O Distúrbio das Sombras
Após caminhar por quilômetros abaixo de um céu repleto de nuvens escuras e corpulentas de fevereiro, a chuva por fim vinha a gotejar impetuosamente. As marés de ventanias desembrulhavam-me o casaco e acariciavam o meu rosto com um frio de mar. Finalmente me encontrei à vista de minha casa, com as madeiras trepidando no andar de cima onde as cortinas lançavam-se janela afora. Lembrei-me da Casa da minha avó, com as janelas arreganhadas e dispostas. Me veio um sentimento de vazio, onde uma angustia invadiu o peito - como poesia, com o qual minha mente levava-me direto para o passado, desacolhendo toda a desolação e dor acobertadas pelos bons velhos tempos - Parei e reparei na simplicidade da minha residência - para a madeira já desgastada do tempo – para as raízes entrelaçando-se nas entranhas das paredes – para a tinta já sem cor – e para as folhas secas em volta ao beiral – como uma pintura de Van-Gogh descolorida. De súbito senti roer na alma uma culpa penosa e maciça que se assentou amarrada a mim.
Numa poça colossal vi meu reflexo sorrir, depois, minha avó, com um olhar caído e de pele flácida, pálida e morta. Cogitei o dia, refiz meus passos e tentei encontrar onde a culpa incrementava, onde a depressão havia me emboscado e se por algum equívoco havia me despido para a insanidade perversa. A perplexidade persistia sem oscilar. Procedi arrastando comigo para dentro de casa o tão penoso sentimento no sucinto ato.
Escangalhado pela água que ia vez mais gelando meu corpo transpus o corredor às pressas a caminho do banheiro [...]
No tocador ainda soava Bach desde que sai às pressas pela manhã. Reparei no amontoado de roupas sujas ao lado da cama, nos pratos e talheres acima da sapateira, nos livros empoeirados jogados aos cantos - Um caos. – Tranquei as janelas com ripas de madeira e sequei o chão molhado. O frio ainda se aconchegava na casa mesmo após minutos, se acomodando nos cantos com passos furtivos vindo de mansinho me envenenar outra vez. Na baderna apanhei em meio a papelada espalhada ao chão uma foto onde vi outra vez minha avó, dessa vez tão viva quanto meu coração despertado, com olhos brilhantes e avermelhados e um sorriso de um canto ao outro. De súbito, tudo ao meu entorno parecia fantasmagórico – as paredes sussurrando nos cômodos – a pia gotejando tuas lágrimas– as lâmpadas piscando desenfreadas - e os estalos de madeira velha retinindo pela casa. Reparei na invulgar inexistência das sombras nos obstáculos, tal qual minha silhueta caminhava a minha frente com passos silenciosos. Agora de Bach passou-se a tocar uma composição macabra, ao qual um coral contribuía com uma canção fúnebre vinda do banheiro. As paredes de olhos virados me encaravam caminhar para o corredor em que a porta eu nunca alcançava, logo atrás, minha sombra quieta e calada rastejando ao chão. No meu corpo despertavam calafrios que se expandiam até o coração - que tremulo de desolação e horror se omitia entre os pulmões - ao desaferrar de meus gritos minha voz não ecoava, as trovoadas da chuva densa faziam trepidar os pendentes que balançavam no teto [...] por fim, parou-se tudo - Bach voltou a soar, a casa se calou. – A chuva serena e calma permaneceu enquanto meu corpo em transe permanecia sem resposta. Virei-me para trás, olhando primeiro para cima e seguidamente para baixo - assustei-me com minha silhueta ali, parada. [...]
As sombras da noite se avizinhavam; passando por debaixo da porta dezenas delas, agitadas e desorganizadas vagando para o interior da casa e se dispersando pelos cômodos tomando as formas das coisas. Algumas ferozes, cheias de garras e chifres deixando um rastro de sangue e vísceras pelas paredes, teto e soalho. Após o assentar dos negrumes em teus aposentos senti-me em meio as trevas, num convento infernal.
Em tal profundidade do ocorrido não sabia julgar a natureza do mesmo. Aleguei-me doente, apossado de um mal enigmático pelo qual os sons peculiares da noite tornaram-se opressivos. Diante de sensações anormais que me pasmaram até o último fio do cabelo ainda podia ouvir as vozes me ameaçando em sussurros – de longe, porém tão de perto.
À noite a chuva prosseguia, impetuosa, porém serena. Caminhei até a cozinha, ali, deparei-me com a vó, sentada na cadeira velha e encarando-me com uma expressão seca e sem vida. Convidou-me com um aceno para sentar-me junto a ela imersa na escuridão do canto. Assim o fiz e aguardei-a preparar um chá quente para aquecer os seus pulmões frios.
Naquele momento tenebroso nada me ressurgia a mente além de pavor. Olhei para a janela ao meu lado e considerei atirar-me dali, ruminando a possibilidade de sérios danos físicos caso assim o fizesse. Inda sim, sendo ou não tal ensejo ilusório a realidade sempre brandia sua existência; sendo Bach ao fundo tão real, a chuva gotejando no telhado ou mesmo a chaleira apitando. Ali perdurei por toda a noite, a tomar um chá ao qual xícara pós xícara era infindável [...]
Ao raiar da primeira réstia de luz que cortava as gretas da janela dei por mim de estar sozinho ao reter o último gole de chá. A chuva havia se dispersado ao eclodir do sol e os pássaros assumiam a composição de Bach, harmonizando em sintonia. Desmanchei meus olhos cansados com as mãos e levantei-me desorientado, visando o sangue fresco ainda chapiscado pela casa. [...]
Bateu em minha porta a polícia de supetão, de entonação ferrenha e toque forte. Percebi que o sangue escorria fluindo para fora escorregando as escadas da calçada. Vi em minhas mãos mais do mesmo, em meu tronco, rosto e cabelo. As janelas da casa se abriram vibrantes, onde os corvos entraram debatendo tuas asas, centenas deles arranhando-me com tuas garras afiadas. Uma ânsia insuportável fez-me teu lar fazendo-me vomitar litros goela afora. Ajoelhei-me ao chão, diante do cadáver de minha esposa degolada. Olhei para a frente e os policiais me apontavam tuas armas gritando-me deveras palavras ao qual nenhuma fui capaz de atentar. Me engoliu ali uma sensação insuportável, visto minha crueldade, onde habitou eterna uma invencível tristeza. Me surtiu por fim o homicídio que cometi, escravizado pela minha psicopatia dissimulada. [...]
No manicômio, porém, nada me omitiu. Embora os lunáticos fossem loucos, tais tanto quanto eu, tuas sombras me serviam. Traziam-me o sangue e a dor e quando desfeitas embrulhadas nas coisas me deixavam na fúnebre companhia de minha avó, que como sempre partia em retirada ao último gole de chá.