A Revelação
Era como estar preso no pior pesadelo... e nunca conseguir acordar... ou sequer ser capaz de gritar.
Espessas nuvens pardacentas moviam-se freneticamente no céu, anunciando a iminência de uma noite tempestuosa. Até parecia resultado de uma brincadeira infame, um mar de flores algodoeiras banhadas com coca-cola, prontas para a qualquer momento verter cada gota de litros absorvidos. Antes de a tormenta roubar a cena, chegávamos secos a morada para acompanhar às seis horas restantes da melhor noite do ano. Sim, após certa animosidade, acabei cedendo e aceitando passar o Halloween em casa. Iria ascender a abóbora e seu brilho fulgurante ajudaria a levar um punhado de pipocas à boca enquanto nos debruçávamos sobre alguns filmes de terror.
Agora já estava conformado, mas horas atrás, ainda no carro, essa alternativa despertou imenso dissabor.
- O que você tem em mente, arrumar uma fantasia essa hora da tarde e caçar alguma festa para invadir? Porque até onde saiba, ninguém te convidou pra nenhuma! – provocou Christine, em seguida, curvando a cabeça e apoiando as mãos na nuca, gesto adotado frequentemente quando estava impaciente e inteiramente indisposta a embarcar em uma contenda ardorosa. Azar o dela! Eu tinha planos para aquela noite e não pretendia abrir mão deles, pelo menos não tão facilmente.
- Sabe muito bem que não há festa alguma. Mas, quero dar uma espiada no movimento, ver se tem alguma brincadeira rolando por aí. Quem sabe não encontramos algum conhecido e até consiga um convite inesperado. Também não vim despreparado, trouxe na mala do carro umas coisinhas, tipo um chapéu de bruxa, capa, uma ou duas máscaras, tem ainda uma abóbora de plástico. Quem sabe não estamos perdendo alguma coisa boa por aí!
- Não vai rolar nada disso. A cidade está uma loucura, vem muita chuva, chuva grossa.
- Meu amor, se não encontrarmos nada, paramos em alguma praça, pegamos os enfeites que trouxe e tiramos umas fotos. Mas, antes, vamos dar umas voltas.
- Você é alguma espécie de idiota ou está se fazendo? Só falta, Cláudio, inventar de sair por aí com uma bolsinha roxa ou alaranjada tocando campainhas das casas e reclamando por doces. Você não está nos Estados Unidos, isso aqui é Brasil. Além do mais, não percebe como está o tempo? – Foi quando Christine posicionou o dedo indicador para cima, com sua explanação sendo respaldada por uma trovoada, daquelas arrebatadoras, legitimando todo o discurso.
- Ou seja, embora esteja de carro, devo esquecer o Halloween que passei meses ansiando, voltar para casa e me esconder entre as cobertas com medo de relâmpagos e trovões. Naturalmente, por conta de a senhorita ter tido um péssimo dia no trabalho.
- Realmente, Cláudio, tive um péssimo dia e não aguento mais esse emprego. Bem que gostaria que pudesse ter passado o dia comigo, naquela clínica, atendendo todas aquelas clientes insuportáveis. Você se daria conta que as bruxas realmente existem....
- Ah para! Esse papo de novo – tratei de interrompê-la. - Como sempre, você tem capacidade de distorcer as coisas. Agora, pra variar, a culpa é toda minha. Eu quem sou o incompreensível, insensível, e quanto mais íveis possam existir. Definitivamente, hoje não, Christine!
- Na verdade, não estou pedindo para você desistir de nada. Vamos passar um instante no shopping, é caminho de casa. Quem sabe não tenha alguma liquidação daqueles adereços de Halloween que tanto gosta. Você sabe melhor que eu como ficam as ruas dessa cidade com qualquer chuvinha, tudo acaba alagado. É melhor passar, como mesmo você chama: A MELHOR NOITE DO ANO assistindo filmes do que aqui, numa rua cheia d’agua, presos no trânsito. Sem falar na possibilidade de danificar seu amado carrinho...
- “Quem sabe não tenha alguma liquidação daqueles adereços de Halloween que tanto gosta”, tratei de arremedá-la, sabia bem o quanto aquilo a irritava e para minha surpresa não vociferou algo do tipo “Pare de mangar de mim” ou “não se atreva a ficar me imitando”. – Christine, não posso crer que, depois de tudo, você ainda irá me convencer. Até o Monstro de Frankenstein seria mais insistente. Eu realmente não passo de...
- Esquece isso, amor! – Dessa vez a espevitada tratou de invadir meu discurso. - Eu faço a pipoca, com bastante manteiga. Dessa vez, pode tomar quantos copos de refrigerante quiser e também pode escolher os filmes que preferir. O que acha?
- Amor? Foi isso mesmo que ouvi? Mal faz um minuto, você me chamou de idiota. Incrível como as mulheres podem ser volúveis quando é de seu agrado. Mas, agora não tem como voltar atrás, eu escolho os filmes e não irei admitir nenhum tipo de censura.
- Só não me venha com Candyman, sabe o quanto detesto abelhas. Também esqueça Sexta-feira 13, Halloween, Fred Krueger, Cemitério Maldito, O Exorcista, Pânico, Brinquedo Assassino... Definitivamente, estamos fatigados de assistir essas coisas, os tais clássicos. Eu topo ver alguns dos filmes daquele casal, os Warren, desde que não tenha aquela freira diabólica, como é medonha aquela criatura trevosa.
- Eu achava que você tinha concordado em não se intrometer. Além disso, pensei em rever os dois capítulos de IT, talvez Hereditário ou Suspíria, a versão de Dario Argento, naturalmente. Algum filme de vampiro iria bem, digo vampiros de verdade como em A Hora do Espanto, não os genéricos. Quem sabe também alguma produção assinada por expoentes do quilate de Wes Craven, John Carpenter, James Wan - comentei, citando outros cineastas como Mike Flanagan, Jordan Peele, Tobe Hooper, José Mojica Marins...
- Como quiser, meu amor! – Hummmm, parece que agora eu estava vencendo a peleja. Tudo que realmente queria, era curtir de VERDADE uma assustadora noite de Halloween.
O humor de Christine melhorou muito depois do atrito. Embora a visita ao shopping tenha sido breve, até nos divertimos um pouco antes de seguir para o marasmo de casa. Antes, para ilustrar o momento, cheguei a tirar uma foto com duas garotas gêmeas, de aproximadamente oito anos de idade. As duas realmente esbanjavam capacidade de validar o adjetivo estranho.
Pouco tempo depois o ânimo de Christine, inesperadamente, esvaeceu durante a chegada ao apartamento. Percebi logo ao cruzarmos o limiar da sala. Estava um tanto absorta, desnorteada, como se tivesse sido atingida por uma estúrdia sonolência, morbosa por alguma substância ou feitiço. Sua condição suspicaz me fazia ignorar alguns sonidos incógnitos. Em vez de seguir para a cozinha, onde logo um amontoado de pipocas despontaria como a especialidade da noite, Christine deu alguns passos à frente, espiando a varanda de reduzidas dimensões, regressando logo para fitar o compartimento adornado pela mesa de jantar com quatro lugares, mesinha de centro, sofá com dois lugares, duas poltronas de plástico e um aparador instalado próximo ao umbral, precisamente no canto da parede que seguia até a entrada do espaço onde os alimentos eram preparados.
Alguns passos à esquerda a levaram até o corredor onde os três cômodos do imóvel estavam alinhados. A princípio pensei que seguiria para a sala de tevê, ornamentada para agradar um fã inveterado de filmes de terror, com diversos pôsters, bonecos de personagens clássicos como o palhaço Pennywise, os serial killers Jason Voorhees, Michael Myers, Leatherface, Chucky, Ghostface e até entidades maléficas como Valac e Annabelle, além de vários adereços característicos do Halloween como Abóboras Sorridentes (jack-o'-lantern), caldeirões, bruxas, fantasma...
No entanto, o transe a levou a tomar a estreita passagem à direita, possivelmente em direção à suíte, talvez para tomar um banho e trocar de roupa. Resolvi segui-la, quando notei que estava no “quarto do meio”, como chamávamos o escritório e a biblioteca, inteiramente estirada sobre a poltrona pousada de frente a parede, perto da porta.
- Pensei que estava indo para o banheiro trocar de roupa e tomar banho, como gosta de fazer ao voltar do trabalho. – A resposta só não veio em forma de um silêncio quase sepulcral, por conta de diferentes soídos a serem ouvidos em diferentes pontos da casa. Havia até uma espécie de sussurro reverberando, ora parecia mais longe e outros momentos mais próximo. Mais do que um evento meramente heteróclito, o cenário adquiria ares tenebrosos e um tanto dantesco.
Meio tépido, eu disfarçava a sensação de haver alguma coisa errada. Os esforços estavam a serviço de ensaiar uma maneira de retomar a normalidade, apesar de aquela altura já não fazer questão alguma de perpetuar, nas horas seguintes, o clima do Dia das Bruxas.
- Que tal se você adiar o banho um pouco e fosse pra cozinha fazer a pipoca que prometeu, enquanto vou pra sala de tevê escolher os filmes... - Acabei interrompido por um rijo estrondo, trovões ribombavam o céu. Através da moldura vítrea era possível fitar os contornos dos relâmpagos a se formarem, por alguns segundos expurgando a escuridade da noite, ostentando uma alvura intensa. Como o edifício fora erguido em uma região alta, quase como um promontório, a visão de alguma forma acabava privilegiada.
No último clarão resultante de uma descarga elétrica, a luz do condomínio inteiro aparentava ter sido drenada. Ao mesmo tempo foi possível ouvir o barulho de alguma coisa despencando na sala de tevê. Em disparada, fui ver o que aconteceu, cedendo ao impulso de tatear o interruptor, tendo esquecido a falha energética. Para meu espanto, a claridade irrompeu o ambiente, com a queda perdurando então por não mais de 20 segundos. Isso não me causava qualquer estranheza, perturbava mesmo a desagradável surpresa de ver o televisor, antes fixado em um painel de madeira, acabar pendendo e agora repousava sobre o rack.
- Que loucura! Christine, venha aqui, veja que coisa mais estranha. – Sem resposta, acabei empostando a voz em tom quase agressivo. – Não ouviu que estou chamando você? Christine, vem até aqui e que seja logo!
- Eu não quero sair daqui – finalmente ela respondeu, com a voz compassada, como se estivesse alheia a todos os eventos.
- Christine, venha de uma vez. Preciso de ajuda para...
- Já estou aqui! – Confesso que me assustei, não sei exatamente se pelo fato de ela já estar bem atrás de mim ou pelo timbre murmurante da voz, um tanto estrídula e fleumática.
A despeito de totalmente abstraída, acabou me ajudando a içar o televisor e acondicioná-lo novamente no painel, logo acima do rack. Embora o aparelho, por obra do acaso, tenha despencado da peça pregada na parede, não aparentava ter sofrido qualquer avaria. Sequer tive tempo para idear os fatores responsáveis pela queda, afinal não parecia resultado dos estrondos relampejantes, minha atenção de imediato sucumbiu a um dos “assustadores” adornos dispersos no quarto.
Lembro ter ouvido antes barulhos suspeitos ecoarem do palhaço, em contra partida, nunca suas feições adotaram um tom hilário e menos ainda emanava uma luz parca e estranha. O esdrúxulo bufão atracou em nossa “sala de teve” como um presente inusitado de Christine, mas ninguém nunca soube ao certo apontar a gênese da criatura insepulta. No começo, achei seu visual atípico e um tanto soturno, com um alvacento chapéu pontiagudo encimado de cabelos pardos bastantes desgrenhados. A face ainda ostentava o nariz rubro e estrelares olhos, negros como o céu mais escuro, além da boca composta por uma estranha fenda escancarada (encompridada). As roupas cinzentas, no mesmo tom do chapéu, eram repletas de estampas, imitando o formato de bocas brancas com contornos cetrinos, com as vestes se estendendo ao restante do mirrado corpo, inclusive os braços escassos.
Naquela noite, o palhaço adotava a forma de uma criatura ainda mais esfíngica e sombrosa. Escutando pequenos cicios irromperem de sua direção, resolvi tomá-lo entre as mãos, não cedendo à insensatez imposta pelo assombroso delírio. O silvo do vento, de maneira súbita, despertou o palhaço adormecido, o riso mais tétrico varava o silêncio, sendo possível mirar os olhos banhados de ódio. Dezenas de gadanhos passaram a travar uma luta para escapulir da arcada e encontrar estada em meu pescoço para assim sorver cada gota de sangue a percorrer as veias e artérias.
O palhaço não escondia o êxtase de conseguir utilizar as presas, tão afiadas como faca, para extirpar minha carne, desossá-la, antes descosendo os músculos e tendões. Por um instante, pude notar que apesar do formato irregular dos dentes cortantes, a conversão torava-se perfeita quando permaneciam serrados. Enquanto reunia forças para conter a investida, apesar de leve projetava-se contra mim com farta vitalidade, a criatura colocava ainda em prática o intento de tentar me desestruturar com a voz gutural, proferindo insanas ameaças: “Eu vou te matar seu paspalho. Não sabe o quanto esperei por isso. Essa sala agora será minha, irei deixá-la vermelha com seu sangue, extrair suas vísceras e pendurá-las. Irei arrancar suas tripas para enrolá-las na televisão, o enfeite perfeito para o Halloween”.
Enquanto tento conter as ofensivas do palhaço, olho para Christine, empedernida. Não podia me preocupar com ela agora, era necessário dar um jeito na criatura maquiavélica, antes que arrumasse uma maneira de cumprir suas ameaças. Passei a segurar seu corpo escasso com ainda mais força, ao mesmo tempo, abria e fechava a boca de forma célere, como um cão raivoso. O bufão resistia, balburdiando bravatas e tentando cravar as presas em alguma parte do meu corpo.
Com esforço, consegui levá-lo até a cozinha e apesar da luta e dos gritos incessantes pude acondicioná-lo em um volumoso frasco, capaz até de suprimir suas ameaças quando acionei a tampa. Apesar da resistência, o mal estava contido no recipiente, deixado sobre a pia enquanto retornava ao cômodo para ver Christine e tentar demovê-la do choque.
É possível que a exasperação lhe tenha trazido de volta ao mesmo lugar de antes, repousando aturdida na poltrona.
- Christine, não temos muito tempo a perder! Precisamos levar essa coisa daqui o quanto antes. Espero que não seja muito tarde, que essa maldição não tenha se arraigado no apartamento, nos assombrando, encontrando eterna morada aqui.
- Eterna morada, assombrando... O picadeiro do palhaço.
- Christine escuta – realmente estava extenuado – sei que o palhaço é seu e lamento muito por isso. Vou encharcar o pote com álcool e queimá-lo. Depois arremessá-lo em algum lugar, provavelmente no esgoto que é o lugar deles. Espero que nossos vizinhos não tenham...
- Tah
- Sabe Christine. Eu penso que, por mais estranho que pareça, estamos diante de uma demonstração do sobrenatural. Podíamos filmar o palhaço, antes de fazer churrasquinho dele. Ainda assim, não acreditariam, ninguém acreditaria, acho.
- Não acreditariam, acho!
- Você poderia vir comigo, para me ajudar, segurar o pote e vigiá-lo. A coisa está...
- Vir comigo... Não!
- Poxa, Christine! Por favor, eu preciso...
- Por favor, poxa... Não quero sair daqui – dizia, mantendo os olhos abertos, sem piscar por um mero segundo.
Sabia que algo estava errado, era nítido e, talvez, fosse necessário me livrar do emissário das sombras para finalmente trazê-la de volta, embora não sabia se queria isso, talvez gostasse dessa Christine. Então começo a caminhar, compassadamente, de volta a cozinha, tinha um novo encontro marcado com um palhaço aterrador e não seria nada salutar deixar o ser sombroso esperando.
O percurso nunca pareceu tão longo, uma marcha peregrina, até o barulho de algo se espatifando vir da cozinha. Alguns rápidos passos para traz me levaram de volta a soleira do “quarto do meio”, onde Christine, apesar dos olhos abertos, convivia com sua letargia. Um novo relampejar fulgente preencheu o longínquo horizonte com seu clarão ominoso, acompanhado pela tríade de estrondos, novamente levando o apartamento a completa escuridão.
A luz não retornava por mais moroso que fosse meu movimento. No picadeiro do palhaço, gargalhadas sussurrantes e o barulho de passadasr rompiam o silêncio perpétuo aliado à escuridão mais perturbante. O emissário das trevas estava ali, em algum lugar, à espreita, sorrateiro nas sombras, com as presas cortantes prontas para extirpar. Talvez pudesse novamente ouvi-lo se movendo caso o ronco de Christine não reverberasse intensamente. Isso era o mais perto do inferno que podia chegar, diante da mais assustadora e verdadeira noite de Halloween.
- Cláudio, decidi ajudar você a procurá-lo – Exprimiu atrás de mim. Era a voz de Christine, retumbando em perfeita sincronia com timbre manifestado antes pelo bufão. Senti então uma coisa inquietante nas costas, atingindo a pele, os músculos, arrefecendo tudo que pudesse ter pela frente.