaninha! Ele está cinza e inchado.

Acordei suado. Ainda são… 3 da manhã? Minhas mãos tremem e apertam o crucifixo com força. Dei voltas e mais voltas por toda a igreja procurando… não sei bem o quê…

 

Acho que estou perdendo o juízo. Tenho certeza de que estou acordado. Mas há uma mancha vermelha em cima da escrivaninha. Parece sangue. Sei que aquele bebê foi apenas uma visão… um sonho, talvez efeito do vinho. Mas a mancha… É REAL! Tentei limpar, sem sucesso. Fui ao banheiro… lavei o rosto, tentando me recompor. O Satanás não pode entrar aqui. Não… não, não… ele não pode… mas… ele…

(já entrou)

 

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RAFAEL

 

Ana Regina chegou tarde em casa… Ela não fazia isso… pra ela “A hora da Janta” era sagrada. Momento em que sentávamos juntos e contávamos como foi nosso dia, fazíamos as preces juntos, agradecíamos a Deus pela comida. Comemorávamos juntos mais um dia vencido. Mas nesse dia Ana chegou tarde. Andava devagar pela casa, como se não quisesse que notassem sua presença. Liguei as luzes da sala e a encarei. Não estava desconfiado… Ana era minha alma. Até hoje não consigo imaginar nenhuma maldade vinda daquela mulher tão gentil. Atrás dela… quase se escondendo por trás de seu vestido… estava o menino… de cabeça baixa.

– O que significa isso? – Perguntei já sabendo EXATAMENTE o que estava acontecendo (cidade pequena, todo mundo já sabia dos acontecimentos na igreja).

– Rafa… Ele não tinha onde ficar. De que adianta a gente ir pra igreja, se fecharmos as portas pruma alma perdida? – Me calei. Porque Ana estava certa, como sempre. Me aproximei do menino e dei dois tapinhas em sua cabeça. Ele sorriu e eu sorri de volta. Parecia que estava tudo bem afinal.

– Muito bem, vamos fazer as preces e jantar. Se vai morar aqui, tem que aprender nossos costumes. E você pode fazer as preces hoje garotão!

Mal terminei de falar e Damião se agachou no chão, como um animal assustado… e… ele… Cristo… ele começou a berrar como um louco. Correu para um canto da sala. Como se tivesse sido agredido.

– “Astaaaatt!! Astaaaaa! Astaaaaaaaahhhh!!!” – Gritava cobrindo os olhos. E ao mesmo tempo parecia rir… quero dizer… parecia estar com muita vontade de rir. Ana já se sentia meio mãe do menino. Correu em direção a ele ignorando os grunhidos que saíam daquela garganta maldita. Eu estava pasmo. Minha vontade era de chutar aquele demônio pra fora de minha casa. Ana Regina o abraçou com força e cantava louvores baixinho em seu ouvido.

– Está tudo bem, shh, shh, shh… – Sem saber o que fazer… tomei a pior atitude que poderia tomar. Senti ciúme… e bradei irredutível:

– Muito bem mocinho. Ou faz a prece ou não come. Chega de gritos… ENTENDEU?! Já gritou na igreja, gritou aqui… JÁ CHEGA.

… Damião realmente me obedeceu e parou de chorar. Ele veio em minha direção de cabeça baixa e prostrou-se em minha frente. Num sussurro quase inaudível me disse:

– “A cidade tá morta… toda morta…todo mundo morreu.”

Levantei a mão para ele, e já ia lhe desferindo um bom tabefe… Mas fui interrompido por um grito desesperado de Ana. O garoto se mantinha parado me encarando com aqueles olhos grandes e verdes.

– Eu vou rezar papai… Me perdoa, por favor! – E começou a chorar. – Ana me olhou com um olhar raivoso que eu nunca tinha me dado antes. Dei dois passos pra trás de susto… e também de decepção. Puxou Damião pelo braço e foi em direção à mesa da sala, sentando-o numa cadeira ao lado da cabeceira. Depois se sentou no outro lado. “O que está acontecendo??? Ela conheceu esse menino hoje de manhã!!”.

– Estamos esperando você Rafael. – Ela disse num tom seco e magoado. Sentei na cabeceira tentando não me mostrar intimidado, fiz as preces agradecendo até a presença daquele monstro em minha casa. Monstro que chegava trazendo discórdia para o meu casamento, que era tão feliz. Duas semanas então se seguiram após a chegada de Damião… antes que as desgraças começassem a acontecer. Pras pessoas da cidade, ele não era mais um menino esquisito e de origem desconhecida. Era o nosso filho. É irônico… Pois eu o odiava.

 

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ROSINHA

 

Eu não via graça nenhuma em mim mesma. Olha… eu tinha apenas 15 anos… E era aquele tipo de menina que na escola, se senta na cadeira da frente, colada com o professor, usando – inseparáveis – Óculos de grau de armação grossa. Meu pai saiu de casa quando eu tinha uns cinco ou seis anos. Depois disso, minha mãe passou a ir pra igreja todos os dias e acho que ela nunca mais namorou com ninguém depois que Papai se foi. Ela me levava pra todos os lugares… e ficávamos unidas… unidades no fundo do poço. Eu era uma beatinha. E enquanto as garotas de minha idade eram apresentadas ao namoro, álcool… ao mundo das artes e do cinema e até mesmo SEXO eu praticamente morava na igreja. Até que Damião apareceu… Aqueles olhos que mal cabiam em seu rosto me fitaram arregalados pedindo por socorro, enquanto o padre Daniel e as beatas se juntavam como abutres em sua volta. Ele olhou pra mim… SÓ PRA MIM!! Me aproximei incontida e acariciei seus cabelos pretos, lisos. Minha mãe chegou como um gavião quando vê bicho se aproximando dos filhotes e deu um tapa em minha mão. Me puxou pelo braço logo em seguida.

– QUE PENSA QUE ESTÁ FAZENDO!? – Gritou, me levando pra fora da igreja.

– Me solta! Eu não fiz nada demais! sua vadia!! … hipócrita!

Ela parou, dura… muda em minha frente. Eu nunca tinha enfrentado ela antes, muito menos falado naquele tom e dizer coisas assim.

– Se quer fornicar com aquele desgarrado, VÁ. Pecadora! Você é uma desgraça em minha vida! – Disse, enquanto enxugava as lágrimas que desciam fazendo seu rosto branco ficar todo vermelho.

– É por isso que o papai foi embora. – Conclui dando as costas e indo pra casa sozinha, sem olhar pra trás…Embora soubesse o quanto tinha devastado minha mãe com aquela frase. No outro dia, fui à casa da Dona Regina pra ter notícias de Damião. Ele surgiu vestido com uma calça jeans e uma blusa de botão preta, abotoada até o pescoço. Dei uma risadinha de deboche que saiu sem querer. Ele riu de volta… Senti meu corpo todo estremecer de uma maneira totalmente desconhecida até então.

– Gostaria de sair um dia desses com a Rosinha pra conhecer a cidade Damião? – Perguntou a Dona Regina. – Ele concordou com a cabeça, calado. Era notório que não gostava muito de falar.

 

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PADRE DANIEL

DIÁRIO PÓSTUMO

 

18 de agosto de 1984

 

O garoto veio aqui me agradecer… Com aquele jeito esquisito de se vestir… aqueles olhos grandes e pretos… como olhos de um corvo. Eu tentei ser simpático, mas acho que Ana Regina notou que não gosto muito dele. Ele me dá arrepios… (…) Durante a missa, permaneceu sentado no fundo da igreja sem dizer palavra, sem esboçar a menor reação diante de qualquer coisa que eu dizia.

Posso estar implicando com ele, meu Deus? Parece que Damião não gosta da igreja – o que não teria problema nenhum – mas… Ele parece nos odiar. (…) Ninguém vai voltar a tocar no assunto da origem do menino? Isso é loucura!! Ele pode ter pais legítimos… Pode ter uma família. O povo fechou os olhos pra proteger a Ana Regina. O que eu posso fazer? Deus? (…) Acordei gritando. São três da manhã (sempre às três…). O pesadelo piora a cada dia. Mais uma vez a mulher grávida aparece em minha frente. Me manda tirar a roupa. E desta vez eu obedeço. Ela não está mais toda cortada. Ela ordena que eu apalpe seus seios. Minhas mãos involuntariamente correm por eles e por todo o seu corpo. Minha mente me implora parar, mas meu corpo parece estar controlado por ela. Peço ao meu senhor Jesus Cristo que me faça acordar. Sei que estou dormindo. A mulher lambe minhas orelhas e sussurra algo que nunca ouvi antes.

– “Dominus noste Astaroth… Astaroth…”

 

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ANA REGINA

 

O Demônio usa as fraquezas humanas como arma; sabemos disso. Usa os nossos sentimentos como navalha contra nós mesmos. Uma navalha que não corta a carne do corpo, mas corta a carne do espírito… – Dizia o Padre Daniel.

Rafael e eu tentávamos há quase dois anos conceber um filho. E eu vi em Damião uma esperança. No fundo eu sabia que estava vivendo uma impossibilidade, uma insanidade. Mas não posso mentir: As duas primeiras semanas com Damião foram as melhores de minha vida. Nos tratávamos como mãe e filho. E Rafael se afastava cada vez mais de nós… daquela loucura… me partindo ao meio. No entanto, eu já tinha escolhido um lado.

– Boa noite Rafa… – Eu disse. – Ele não respondeu.

– Não vai me dar boa noite?

– Regina, aquele garoto NÃO É seu filho. Precisamos dar um fim nessa história maluca. A cidade inteira já está comentando sua atitude! Te chamam de louca pelas costas…

– Damião é um PRESENTE! DE DEUS! Você não quer ver isso, mas… ELE precisa de mim! – Comecei a chorar.

– Boa noite, Regina, boa noite.

Despertei quase ao meio dia, levando um susto enorme. Damião estava sentado numa cadeira, me olhando dormir quase sem piscar.

– O Rafael foi embora. – Disse ele sem esboçar o menor pesar.

– COMO ASSIM??!

– Ele não te ama, então… Ele foi embora. – Concluiu, num tom aéreo.

Sentei na beira da cama e chorei como uma criança, por vários minutos. Damião apenas me observava como se não conseguisse entender meus sentimentos. Por alguns segundos tive até a impressão de vê-lo sorrir.

– Bem… você tem um passeio marcado com a Rosinha. Vá se aprontar. Vai menino, vai! PARE DE ME OLHAR!! – Ele continuou me encarando e sua respiração foi ficando descontrolada. No mesmo instante… um retrato que estava em cima do criado-mudo foi atirado ao chão. Logo em seguida os perfumes que estavam em cima de uma pequena estante ao lado da cama caíram todos ao mesmo tempo, como se uma mão invisível passasse levando tudo. Dei um salto da cama, sem me lembrar que estava nua. Damião se levantou e me observou dos pés à cabeça… tinha um olhar doentio de pecado.

– O que está olhando, filho?!

– Não sou seu filho… – Parei por alguns segundos, totalmente sem reação. Foi como se minha consciência e sanidade tivessem sido imediatamente devolvidas. Puxei rapidamente o lençol da cama e o enrolei pelo corpo.

– SAIA DAQUI! VAI! MOLEQUE!! – Gritei.

– Quer pecar comigo, Ana Regina? – Ele perguntou e em seguida começou a rir, mas sua voz não era mais a mesma. Posso jurar por Deus e por todos que amo: A voz de Damião se transformou naquela hora… Pareciam várias vozes que saíam de uma pessoa só. Havia um algo muito assustador em seus olhos, que me faziam ter medo de encará-lo. Me senti fraca… Senti minha vida ameaçada.

– SAIA!! AGORA!!!

– Não se preocupe, velha. Não quero você.

– Você vai embora de minha casa, seu… seu Herege!

– Amanhã… – Sussurrou, enquanto andava em direção à porta, ganhando a rua.

No exato momento em que Damião se aproximou da porta, Rosinha apareceu.

– Vamos? – Ele disse, voltando seu olhar cínico pra mim e sorrindo.

Rosinha parecia uma completa idiota diante ele. Parecia uma serva, uma escrava. Por um minuto pensei em contar sobre o incidente de instantes atrás, mas percebi que não adiantaria. Decidi ir até o Padre Daniel.

Cheguei na igreja e bati no portão muitas vezes e com muita força. Minhas mãos ficaram feridas. Algumas pessoas passavam por mim me olhando. Mas o Padre Daniel não aparecia e eu sentia que havia algo estranho. Tive um pressentimento terrível e por pouco não desmaiei. Deus estava me avisando… me preparando pro que estava por vir.

 

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PADRE DANIEL

DIÁRIO PÓSTUMO

 

20 de setembro de 1984

 

Deus… Me perdoe pelo que irei fazer…

 

Por favor, por favor, por favor, se alguém ler este diário: que tome as providências que minha posição de padre não ousa tomar! Um filho declarado de Lúcifer caminha por esta cidade e eu não sei porque ele nos escolheu! ACREDITEM EM MIM! Antes que inocentes pereçam nas mãos deste ser maligno! Deixo cravado aqui, neste diário, os detalhes de minhas últimas visões e presságios.

 

(Noite passada…)

Me vi preso na cadeira, sonhando… A mulher surgiu novamente e um cheiro terrível de enxofre tomou conta do quarto. É ele, não tenho dúvidas…É SATANÁS! Carrega em seus braços um feto morto, de cor acinzentada. Aquele sangue na mesa… ele é real!! Meu corpo treme e eu sinto até os dedos dos pés suarem. Estou tomado de horror… eu não consigo pensar… A mulher põe o feto em meus braços EU QUERO JOGÁ-LO NO CHÃO! QUERO TIRAR ISSO DE MIM! TENHO NOJO! NOJO!! PAI? ONDE ESTÁ VOCÊ?!! Ela surge mais uma vez… a mulher com cabeça de cabra. “Filho… Olha tua mãe…” – ela me diz e então eu respondo “Mãe… Olha teu filho.”. A aparição some como uma poeira suja, e meu corpo volta a ser meu. Estou tomado de pavor… Pai... perdoe a atitude covarde deste seu filho… Não sou mais digno…

 

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ROSINHA

 

Perguntei a Damião onde ele gostaria de ir primeiro.

– Que tal irmos até a igreja visitar o padre? Gosto muito dele! – Ele disse… – Fiquei desanimada.... Pensei que estávamos num encontro. Achei que iríamos ao cinema ou que sentaríamos num banco na praça tomando um sorvete e trocando – quem sabe... – alguns beijinhos. Mas Damião tinha outros planos… Aquele monstro… Ele realmente tinha planos bem diferentes dos meus.

Quando chegamos na igreja, Dona Regina estava esmurrando o portão enlouquecidamente, tentando entrar. Uma multidão começava a se formar em volta sem que ninguém ajudasse. Todos riam… Damião não quis se aproximar. Apenas segurou minha mão com força e ficou observando o espetáculo com um sorriso no rosto.

– VOCÊ NÃO VAI FAZER NADA!?!? – Gritei, indignada.

– Não, pirralha… se quiser fazer alguma coisa, vá! E não volte mais aqui.

– Pensei que você gostasse de mim.... – Sussurrei de cabeça baixa, tentando não chorar.

– Ninguém pode gostar de uma menina como você. Você é feia, Rosinha…Conheço o futuro de todos dessa cidade, você vai ficar sozinha… como sua mãe!

É engraçado até, pois… Eu bem que pensei em chorar, cair em lágrimas. Fazer uma cena, mas… naquele momento, senti nojo. Senti nojo daquele garoto e queria – por Deus – vomitar em sua cara. Meu “amor” acabou em segundos… E entendi seu jogo. Me virei e corri em direção à Regina, sem me dar o trabalho de responder aos insultos de Damião. Pus a gritar com todos que estavam ali.

– ESTÃO GOSTANDO!? HÃ??? COVARDES! – Permaneceram em silêncio, até que Rafael surgiu abrindo caminho… Ele se virou e encarou Damião, que continuava no canto sorrindo diabolicamente… Nunca vi um homem com tanto ódio. Pôs-se a ajudar Regina batendo no portão. E eu também senti o mesmo ódio. Alguns minutos depois, uma multidão se juntou e todos resolveram ajudar. Enfim… Derrubamos a porta.

 

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RAFAEL

 

Regina e eu entramos correndo igreja adentro, chamando pelo Padre Daniel. E o que encontramos foi simplesmente deprimente.

– O PADRE SE ENFORCOU. – Disse Ana Regina em voz alta, olhando em direção a porta, encarando um por um… como se culpasse todos que estavam ali e que não moveram um dedo para ajudá-la a abrir o portão. Com um rosto amargo, andou em direção ao altar. Sentou-se e pôs-se a orar em silêncio. Muitas pessoas entraram em seguida e ajoelharam-se com ela. Eu e mais alguns outros entramos no quarto e tiramos o corpo do padre da corda. Cobrimos seu corpo com um cobertor e saímos da igreja. Ao ver Damião ali parado – com aquele sorriso no rosto – perdi o controle… Corri em sua direção e esbofeteei sua cara bem ali, na frente a todos… Ninguém me impediu. Caído no chão, ele gargalhava insanamente.

– Eu sei que foi você! Eu não posso provar… Mas foi VOCÊ, SUA PRAGA! Vá embora!! Você não é mais bem-vindo nesta cidade!

– “Dominus noste Astaroth… Astaroth… Dominus noste Astaroth… Astaroth…” – Ele repetia, enquanto ria, cuspia sangue no chão, e continuava rindo… Juro que pensei em matá-lo naquele momento. Mas fui interrompido por Ana Regina, que saiu da igreja andando devagar, segurando nas mãos um pequeno caderno.

– É o diário do Padre Daniel. – Ela disse…olhando nos olhos de Damião.

– Mas VOCÊ sabe muito bem o que está escrito aqui, não é verdade Demônio? Não é verdade… Astaroth?

Quando escutou o seu verdadeiro nome, Damião se levantou devagar… ainda rindo, mas foi ficando sério. No lugar daquela voz doce haviam vozes e grunhidos animalescos. O céu escureceu imediatamente… como se fosse chover. Havia um mau cheiro no ar. Algo podre. Homens e mulheres começaram a avançar lentamente em direção a ele prontos para matá-lo. “ASSASSINO DE PADRES!!”, gritavam…

– NÃO. Deixem ele ir. Pois é exatamente ISSO que ele quer provar! não percebem? Ele é o sangue na mesa dos pesadelos do Padre. E quer ser o sangue em nossas mesas! Em nossos pesadelos… PRA SEMPRE! – Todos nós nos olhamos… Apesar de tudo, éramos bons… éramos unidos. – Damião, vá embora! Nenhum sangue será derramado nesta cidade.

 

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ANA REGINA

 

Naquele exato momento, todos nós testemunhamos a cidade tremer… Tudo escureceu. Pensamos que fosse o fim… As pessoas se abraçavam e davam as mãos. Mas rezávamos alto e forte em uníssono. O demônio tomou-se de fúria e seus olhos ficaram totalmente pretos. Seu rosto se envelheceu numa careta cheia de dentes pontudos… O rosto angelical de antes, enrugou-se numa coisa leprosa e disforme… Mas ainda assim, ele gargalhava, babando… Relinchava como um animal e se contorcia. Apesar do riso, era nítido que sentia dor. Todos então se puseram de joelhos…E sei que juntos pedimos a Deus pela mesma coisa. E fomos atendidos…

 

Como num piscar de olhos… Damião desapareceu de nossas vidas, para sempre.

 

FIM

 

ROSINHA

DIÁRIO

04 de janeiro de 1988

 

Mamãe…

 

Achei, achei o livro! Estava AQUI, na biblioteca da cidade… (A invocação… ESTÁ AQUI!); E ele estava bem naquele nosso lugarzinho… onde escondíamos os livros! Aquele lugar que SÓ NÓS DUAS sabíamos! Agora tenho plena certeza de que a chegada de Damião – há 4 anos – não foi à toa. Alguém o chamou, mas quem?! Não tenho como provar, mas acho que foi VOCÊ mamãe… sim… você tentou disfarçar, mas foi VOCÊ quem trouxe ele pra mim, não foi? … Damião estava certo. Eu sou feia, e… sozinha… E você se foi, mamãe… Mas… Eu achei o livro!! Trarei meus amores de volta! Você… e Damião… Dominus noste Astaroth… meu amado… Astaroth.

 

 

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 02/03/2022
Reeditado em 03/03/2022
Código do texto: T7463951
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