"FOME"

Nicole pôs a outra metade – do que sobrou – do corpo do pai, ao lado dos porcos que ainda dormiam. – Sentirão seu cheiro papai. Eles acordarão, já, já … Você amava esses porquinhos… – Ela sussurrou. Seu olhar era perdido… Sempre perdido… apático… insano. Nicole não entendia a morte. Não assimilava a perda e o absurdo. Não havia mais ninguém a sua volta por quilômetros…

Com os porcos ficaram o tronco e a cabeça. E os braços e pernas, Nicole trouxe pra dentro da casa, com auxílio de um carrinho de mão.

Seu pai se sentava exausto, todos os dias… E bebia daquele líquido amargo… até conseguir dormir no sofá. “A Hora do Rock” tocava as oito em ponto no rádio…O programa durava uma hora e meia e ele ficava ali de olhos fechados até o exato momento em que o próximo programa – um de notícias – começava. Desligava o rádio e se levantava zonzo da bebida. Cambaleava pelos corredores, entrava no quarto da filha e a beijava na testa, sempre dizendo: – “Nicole, os homens são cruéis… Os homens, de láááá… da cidade.”

Essa frase, quase cantada… ecoava por todo o ambiente do sítio – agora vazio – e pelos ouvidos e por todo o corpo da: agora mocinha (15 anos de idade), Nicole. O que era um vestido longo e folgado, agora mais se parecia com uma blusinha e uma saia curtas demais, mas ela não parecia nem mesmo notar ou se importar com roupas. O que importava pra ela, eram os quilos de carne que ela levava apressadamente, subindo a pequena ladeira; num caminho lindo e florido, que separava o chiqueiro da casa do sítio.

– “Especial… você é especial… Nicole… Eles não poderiam te aceitar.”. – Nicole pôs uma perna em cima da pia da cozinha e calmamente começou a trabalhar nela com uma pequena motosserra elétrica. Ela seguia cortando os pedaços do pai, o mais fino que conseguia, separando os bifes em vasilhas. Fazia força, parava pra descansar… os ossos eram muito duros. A carne já vinha endurecendo também. A carne apodrecida de um homem doente… enrugada, acinzentada. As partes esponjosas estavam estragadas, era melhor jogar fora. A parte macia, ainda vermelha, quase brilhante… Era a parte nobre e comível. O cheiro de decomposição começava tomar conta da casa toda, mas Nicole continuava fatiando seus pedaços bem finos, concentrada, sem parar... num trabalho meticuloso, demorado e exaustivo.

– “Especial… VOCÊ é especial, minha Nicole.” – Seu pai dizia. – “E por isso vão querer te tirar de mim. NÃO! Você não pode sair daqui, Nicole… eles não podem entender.”.

– NÃO! EU NÃO POSSO SAIIIIIIIIRR DAQUIII!!!!!! – Ela gritou, encarando o vazio em sua volta.

Pegou, num movimento furioso…algumas fatias da perna direita… Já lavadas e sem quase nenhum sangue. A perna esquerda ainda estava inteira, mas era um trabalho pro dia seguinte. Pôs as fatias dentro de pedaços de pães de forma… fez cinco sanduíches.

– “Muito especial…”, repetiu sorrindo, olhos perdidos encarando o vazio. Boca salivando…

18 de agosto de 2017

Henrique Britto
Enviado por Henrique Britto em 24/02/2022
Reeditado em 24/02/2022
Código do texto: T7459156
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