MONSTROS ADOLESCENTES INVANDEM A RODOVIÁRIA DE LENÇÓIS

Eu vinha chegando pertinho da rodoviária antiga, mas queria alcançar a rodoviária de verdade, a nova. Estava difícil… Pois chovia demais. Chover demais, por aqui… É algo como: “pequenas corredeiras e raios bem pertinho de você”. Era a primeira vez que um grande amigo meu, vinha passar alguns dias na cidade… A medida de cada passo que eu dava, eu ia precisando de mais um pouco de ar… que não me vinha. Minha face era um grito mudo (como naquela pintura famosa) quando me vi passando por um pequeno riacho de sangue misturando-se a pedaços de corpos indistinguíveis, desconexos, espalhados por todos os lados boiando num vermelho escarlate, quase preto… Um cheiro de carne podre fezes, urina. Eu engulhava, mas não conseguia vomitar, muito menos chorar… Apenas mantinha aquela cara de grito com pelos eriçados, andando até o ônibus; Já parado, com o motorista degolado, sentado nas escadas. Lá dentro era a mesma coisa… talvez pior. Pelo abafamento. Mas por via das dúvidas sempre é bom gritar (gritar de verdade) nessas horas... E eu berrei pelo meu amigo e então dei por mim de que não haviam sobreviventes e gritei várias e várias vezes, sem motivo. Ouvi ruídos altos que vinham ainda de longe, talvez do rio…

"Eles" se aproximavam dando saltos e se pareciam lobos. Meninos e meninas tinham pelos – até demais – olhos enormes e amarelos, presas enormes, e o pior: narizes que nitidamente PODIAM ME FAREJAR. Vinham rindo… e entre uma gargalhada e outra se agarravam e se beijavam. Vestiam camisas de colégios locais e eram tantos que um dos meus pensamentos imediatos foi: “todos os adolescentes da cidade viraram monstros!!”. Mas antes disso eu já me escondia e me trancava no banheiro do veículo. O tanto de sangue que tinha no ônibus, podia despistá-los... Podiam pensar que não havia mais nada a ser devorado. E talvez se deslocassem até Mercado Municipal onde tentariam atacar uma quantidade maior e mais concentrada de gente… seriam massacrados pela polícia. Todos esses pensamentos me vinham em segundos. Tão rápido que me percebi devaneando em meio aquela situação impossível… estava até sorrindo! Até que ouvi aquele “barulho” (que até hoje escuto em pesadelos), que parecia ser de – ao menos – três deles, subindo do ônibus. Ouvi um grunhido e respirações tensas… Eu não estava sozinho! Alguém estava vivo no ônibus. Um cara se escondia num banco e provavelmente se calou com minha entrada, pensando que eu fosse um deles. Porém agora ele respirava tão forte e tão alto… que os monstros nem precisariam ter ouvidos apurados ou olhos de lobo pra ouvir. Qualquer podia escutar aquele idiota...

Fechei os olhos numa respiração apertada. Quase totalmente presa… e tudo aconteceu em segundos, pois eu jamais prenderia a respiração por tanto tempo. Eles pareceram dilacerar o homem, rapidamente... como cães quando jogamos pedaços de carne no meio da pista. Foi muito rápido. Eu podia escutar o barulho dos jatos de líquido espirrando (e deduzir que era sangue, tripas...) e também ruídos de dor e agonia. Nem tempo de gritar ele teve… Era eu quem parecia estar com os sentidos aguçados, pois podia ouví-los lambendo os lábios com a língua após a ligeira refeição. Eu precisava pensar rápido… ou eles me encontrariam, claro. Visualizei a janela do ônibus e pulei. O fator “sorte” de fato esteve comigo, pois todos os outros lá fora, meio que “brincavam” num parquinho montado ali perto. Era uma festa que aconteceria alguns dias depois e que nunca aconteceu (com a cidade inteira de luto). Correr não adiantava… eu precisava me arrastar e era um longo caminho. Uma longa rua para atravessar agachado, sem preparo físico nenhum, uma pista que provavelmente me queimaria e ralaria meus cotovelos e joelhos. Comecei a travessia… e eles estavam distraídos. Imediatamente meu cotovelo já estava em carne viva, eu não sentia a dor... apenas podia escutar minha respiração tão alta que ficava me perguntando “como eles não me viram??”. Deduzi que a transformação os animalizou totalmente. Ou seja: Ficaram estúpidos. Quando cheguei do outro lado deitei de barriga pra cima, chorando – pois a dor, finalmente veio – Meu corpo estava cercado e coberto de sangue e grande parte não era minha… Um carro surgiu, passando devagar. Era uma van. Eu fiz sinal e vi os faróis traseiros acesos. Pensei: “acabou”. Mas não acabou. Em menos de 5 segundos, uns cinco ou seis monstros cercavam o carro. Eles eram incrivelmente fortes e rápidos. Alcançar o carro era questão de apenas um ou dois saltos. Rolei até a balaustrada e me atirei lá embaixo sem pensar. Caí na grama e rolei até a água do rio, que estava quase seco… e lá fiquei.. Vi todos eles se aglomerando curiosos lá de cima, olhando pra mim. A água lhes parecia repulsiva... Nem cogitaram a simples tentativa de descer até mim. Seguravam as duas garotas que estavam na Kombi, pelo pescoço (ainda vivas), até que afinal… desmaiei no leito do rio.

Acordei algumas horas depois sendo puxado por moradores. Estávamos ainda muito próximos da rodoviária… Provavelmente o rio teria enchido e eu teria morrido afogado se continuasse desmaiado. Ainda assim seria uma morte menos dolorosa do que ser devorado por monstros. Sangrando muito e sentindo muita dor... eu contei a história e não acreditaram em mim no início. Até que algumas mães e pais foram chegando, todos desesperados… logo formaram uma verdadeira multidão. Todos os adolescentes da cidade estavam desaparecidos. A história realmente teve as pontas ligadas em poucos minutos de conversa entre as pessoas. E uma junta de moradores com a polícia, foi até lá… E foi um verdadeiro - porém, necessário - massacre.

Como já era de se esperar os monstros avançaram imediatamente… Mataram vários policiais e pais, logo de cara. O restante da brigada fortemente armada… Simplesmente precisou revidar. A festa que aconteceria, no dia seguinte... não aconteceu. E muitas outras depois, também não aconteceram. Hoje somos conhecidos como uma cidade fantasma… amaldiçoada. Perdemos todos os jovens em questão de horas e nunca soubemos o motivo. Hoje em dia, todos os adolescentes são mandados pra outras cidades, próximas ou não, a partir dos 12 anos de idade e retornam (se quiserem) com 20. Os ônibus param na frente da cidade… vez ou outra. A gente se senta com salgados e refrigerantes em mãos, principalmente aos sábados… Com olhares tristes… vazios… encarando a balaustrada e o rio que passa com força. Sempre estamos nostálgicos… de um tempo que não vai voltar.

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 28/02/2022
Código do texto: T7462437
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