A garota do balanço

 

     Todos sabem que em cidades do interior é muito comum as pessoas se apegarem a diferentes superstições e crendices. Histórias incomuns e bizarras acabam dando origem a verdadeiras lendas urbanas. Citadas e recitadas tantas vezes e em diferentes ocasiões que acabam se consagrando no imaginário popular e, consequentemente ganhando espaço na cultura de um povo, lugar ou região. Este é o caso da estória ou lenda que irei narrar agora para vocês que, como eu, gostam do gênero terror.

 

A garota do balanço

 

*Adriana Ribeiro

 

     Quando a sirene do colégio tocou às onze horas e trinta minutos, Silvana Bart aguardou os alunos saírem enquanto arrumava o seu material. Aquela fora uma manhã intensa de atividades. Agora precisava correr pois ainda teria que passar na escolinha infantil para pegar a filha de cinco anos que fazia o último ano do pré-escolar. Graças a Deus os horários das duas escolas eram diferentes.

 

     Olhou o relógio. Tinha exatos dez minutos até a aula da filha acabar. Não gostava de chegar atrasada para buscar a menina pois desde que se separou do marido há seis meses e vieram embora para o interior, a garotinha ficava insegura com sua ausência. Já fora um custo fazê-la aceitar frequentar a nova escolinha. No início ela estranhara muito e sempre ficava chorando no colo da professora Estela Marques quando a mãe se despedia. Ainda bem que agora moravam em uma cidade pequena pois além de professora, Estela também era sua melhor amiga e madrinha da filha. Lembrou-se das duas e sorriu.

 

     Após recolher e guardar todos os materiais esquecidos pelos alunos do quarto ano, turma que lecionava na escola estadual da cidade, desligou o ar-condicionado, as lâmpadas fluorescentes e saiu da sala. Não passaria na secretaria pois já estava atrasada e ainda precisava pegar o carro no estacionamento.

Ao chegar na porta da escolinha infantil cumprimentou algumas mães que passavam levando seus filhos e nem bem entrou no prédio avistou Estela com a filha no colo. Percebeu pela fisionomia contrariada da amiga que algo estava errado e observou os olhinhos da menina brilhando pelas lágrimas reprimidas. Com um gesto de cabeça perguntou o que houve mas a amiga, respondendo alto e em tom de reprimenda, disse:

__ Quando iria me contar que está se mudando para outro bairro?

 

     Silvana deu um sorriso amarelo e perguntou:

__ Quem lhe contou foi a Nickole?

     Estela fez um aceno concordando enquanto entregava a afilhada para a mãe.

__ Bem! Ainda não fechei negócio. A propósito, vou passar na imobiliária para pegar as chaves da casa agora. Quer ir com a gente dar uma olhada?

 

     Estela desfez a cara emburrada e mostrou um meio sorriso. Pensando que a amiga concordava Silvana completou:

__ Passamos na casa da mamãe para almoçar e deixamos a Nick. O que acha?

     Mas Estela declinou do convite e justificou-se dizendo que marcara dentista para às duas horas daquela tarde.

     

     Então se aproximou da afilhada e deu um beijo carinhoso, em seguida pôs a mão no ombro de Silvana, desejou-lhe boa sorte e se despediu, mas não sem antes fazer um alerta:

__ Olha lá! Nickole está com medo de não ver mais o pai depois que vocês se mudarem. Converse com ela. Sabe que esse quadro de ansiedade que ela vem apresentando não é normal. Você e o Paulo precisam resolver a situação entre vocês sem prejudicar a saúde da menina. Essa mudança inesperada está deixando ela muito assustada.

 

     O semblante de Silvana se anuviou e a tristeza, embargando-lhe a garganta, deu um tom mais grave a sua voz quando disse:

__ Não foi uma mudança inesperada Estela. Você sabe que eu não podia continuar morando na capital depois do divórcio. Eu não conseguiria me manter lá tendo que trabalhar e cuidar da Nick ao mesmo tempo.

     Estela anuiu com a cabeça e disse:

__ Eu sei querida. Não estou dizendo que deveria ter ficado lá. Pelo contrário. Estou dizendo que ficar na casa dos seus pais é o melhor que você pode fazer por sua filha agora. Ela tá carente de atenção. Pense bem amiga. Toda essa instabilidade em volta dela é preocupante. Você sabe!

 

     Com os olhos se enchendo de lágrimas Silvana olhou para a amiga e respondeu:

__ Eu sei sim. Mas também não posso continuar morando com meus pais indefinidamente. Já se passaram seis meses desde que chegamos em Nova Esperança. Desde então estamos hospedadas na casa dos meus pais. Eu os amo, mas já está na hora da Nick e eu termos o nosso próprio cantinho.

 

__ E por que não? Claro que podem ficar na casa dos seus pais! Que eu saiba eles estão muito felizes com vocês duas por perto! Retrucou Estela com veemência.

Mas Silvana reiterou:

__ Sim minha amiga, eles estão felizes sim. Ou melhor, menos preocupados. Mas eu quero criar minha filha sem intervenções. Não quero que ela cresça mimada. Já está quase estragada por você e mamãe. Imagina com o papai? Sabia que ela já o chamou assim essa semana? De Papai?

As duas amigas acabaram sorrindo da situação apesar dos pesares. Em seguida se despediram.

 

     Silvana e a filha entraram no carro e foram até a única imobiliária da cidade para pegar as chaves do imóvel que estava à venda num bairro mais afastado do centro comercial. Era uma casa antiga, mas fora reformada recentemente para ser posta à venda. Tinha um quintal enorme que daria um belo pomar, pelo menos foi o que seus pais lhe disseram e o corretor  confirmou. Parte do seu interesse pela mesma se devia ao fato de poder usufruir de mais espaço para criar a filha, coisa que sempre sonhara, pois na capital moravam num apartamento de dois quartos, sala, cozinha e banheiro. A área de serviço era tão minúscula que mal dava para uma pessoa usar de cada vez.

     Mãe e filha deram sorte de encontrarem a imobiliária ainda aberta pois já estavam em horário de almoço. Entraram, pegaram as chaves com a moça da recepção e foram para casa.

 

     Nikole estava muito quieta, calada e meio sonolenta. Havia acordado cedo naquela manhã. E pelo visto também dormira mal porque durante o jantar da noite anterior o assunto familiar havia sido a mudança para a casa nova.

Seus pais eram maravilhosos. Mesmo contrariados estavam lhe dando a maior força. A casa inclusive seria comprada por meio de um parcelamento que seu pai conseguira, como seu fiador, junto ao banco da cidade. A entrada seria paga com a sua parte na divisão dos bens depois do divórcio, a qual recebera logo após a venda recente do apartamento. As parcelas foram bem negociadas para caber no seu orçamento de professora de escola pública, mas ainda faltava o aval final do Banco Central. Era o seu primeiro financiamento. Com uma renda baixa e sem garantias concretas para a liberação do crédito as coisas não eram tão fáceis, apesar da intervenção direta do pai, ex-funcionário e amigo pessoal do gerente do banco.

 

     Silvana era uma mulher jovem ainda. Casara aos vinte e três anos mas não tiveram filhos logo. Nickole nasceu três anos após o casamento. Agora, aos trinta e dois anos, recém-separada, ela só desejava liberdade para poder respirar e viver em paz. Os dez anos de relacionamento com o Professor universitário Paulo Neves lhe roubaram a juventude e parte da alegria de ser mulher. A única coisa boa resultante de tudo que viveram era a filha que Silvana amava como a própria vida. O relacionamento conturbado cheio de traições e mentiras durara até mais do que deveria.

 

     Com esse pensamento na cabeça colocou a filha na cama para dormir logo após o almoço. Ao menos assim ela não daria trabalho à sua mãe. Naquele dia a menina estava muito manhosa.

 

     Após tomar um banho rápido e fazer uma leve maquiagem escolheu um vestido bem fresco de algodão florido em tons de azul e rosa num fundo branco. Fazia muito calor aquele horário. Calçou uma sapatilha anatômica, se despediu da mãe e desceu para pegar o carro. Dirigiu devagar em direção ao sul da cidade procurando o endereço indicado nos papéis entregues pela imobiliária junto com as chaves e, finalmente, depois do que lhe parecera uma eternidade, encontrou a placa indicando a rua onde ficava a casa. Virou à esquerda e então avistou a construção antiga.

 

     Estacionou o carro em frente a um jardim precisando de cuidados e até se viu ali cuidando das plantas. Subiu os dois lances de degraus da calçada e alcançou a porta da frente em madeira maciça. A abriu e entrou na casa vazia. Olhou os cômodos da frente, as duas salas e os três quartos, viu que o primeiro era uma bela suíte. Conferiu as janelas de madeira e vidro, o piso e os banheiros. Percebendo que a reforma disfarçava as marcas do tempo na construção com eficiência. Até ali estava tudo certo.

 

     Gostara da casa. Era espaçosa. Ficava num bairro periférico porém, bastante tranquilo. Teria cômodos sobressalentes para visitas e ainda sobraria espaço para montar o seu cantinho pedagógico. Começou a planejar a distribuição dos móveis, alguns havia trazido da antiga residência, como o quarto completo da filha, outros teria que comprar. A geladeira por exemplo, pensou ao entrar na cozinha, mas parou subitamente a divagação quando olhou o tamanho. Era simplesmente enorme. Sempre sonhara com uma cozinha assim. A pia com balcões em mármore preto tomava a parede do fundo quase toda. Aproximadamente cinco metros ao todo. Acima da torneira manejável em inox haviam vários basculantes de madeira e vidros abrindo-se na vertical. Do lado direito ficava a porta que dava para o quintal.

     

     Aproximou-se da pia para conferir se a encanação estava funcionando normalmente e levou a mão para abrir a torneira, mas uma aparente movimentação no quintal lhe chamou a atenção.

Olhou pelo basculante e viu uma jabuticabeira tão antiga quanto frondosa. Reparou que num dos galhos mais fortes havia um velho balanço pendurado, cujas cordas agora se moviam como se o mesmo tivesse sido abandonado há pouco.

     Sem pensar foi até a porta e como estava fechada demorou um pouco para ver todo o quintal. Quando finalmente conseguiu que esta se abrisse, viu que o balanço continuava lá mas agora não mais em movimento. De repente percebeu com o canto do olho direito uma movimentação próxima ao que parecia ser uma cerca no fundo do terreno e, olhando com mais atenção, gritou:

__ Oi! Tem alguém aí?

 

     Andou até a sombra da jabuticabeira e pensou ter visto uma cabeça de criança loira por entre as folhas dos pequenos arbustos que haviam no quintal. Mas logo a impressão desapareceu e Silvana começou a duvidar dos próprios olhos.

     Foi até o fundo do terreno e reparou que havia uma passagem por entre as estacas que aparentemente foram afastadas para um pequeno corpo passar.

Silvana sorriu! Não estava ficando louca! Uma criança realmente havia passado por ali. Ainda dava para ver as marcas de pés no chão meio úmido daquele local.

     Então conjecturou se aquela invasão de propriedade se devia à presença do balanço ou da jabuticabeira.

__ De ambos!

     Uma voz suave de mulher tão jovem quanto ela soprou ao seu ouvido. Com a mão tentou afastar aquele sopro e depois balançou a cabeça! Estaria ouvindo coisas? Pensou assustada.

     Mas sua mente racional a fez retrucar alto:

__Claro que não! Essa voz é meu próprio inconsciente respondendo às minhas conjecturas. Afinal quem não gosta de chupar jabuticabas e passar horas num balanço?

 

__ Criança nenhuma resistiria a uma coisa nem outra.

     Novamente a voz doce se fez ouvir e Silvana arrepiou-se.

     Porém, logo um vento frio agitou as folhas das árvores e ela deu de ombros. Estava ventando frio. Apenas isso.

 

     Aproximou-se mais da cerca para ver aonde aquela trilha levava, ergueu-se na ponta dos pés sobre a cerca e, agora sim, viu nitidamente uma menina loira com os cabelos emaranhados e roupas sujas entrar numa abertura retangular que havia num muro no outro extremo do terreno vizinho.

Provavelmente estava voltando para casa depois de uma peraltice.

     Bom. Falaria com o pai para murar o terreno todo. Não só por causa da garotinha, mas também porque não queria que Nickole a seguisse caso ficassem amigas.

 

     Voltou pela trilha do quintal e terminou de avaliar a moradia. Ficou bastante preocupada com aquele detalhe da cerca mas logo depois resolveu fechar o imóvel e, decidindo-se por comprá-lo, voltou para casa.

Voltando para a casa dos pais Silvana se surpreendeu com a facilidade e rapidez no trajeto. Acabava de constatar que realmente a ida era sempre mais lenta que a volta.

 

     Já em casa encontrou a filha no colo da avó, mas assim que a viu correu para seus braços e ela logo percebeu que a menina havia chorado.

     Dona Fátima, com o semblante tristonho e olhando fixamente para a filha, perguntou:

__ E aí filha? Como foi lá? Gostou da casa?

     Fazendo um aceno para a mãe Silvana deu a entender que falaria com ela depois sobre aquele assunto, mas de repente mudou de ideia e resolveu falar sobre o balanço na esperança de fazer a filha se alegrar um pouquinho.

     E a sua estratégia deu certo. A menina demonstrou um interesse genuíno e perguntou:

__ Eu vou poder ir no balanço mamãe?

     Silvana, piscando o olho para a mãe, respondeu:

__ Claro meu bem! Mamãe vai pedir ao vovô para trocar as cordas do balanço e deixar ele bem baixinho para a princesinha Nickole poder se balançar.

 

     À noite, depois de pôr a filha para dormir os três adultos resolveram voltar ao assunto da casa e Silvana acabou deixando escapar a mal impressão que tivera no local.

Foi assim que adentraram numa conversação cheia de crendices, superstições e suspenses. Coisas de interior. Silvana já estava até com saudades dessas ocasiões...

 

     Aquela noite não foi fácil conseguir dormir. Ficara horas lembrando da casa nova, ora arrumando o jardim e decorando a casa ora imaginando se faria amizades com a vizinhança naquele bairro cheio de casarões antigos e distantes uns dos outros. No condomínio onde seus pais moravam as casas eram próximas umas das outras e todos se conheciam. Crescera num ambiente comunitário saudável e seguro. Queria poder proporcionar a mesma coisa a sua filha. Mas o valor das casas ali era muito alto.

___ Chega de ficar me preocupando! Expressou oralmente para ver se a mente lhe obedecia. Olhou a filha dormindo ao lado, a cobriu e deitou-se sentindo o seu cheirinho para ver se conseguia relaxar.

 

 

     Na semana seguinte Silvana já estava instalada na casa nova com a filha e a babá. Esta não morava com elas mas ficaria uns dias assim até que Silvana encontrasse alguém do próprio bairro para substituí-la.

Os pedreiros que fariam o muro do quintal ainda estavam terminando uma outra obra e enquanto eles não chegavam, outro trabalhador fora chamado para limpar o terreno, podar as árvores e capinar. E foi assim que a cerca ficou totalmente visível e uma trilha estreita que a atravessava se evidenciou.

Algumas semanas se passaram e durante esse tempo, todas as tardes Nikole se divertia com a babá no balanço do pé de jabuticaba enquanto Silvana cuidava das suas atribuições pedagógicas em casa.

 

     A moça que cuidava da menina não trabalhava aos fins de semana. Por isso aos sábados Nikole sempre ficava com a mãe, salvo nos fins de semana que o pai aparecia para vê-la e a levava para passar o domingo na casa dos próprios pais que também moravam na cidade, porém em uma fazenda afastada da zona urbana.

Naquele dia em particular, Silvana estava muito cansada. Havia passado quase duas semanas inteiras trabalhando na mudança e agora só queria tirar uma tarde para dormir. Mas Nikole estava muito inquieta.

Queria ir ao balanço como nas outras tardes e para satisfazer a filha Silvana pegou uma cadeira de praia dobrável que armou embaixo da jabuticabeira. Deitou-se com a intenção de continuar desperta vigiando a filha mas acabou adormecendo.

 

     De repente acordou atordoada pensando estar ouvindo o som de gargalhadas infantis mas olhando em volta não viu nenhuma criança. Demorou a entender onde estava e por que. Subitamente lembrou-se da filha e de imediato chamou:

__ Nike? Filha?

     Nada. Estava tudo quieto. No balanço ela não estava. Nem ali no quintal, senão a teria visto. Levantou-se assustada para ver se a porta da frente estava aberta. Mas estava tudo em ordem ali. Olhou e chamou em cada cômodo da casa e nada. Nenhum sinal da menina.

     Voltou para o quintal e então lembrou-se do buraco na cerca. Foi correndo até lá e se deparou com a imagem da filha toda sua de terra junto com a garotinha do balanço.

Silvana então ficou nervosa e gritou:

__ Nikole! Venha para casa filha!

     As duas crianças pararam e olharam para Silvana imediatamente. De início sua preocupação era direcionada apenas para a filha, mas aos poucos, sua atenção foi desviada para a fisionomia estranha da menina que estava com ela e se assustou com o que viu.

     Os olhos fundos no rosto esquálido lembrava uma criança muito doente ou passando muita fome. A pele extremamente pálida e o corpo esquelético era de cortar o coração, porém a sensação que Silvana teve foi de um medo pavoroso. Novamente um arrepio de frio cruzou-lhe o corpo fazendo os pelos dos seus braços ficarem eriçados.

     Chamou novamente a filha e esta deu um passo em sua direção mas a outra criança saiu caminhando normalmente e entrou exatamente no mesmo espaço retangular do muro ali no fim do terreno e desapareceu.

 

     Nikole voltou para casa com a mãe e esta, ainda muito nervosa, exigiu que a filha lhe dissesse por que fizera aquilo, mas num tom muito inocente a criança respondeu:

__ Eu não fiz nada mamãe! A Belinha só queria me mostrar onde ela mora agora.

Você sabia que essa casa era dela mamãe?

     

     Silvana aos poucos foi se acalmando e depois de fazer a filha prometer nunca mais seguir a amiguinha fez algumas perguntas para ver se ficava mais tranquila:

__O que Belinha tem? Você disse que ela só queria lhe mostrar onde mora? Então ela disse quem são os seus pais?

     Nickole olhou para a mãe e repetiu o que ficara sabendo:

__ Ela tá muito doente mamãe. E me disse que os pais deixaram ela dormido no muro e depois sumiram.

 

     Silvana ficou tensa e intrigada. Dormindo no muro? Os pais sumiram. Não sabia nada daquela história esquisita.

Sentara com a filha no colo na cadeira onde estivera dormindo e depois de um tempo tentando lhe explicar que não podia seguir Belinha até a casa dela sem pedir permissão, Silvana decidiu ligar para o pai para falar sobre o muro. Ele teria que encontrar outra equipe de pedreiros que pudesse fazer logo o muro do quintal. Agora a obra tornara-se urgente...

 

     Já estava anoitecendo quando as duas entraram em casa e foram tomar banho. Logo após vestirem-se Silvana serviu o jantar e, como a filha já comera bocejando, não teve trabalho nenhum para colocá-la para dormir.

A janela do quarto da menina deixava entrever a trilha em direção à cerca e quando Silvana foi fechar as cortinas avistou a menina em pé no meio do quintal. Novamente o calafrio a tomou. Viu quando a garotinha se dirigiu até o balanço e começou a balançar-se.

     Mais uma vez teve uma sensação estranha. Um medo inexplicável que não era condizente com a cena bucólica que via. Era só uma criança doente num balanço. Por que aquilo a assustava tanto? Pensou em mandá-la embora. Recriminá-la por ficar entrando no quintal. Mas uma estranha sensação de pena da criança lhe confrangeu o coração.

     De repente tomou uma decisão. Já havia fechado a porta do quintal, então deixaria que a garotinha se divertisse. Não iria expulsá-la.

     Fechou a janela, desligou a luminária do quarto da filha e foi ligar para o pai.

 

     O telefone tocou por um tempo mas ninguém atendeu.

     Tentou de novo! Nada outra vez...

     Foi então que lembrou-se do costume dos pais de irem juntos à missa das dezenove horas todos os sábados.

 

     Decidiu cuidar da louça do jantar e assim que terminou de arrumar a cozinha foi assistir um pouco de televisão para ver se conseguia se manter acordada até falar com o pai. Estava muito preocupada para esperar até o dia seguinte.

 

     Enquanto esperava a missa terminar lembrou-se do corretor de imóveis e resolveu ligar para pedir informações sobre os antigos donos da casa.

     Ligou. Logo no segundo toque o homem atendeu e Silvana então fez um breve relato do ocorrido. Por fim informou que a garotinha estava no balanço naquele exato momento.

     Para sua surpresa o homem deu uma gargalhada e perguntou se ela estava brincando.

Silvana não entendeu e, quase demonstrando estar chateada, perguntou se ele sabia ou não alguma coisa sobre a casa, seus antigos donos e tudo o mais que fosse importante sobre o assunto.

     O corretor percebeu que ela ficara chateada e mudando o tom de voz forneceu todos os detalhes do histórico da casa.

     Segundo ele os donos do imóvel o colocaram à venda há pouco mais de dez anos. Logo após uma tragédia familiar. Eles só tinham uma filha de aproximadamente sete anos e esta morreu prematuramente decorrente da queda de um balanço no quintal.

 

     Silvana ficou mais nervosa e perguntou se ele tinha mesmo certeza daquilo.

     O homem respondeu que talvez fossem só boatos a causa da morte da criança, mas confirmou que o casal fora embora da cidade algumas semanas após o ocorrido. Parece que haviam boatos de que a mãe afirmava estar se comunicando com a filha morta e o povo começou a especular sobre demência pós-traumática. A casa estava muito deteriorada pelos anos de abandono e isso dificultava as vendas então o marido autorizou uma reforma e lhe passou uma procuração para a venda da mesma há pelo menos cinco anos, quando ambos decidiram não mais voltar à localidade.

     Ao final do relato, já sorrindo novamente, o homem perguntou:

__ O que foi Silvana? Não vai me dizer que tem medo de assombração! Não se preocupe menina! Isso não passa de uma lenda urbana. Sabe como é em cidades pequenas. Essa história de uma garotinha perambulando pelo bairro em direção ao cemitério é pura invenção do povo cheio de crendices tolas. Mesmo porque, que mal uma garotinha morta pode fazer?!

 

     Silvana estava muito chateada com a chacota que ele fazia sobre as suas preocupações mas resolveu perguntar:

__ Você sabe me informar então se tem algum vizinho aqui perto com uma filha loirinha chamada Isabela? Como lhe disse há pouco, ela está neste momento pendurada no balanço da jabuticabeira do meu quintal e gostaria ao menos de avisar aos pais dela.

 

     O corretor aparentemente perguntou a alguém próximo, provavelmente a sua esposa, se conhecia alguém na rua ou no bairro da velha casa ao que a pessoa respondeu negativamente.

__ Bem! Eu não conheço, mas amanhã mesmo procuro essa informação para você. Mas fica tranquila. Sorriu.

__Você deve estar nervosa e cansada. Amanhã não estará mais vendo essas coisas, e pelo que eu sei esse pé de jabuticaba que você falou foi cortado durante a reforma da casa. 

 

Silvana já ia abrir a boca para lhe dizer uns desaforos mas o telefonema foi encerrado do outro lado sem despedida.

___ Cortado! Bem se vê que o Senhor não olhou direito a casa antes de a pôr à venda. 

Expressou em voz alta ainda chateada e segurando o aparelho com muita força.

 

Resolveu então ligar para a casa dos pais.

     Dessa vez a mãe atendeu e perguntou surpresa se estava acontecendo alguma coisa. Não era comum a filha ligar naquele horário. A última vez fora para avisar da separação e ela chorava muito.

 

     Silvana respondeu que não havia acontecido nada demais pois não queria deixar a mãe preocupada com sua saúde mental, ainda mais depois da conversa com o corretor. Sua mãe não entenderia essa coisa de lenda urbana. Para ela essa ideia de espírito era obra do demônio.

     Pediu então para falar com o pai sobre a obra e logo ouvia a voz carinhosa dele.

__ Oi filha! O que houve? Mudou de ideia?

 

     Assim que ouviu o pai na linha a moça foi direto ao assunto do muro e justificou a urgência por causa da escapada da filha. Não queria Nickole fugindo para brincar com a garotinha todas as tardes. Tampouco queria que ela visse a amiguinha uma hora daquelas no balanço. Senão não teria como disciplinar a filha.

 

     O pai, que conhecia o bairro e aquela história triste contada pelo corretor de imóveis apenas disse a filha que ela estava nervosa à toa, pois, não tinha como a neta ter visto e brincado com a menina mencionada pelo corretor pois ela morrera há mais de dez anos e nem fora enterrada no antigo cemitério do bairro. Os pais levaram o corpo para enterrar num jazigo familiar em outra cidade e, além disso, pelo que sabia ela não se chamava Belinha. E sim, Melissa de Castro ou Mel, como todos a chamavam.

 

     Silvana ficou mais tranquila. Então aquela criança no seu quintal estava bem viva e com certeza tinha pais. Só dissera aquelas bobagens à Nickole porque estavam brincando e sua filha ainda muito ingênua pensara ser verdade.

     Mas de repente ficou ansiosa novamente e perguntou ao pai se o tal cemitério ficava depois de um muro no fundo da sua casa. Quando o mesmo confirmou Silvana saiu correndo para ver se a criança ainda se encontrava no balanço. Mas este já estava vazio. Voltou ao telefone mas o pai já havia desligado...

 

     Aquela noite não dormiu.

     Quando o dia estava amanhecendo levantou-se da cama e ainda de camisola, abriu a porta dos fundos e tomou o caminho da trilha até o muro.

     Precisou afastar mais duas estacas para poder passar pela cerca. Ao chegar próximo ao retângulo no muro que antes ela pensara ter visto aberto deparou-se com uma lápide em temática infantil onde se lia:

 

“Aqui descansa em paz

nossa amada filha

Isabela Muniz de Carvalho!

A garotinha do balanço”.

 

     Ao ver aquela imagem e ler o epitáfio Silvana estremeceu. Sentiu uma comoção profunda e chorou!

     Mas a brisa fresca da manhã que ainda nascia naquele domingo lhe trouxe aos ouvidos o sorriso sonoro de uma garotinha que, pela direção de onde vinha o som, já brincava num balanço ali perto.

 

     Silvana sentiu o medo injetando força e rapidez ao seu corpo e saiu correndo desesperada para casa. Viu que a filha já estava na calçada da cozinha conversando com a menina que se encontrava pendurada no balanço. Pegou imediatamente a filha no colo, entrou na casa e fechou a porta da cozinha. Correu até o quarto da menina e pegou uma sacola onde foi colocando tudo que naquele momento considerou que iria precisar. Em seguida, ainda segurando a filha nos braços, foi para o próprio quarto, jogou alguns pertences num tiracolo, pegou as chaves do carro e voltou para a casa dos pais.

     Era muito cedo, mas como ainda tinha as chaves entrou em casa e foi direto para o antigo quarto onde dormia com a filha antes de se mudarem. Ali jogou as sacolas numa poltrona e se ditaram ficando quietas. Ambas com os corações acelerados de pavor...

 

 

     Quando o despertador tocou as nove horas daquela manhã de domingo Silvana acordou sobressaltada. Procurou pela filha e quando a viu dormindo ao seu lado na cama, respirou aliviada.

     Beijou o rostinho da filha carinhosamente e cobrindo-a direito, levantou-se e foi até a cozinha ainda com o pijama de flanela. A mãe já havia preparado o café da manhã e o pai estava vendo o jornal na televisão.

 

     Cumprimentando a mãe pegou uma xícara no armário, se serviu de café e sentou-se ali à mesa. Olhou o jardim do quintal bem cuidado e após um longo tempo de divagações disse:

__ Mamãe? Será que a Nick e eu podemos ficar aqui com vocês por mais um tempo? Pelo menos até ela se sentir mais segura sem a presença do pai?

 

     A Dona Fátima olhou para a filha com tanta alegria que seus olhos estavam marejados de lágrimas. Foi até onde ela estava sentada e deu-lhe um abraço tão carinhoso que parecia mais um agradecimento que uma permissão.

Então ela lembrou-se de perguntar:

__ E a casa meu bem? Desistiu de comprar?

Silvana deu um meio sorriso e respondeu:

__ A Nick e eu já estamos em casa mamãe.

 

     O pai estava entrando na cozinha naquele momento com a neta nos braços e ouvindo aquela afirmação deu-lhe um beijo na testa e saiu levando Nickole para dar comida aos marrecos recém-nascidos. Vendo-os de longe Silvana realmente se sentiu em segurança.     Virou-se para sua mãe no outro lado da mesa e perguntou:

__ Mamãe você conhece a história daquela casa?

Com um olhar estanho a mãe respondeu:

__ Sim minha querida! As pessoas dizem que é só uma lenda urbana mas eu conheci a mãe da Belinha e da Mel através da igreja. Você sabe. Lugar pequeno...

__ Eu lhe contei sobre ambas ontem à noite não se lembra?

__Pobres mulheres... Pobres crianças... Pobres famílias! Continuou Dona Fátima.

 

__ Será que a Belinha realmente matou a Mel mamãe? Questionou Silvana.

 

__ Quem sabe minha filha! Algumas pessoas pensam que sim. Graças a Deus você desistiu de levar minha neta para aquela casa mal assombrada.

 

__ Puxa mamãe, e eu que pensei que só havia tido um pesadelo...

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 20/02/2022
Reeditado em 25/02/2022
Código do texto: T7456762
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.