"Ela chegava e partia como uma sombra."
E. A. Poe
Casamos. Não por amor ou paixão, mas pela conveniente união entre o título ancestral que minha família carrega e a fortuna que a família dela havia acumulado. Jamais a toquei. Nem mesmo em nossa noite de núpcias. Soube mais tarde que todas as noites desde nosso casamento ela esperou por mim no leito conjugal usando a camisola de renda branca que havia recebido como um presente especial de sua avó para a ocasião em que se tornaria minha mulher, no entanto, fosse por recato ou pela humilhação de um casamento não consumado, nunca se queixou.
Olivia deixou a sociedade para se dedicar exclusivamente a mim e para viver no antigo casarão que havia pertencido aos meus antepassados. Situado na área rural, há alguns quilómetros da cidade, aquela era uma das últimas propriedades que restara à minha família de lordes e barões e há muito tempo revelava os indícios de nossa decadência financeira e moral. A construção de paredes carcomidas pelo tempo e cheirando a mofo havia sido o presente de casamento que meu pai nos dera, claramente crendo que a vida no campo me afastaria dos vícios e prazeres da cidade, porém, para o desgosto de meu pai, enquanto Olivia dedicava-se a recuperar um pouco da elegância há muito perdida por aquele lugar que agora era nosso lar, eu passava a maior parte do tempo fora de casa, mantendo minha vida de boêmio.
Ela nunca se opôs e, mesmo quando eu retornava somente após dias de ausência, cheirando à álcool e à sexo barato, lá estava ela para me receber com seu sorriso fácil e gentil. Sua bondade e mansidão longe de aplacarem o desprezo que eu sentia por ela e por ter sido obrigado a me ligar àquela mulher que nada tinha em comum comigo, inflamavam minha ira e me faziam desejar feri-la, então, para me vingar, decidi privá-la de todo o luxo a que ela estava acostumada, ordenei que os finos móveis lindamente estofados e talhados em madeira de lei que nos haviam sido dados por seus pais para mobiliar a casa fossem devolvidos assim como todo seu rico enxoval de cetim alvo, seus vestidos elegantes e casacos de pele. Nada disso a abalou.
Somente quando determinei que sua biblioteca fosse levada de volta para a casa de seus pais pude notar um leve tremor se formar ao redor de seus olhos gigantes e profundamente castanhos. Aquela pequena vitória, contudo, não me proporcionou qualquer prazer, já que em tudo ela me obedeceu sem oposição, choro ou suplica e eu a odiei ainda mais por sua obediência servil e firmeza de caráter e, enquanto eu diluía seu ouro em jogos, bebida e mulheres, ela vivia de maneira frugal sem nunca perder a dignidade e o contentamento que lhe eram peculiares.
Durante todo seu breve tempo como minha esposa, Olívia manteve-se fiel a mim, sem jamais deixar de cumprir seu papel de boa esposa e de me honrar como seu mestre e senhor até que, no ano seguinte a nossas bodas, fomos castigados com um dos piores invernos da história. Durante uma tarde especialmente fria, o dedo da morte tocou o peito de Olivia que, sendo mulher e frágil, definhou rapidamente e, sentindo que lhe restava pouco tempo, implorou para que eu fosse levado até seu leito antes que partisse.
Meu pai em pessoa encontrou-me sentado à mesa de carteado, numa espelunca de nenhuma classe, em meio a ébrios e prostitutas e embriagado em minha própria perversão. Sendo ele o único homem a quem eu temia, após estapear meu rosto na frente de todos aqueles que eu considerava como meus amigos, arrastou-me com suas próprias mãos até a alcova de minha desventurada esposa.
Ali no quarto mal iluminado as sombras alongavam-se nas paredes movendo-se no mesmo ritmo lento das chamas dos candelabros e conferindo ao lugar um aspecto fantasmagórico. Há dias eu não via minha esposa e quase não reconheci aquele corpo mirrado e encolhido na cama como sendo a bela mulher com quem me obrigaram a casar. Sua respiração era apenas um chiado, mas mesmo sem forças ela pediu a todos que se retirassem por um momento e nos deixassem a sós.
Enquanto todos deixavam o quarto atendendo ao último desejo daquela pobre criatura, meu pai postou-se diante de mim e segurando meu antebraço direito em suas mãos com força suficiente para me lembrar do que ele era capaz, sussurrou em meu ouvido com sua voz firme e baixa que sempre me assustara ordenando que eu agisse como um homem pelo menos naquele momento derradeiro. Aquilo me fez corar e senti as lágrimas ardendo em meus olhos como em todas às vezes que ele deixara claro que me considerava um fraco.
Quando ficamos a sós, Olivia olhou-me com aqueles seus olhos imensos que pareciam abarcar o mundo e fez sinal para que eu me aproximasse. Relutante, postei-me ao lado de seu leito e notei que, apesar do frio intenso, ela vestia uma camisola fina de tecido ordinário, mantendo-se obediente às minhas ordens até em seus últimos momentos. Com grande esforço, ela esticou o braço até alcançar minha mão me fazendo estremecer ao seu toque suave e gelado. Sorriu com doçura e em meio a fortes acessos de tosse e com imensa dificuldade para respirar, murmurou com uma voz que era menos do que o ronronar de um gato moribundo, jurando que me amara como cabe a uma mulher amar a seu marido, que continuaria a me amar mesmo após a morte e ofegante ofereceu-me um perdão que eu nunca havia pedido e que sequer desejava.
Aquele ato de bondade feriu-me de tal modo, fazendo o fel amargo espalhar-se por toda a minha alma. Senti o ódio assassino tomar conta de mim e, antes mesmo que pudesse pensar em meus atos, puxei um de seus travesseiros e pressionei-o sobre seu rosto pálido. Ela ainda tentou lutar por sua vida. Pobre ingênua, mesmo que estivesse saudável não teria qualquer chance contra mim, maior e muito mais forte do que ela. Sentindo a excitação tomar conta de meu corpo, pressionei com mais força e não demorou a que ela começasse a estremecer em violentos espasmos até seus braços caírem inertes ao lado do corpo.
Quando retirei o travesseiro de sobre seu rosto, seus olhos estavam abertos e vítreos, e pareciam me olhar com assombro.
Toquei seu pulso e constatei que ela estava morta. Decidi aguardar alguns minutos para me acalmar antes de começar a desempenhar o papel de esposo enlutado. Respirei fundo aguardando que meu coração voltasse ao compasso normal e quando me senti senhor de mim novamente, baixei-me para fechar seus olhos, mas antes que eu pudesse tocá-la, seu corpo agitou-se com força, as narinas dilataram-se sugando o ar, seu dorso levantou-se e se colocou em uma posição inacreditavelmente ereta. Petrificado pelo medo, não tive qualquer reação enquanto ela olhou-me com olhos que agora eram apenas duas grandes bolas brancas e leitosas e antes de tombar pela última vez gritou com uma voz aguda e irreconhecível a temida palavra: Assassino!
Familiares e criados entraram no quarto aos supetões e me surpreenderam atônito, os olhos vidrados, pálido e imóvel e tomaram aquele meu estado catatônico como resultado do trauma de ter presenciado a morte de minha jovem e bela esposa. Em meio ao choro e lamentação que dominou toda a mórbida plateia à minha volta, fui retirado do quarto e, enquanto me levavam para fora, tentei perceber se alguém havia ouvido a acusação que sobre mim agora pesava, mas ninguém parecia ter ouvido e apenas mais tarde soube que o que alertara a todos e os fizera entrar no quarto, tinha sido um suposto grito saído de meus lábios, o que não neguei.
Enfim, eu estava livre daquela mulher que tinha sido minha vergonha e meu grilhão. Havia herdado seu dote e era tanto dinheiro que eu poderia passar o resto da vida sem me preocupar. Achei de bom tom me recolher nos primeiros dias após a morte de Olívia, e estipulei que meu falso luto perduraria até o dia em que rezaríamos a missa de sétimo dia em favor de sua alma, após isso, teria de volta minha vida devassa. E assim o fiz.
Sepultamos Olivia numa manhã fria e chuvosa sob o choro de sua família, amigos e até de seus criados, no cemitério reservado à minha família, na propriedade onde nós havíamos vividos como um casal aos olhos da sociedade, durante aqueles poucos meses, lugar que em breve eu deixaria para sempre, mas antes, cumpri todos os rituais representando a contento o papel de viúvo sofredor e ao que me parece, me saí muito bem, pois o único olhar de suspeita que identifiquei vinha de meu pai.
Permaneci no casarão até que os primeiros raios de sol tomaram o campo no sétimo dia após a morte de Olívia trazendo consigo a promessa de minha liberdade, ainda dormia quando senti o perfume inundar o ar. O aroma do sândalo era tão forte que me fez despertar e com o coração aos pulos me dei conta de que aquele era o cheiro dela.
O aroma pungente do perfume de Olivia despertou-me com a intensidade de um aguaceiro. Levantei-me sobressaltado com a nítida e absurda sensação de que ela estava em meu quarto. Com o coração aos pulos, olhei ao redor esperando vê-la ali em pé, mas não havia ninguém e fui obrigado a deixar o aposento ainda em mangas de camisa para não sufocar.
Já no corredor, lutando para controlar a onda de náusea que aquele cheiro doce havia me provocado e arfando pela necessidade de ar puro, gritei chamando pelos criados e ordenei que lavassem tudo que havia ali, que esfregassem o chão, os móveis, as cortinas e que se necessário fosse colocassem a casa a baixo, mas que livrassem meu quarto daquela presença agourenta. Após me recuperar do intenso mal-estar que o aroma de sândalo me provocara, preparei-me e então segui para a missa de sétimo dia de minha esposa que teria lugar na catedral no centro da cidade.
Confesso que derrubei uma ou duas lágrimas tocado pela beleza melancólica das mil velas que iluminavam a nave central da igreja ornamentada com lírios brancos que se espalhavam sob os olhares piedosos das dezenas de imagens de santos e santas. A cerimônia foi longa e cansativa e apesar de conhecer toda aquela ladainha repetida em coro que ecoava pela igreja, sem me importar se alguém notaria meu silêncio e sem qualquer remorso, dei-me o direito de não proferir prece alguma por aquela alma que parecia não ter pecados.
Estava exausto e o único pensamento que ocupou a minha mente durante todo o ritual celebrado por vozes que pareciam vir do além para nos falar em uma língua morta há muito tempo, era deixar aquele lugar o mais rápido possível e ter minha vida despreocupada de volta.
Finalizada a infinidade de cânticos, orações e homilias, recebi os cumprimentos dos presentes na porta da catedral, onde há tão pouco tempo nosso casamento havia sido celebrado. Ri-me imaginando que naquele dia eu não poderia imaginar que minha prisão seria tão breve, enquanto permaneci ali por um período que me pareceu eterno, em pé ao lado dos pais de Olívia que choravam sem qualquer pudor.
Aquele tipo de demonstração pública de sentimentalismo era típico dos burgueses. Os novos ricos. Pessoas com muito dinheiro, mas sem qualquer classe, que compravam títulos por meio de casamentos arranjados acreditando que o dinheiro lhes tornaria parte da nobreza e, assim, enganavam-se a si mesmos.
Sem suportar mais um minuto daquele teatro ridículo, me despedi sem dar explicações. Não iria participar da recepção preparada na casa dos pais de Olivia. Não suportava mais fingir tristeza quando tinha o coração radiante em júbilo por não depender da mísera mesada que recebia de meu pai e, especialmente, por estar livre daqueles laços que me prenderam sem nada significar para mim, mas que haviam pesavam sobre meus ombros como as correntes nas galés.
Eu era um homem livre novamente. Livre e rico. Então, saí dali e segui diretamente para o melhor bordel da cidade onde desfrutei de tudo o que o dinheiro de Olívia podia me dar. Foram momentos de tão intenso prazer que acabei por me esquecer completamente daquela criatura pequena e sensível que fizera parte de minha vida.
Dias depois, quando voltei para casa a fim de me recuperar do excesso de álcool, láudano e mulheres, constatei, para meu total espanto, que o aroma de sândalo ainda dominava todo o casarão, mais forte e onipresente do que nunca. Ameacei chicotear os criados que juravam ter lavado tudo conforme eu havia ordenado, entretanto, cada canto da casa estava embebido no cheiro doce e enjoativo. Durante o transcorrer do dia, me dei conta de que o perfume de Olivia impregnava não apenas meu olfato, mas também meu paladar, maculando a comida, a água e até mesmo o vinho trazido do mais profundo de minha adega. Não pude comer, pois aquele cheiro que agora se tornara uma presença, havia tomado tudo, porém, não obstante a irritação que toda aquela situação me causara, outra questão se apresentou a mim logo após o almoço intocado.
Fui informado de que, por razões que meu advogado não soube esclarecer, os bens que eu havia herdado com a morte de Olivia ainda não tinham sido transferidos para meu nome, o que me exasperou profundamente e mortificado pela raiva, compreendi imediatamente o nefasto significado daquilo: mais uma vez eu teria que adiar a retomada de minha liberdade.
Era necessário garantir que minha herança estivesse assegurada, pois, além de não dispor de recursos para manter aquela vida desregrada, temia que os pais de minha falecida esposa, em sua sovinice, estivessem tramando me privar daquilo que era meu por direito. Eu precisava estar de posse de todas as minhas faculdades mentais para não ser enganado, então, ordenei aos criados que me preparasse um banho, um café forte e me trouxessem o contrato pré-nupcial e todos os documentos referentes aos bens de Olivia para que eu pudesse estudá-los com cuidado.
Naquela mesma tarde, sentei-me em meu escritório decidido a não dormir até que tivesse revisado todos aqueles papéis que se acumularam sobre minha mesa em uma pilha homérica, porém, a fome somada ao maldito cheiro de sândalo entorpeciam meus sentidos, então, apesar do frio invernal, resolvi abrir as janelas a fim de permitir ao ar circular.
Lá fora, o luar lambia a campina que se estendia até as colinas distantes. A noite clara e o terreno plano permitam-me ver longe e por alguns momentos contemplei a vastidão sentindo o ar puro e frio da noite encher meus pulmões revigorando meus sentidos até que, em dado momento, percebi uma pequena mancha branca e disforme ao longe. A distância não me permitia distingui-la, mas eu podia notar que ela se movia como se inflada pelo vento.
Esfreguei os olhos para desembaçar a vista e quando os abri novamente a mancha branca tinha se transformado em uma forma que ia se tornando cada vez mais completa e definida à medida que se aproximava. Meu coração batia pesado, como se pressentindo o perigo, porém, minhas pernas não obedeciam à ordem de afastar-me dali. O ar da noite tornou-se mais gélido e o vento que me banhava uivou e trouxe consigo um suspiro suave e indistinto que resvalou em meu rosto e sussurrou “assassino”.
Tomado pelo mais completo horror, bati com força as janelas no exato momento em que a mancha branca se chocou de encontro ao vidro e pude ver cara-a-cara os olhos que já não eram doces e gentis, mas que haviam se transformado em olhos de cobra que me olhavam sem piscar e os lábios que se abriram em um sorriso cruel e zombeteiro.
Mal aquele demônio me lançou seu olhar de trevas, desmaiei.
Fui encontrado pelos criados apenas na manhã seguinte, tiritando de frio e delirando em febre enquanto os papéis e documentos que eu não chegara a analisar ardiam no que restara do fogo da noite anterior que crepitava na lareira e lentamente extinguia-se. Fui contaminado pela doença do medo e as asas negras do terror sobrevoaram meu coração e, embora meu discernimento tenha sido coberto pelas trevas, não havia de minha parte qualquer dúvida acerca do que eu havia presenciado naquele anoitecer em meu escritório e do significado que aquela visão aterradora possuía.
Olivia voltara do hades para se vingar. Como uma alma mesquinha, deixara o descanso eterno para me impedir de herdar seu dote e assim me privar da liberdade que, como ela sabia, me era tão cara. Entretanto, apesar de minha certeza quanto a isso, não ousei dizê-lo a ninguém, pois temia que minha sanidade fosse questionada e que, eventualmente, aquilo pudesse afetar o recebimento de minha herança.
No dia seguinte à primeira aparição de Olivia, tão logo o dia amanheceu, fui despertado de meu sono agitado pelo estrondo das janelas de meu quarto sendo abertas pelas mãos invisíveis do vento vespertino que invadiu meus aposentos. Temendo deparar-me novamente com aquele rosto marmóreo e aqueles olhos de serpente, permaneci com os olhos fechados e no mais completo silêncio, tremendo sob as cobertas. Não tardou a que meu quarto fosse tomado pelo cheiro de sândalo e por murmúrios indistintos até que senti um suspiro profundo em meu ouvido que me fez gritar horrorizado, sem que fosse atendido por qualquer dos criados que pareciam alheios ao meu sofrimento.
Ainda dominado pelo terror e pela angustia, permaneci imóvel até que o lugar ficou em total silêncio outra vez, tomei coragem para me levantar e buscar abrigo junto à companhia dos meus serviçais, porém, desde aquele dia, a presença de Olívia tornou-se cada vez mais distinta e assim como seu perfume onipresente, onde quer que eu fosse podia senti-la perto de mim, pois como se todas as preces que haviam sido rezadas por sua alma não tivessem sido suficientes para lhe prover a paz eterna, seu espírito foi tomando forma até transforma-se em uma presença corpórea e constante.
Naqueles dias, recebi a visita de meu advogado que veio me colocar a par do andamento do processo em que se discutia meu direito ao dote de minha esposa tendo em vista seu falecimento ter se dado em menos de um ano de nossas bodas e que tal situação estava prevista em várias cláusulas no contrato pré-nupcial, entretanto, meu entendimento encontrava-se de tal modo comprometido pelo uso contínuo do ópio, que sequer pude compreender uma palavra do que ele dizia.
Ele, percebendo minha triste condição e crendo que tal decadência era fruto de um coração que sofria a dor do amor perdido, pediu-me licença e comprometeu-se a retornar quando minha situação se mostrasse mais favorável. Tentei dizer a ele que não existia amor, apenas ódio, mas de minha boca saíram apenas palavras desconexas e ele se despediu com um olhar condescendente que tornou minha humilhação ainda mais completa.
A presença de Olívia tornou meus dias e noites inquietos e repletos de sons furtivos e movimentos difusos. A casa parecia estar sob o total domínio de Olivia que deixava sua presença óbvia ao fazer com que as cortinas se movessem sem o menor sinal de brisa no interior da casa ou que meus objetos de uso diário desaparecessem para serem encontrados logo depois em lugares impossíveis. Enchia o ar com seus sussurros baixos e intensos ou com lufadas de vento em cômodos totalmente fechados que apenas eu podia ouvir e sentir.
Manifestava-se nas sombras à contraluz que se moviam pelas paredes ou no som de passos leves sobre o carpete, ao redor de meu leito a qualquer hora do dia ou da noite e, como se para provar que sua presença se fortalecia cada vez mais, certa manhã encontrei, sobre a mesa de meu escritório, uma folha de papel onde se lia a palavra assassino escrita mais de uma centena de vezes, numa caligrafia límpida e elegante que reconheci como sendo a minha letra o que me vez acreditar que, por certo, as almas penadas contam com inúmeros artifícios para assombrar os vivos.
Minha alma adoeceu tomada pela lembrança daqueles olhos baços e do som vago que havia me acusado e por aquela presença que me oprimia de tal modo que eu já não podia dormir, assim como não podia comer ou beber enojado pelo aroma do sândalo que nada era capaz de expulsar. Já não podia mais encarar aqueles olhos obsessivos que me seguiam por onde quer que eu fosse e dos quais nem mesmo o láudano ou o absinto podiam me proteger.
As visões alucinantes e as vozes profanas me atormentavam assim como os movimentos que eu percebia. Tudo aquilo somado ao sempre presente aroma de sândalo, criaram em mim uma mescla de ansiedade e terror até que no décimo quarto dia após o falecimento de Olivia, após uma alta dose de ópio, eu enfim dormi um sono leve quando fui despertado pela pressão de lábios gélidos sobre meus lábios no exato momento em que as sombras do fim do dia invadiram meu quarto e tocaram meu leito.
Aquilo me foi tão pavoroso que decidi deixar o casarão imediatamente e para sempre, pois não suportaria passar sequer mais uma noite em companhia daquele espírito maligno que se apegara a mim como se fosse minha própria sombra e que insistia em me atormentar.
Levando comigo apenas as poucas joias que eu permitira a Olivia manter em nossa casa - um ou dois pares de brincos de pérolas, uma pequena corrente e um relicário de ouro que guardava minha imagem -, deixei o casarão sombrio e decadente sob uma forte tempestade. O caminho para fora de minha propriedade encontrava-se em péssimo estado de conservação de modo que nem mesmo as fortes ancas do garanhão foram capazes de me conduzir pela estrada enlameada.
Atolados antes mesmo de deixarmos o terreno que pertencia à minha família, o cocheiro, temendo minha reação violenta, sugeriu que deixássemos a viagem até a cidade para o dia seguinte e eu, tomado pelo ódio, arranquei de suas mãos o chicote e pus-me a castigar com violência enlouquecida o lombo do cavalo que espumava pela boca, tentando com isso força-lo a seguir em frente.
Exausto e sem qualquer sucesso, senti minhas pernas enfraquecerem e cai em meio à lama com a dignidade despedaçada e consciente de que teria que voltar para casa caminhando. Então, deixei tudo para trás e iniciei o caminho de volta chafurdando meus pés no barro vermelho e encharcado pela chuva que caia sem trégua. O caminho foi difícil e cansativo e quando eu estava há cerca de trezentos metros da casa, um forte clarão cortou o céu e iluminou o mundo e eu pude ver, de forma clara e indistinta, a forma de Olivia que do alto do torreão sul me observava.
Crendo que ela, com o poder que é concedido aos entes sobrenaturais, havia conjurado aquela tempestade tão fora de época para me impedir de partir, fui possuído por uma ira demoníaca e, tresloucado, corri em direção ao cemitério de minha família onde me lancei sobre a terra ainda fofa que cobria o túmulo de minha esposa e com as mãos escavei até encontrar a madeira de seu caixão.
Dos meus dedos em carne viva vertia sangue e a água vermelha escorria sobre a madeira branca enquanto eu lutava para abri-la e, quando enfim consegui erguer a tampa que mantinha o corpo de Olivia protegido e pude olhar para dentro de sua morada final, senti que minha visão ficava turva e que desfalecia.
Uma névoa pesada vinda dos charcos ao sul abraçou o mundo e um silêncio denso e opaco pairou sobre mim no momento em que descortinei o pano mortuário que cobria o corpo de Olívia. Senti que minha visão ficava turva e que desfalecia quando me deparei com seu rosto de donzela, lívido e úmido, emoldurado pelos cabelos que caiam em cachos volumosos e reluzentes ao seu redor.
Já não mais havia cor em suas faces e seus lábios que tomados pela avançada decomposição retorciam-se em um medonho esgar exibindo o sorriso sereno de dentes brancos e perfeitos como marfim, como se zombando de mim e de minha dor. Àquela visão, compreendi com total clareza que aquela que fora minha esposa, ainda que presa aos grilhões do além, não me daria paz enquanto lhe fosse possível manter-me ao seu lado.
Olivia havia recebido meu nome e o título que o acompanhava e, como em uma transação comercial qualquer, havia pagado devidamente por ele. Ela poderia ostentá-lo como desejara sua família, mas não se contentara com isso, ela queria mais. Em vida, talvez por acreditar que o dinheiro de sua família tinha lhe comprado o direito a mim, à minha liberdade e à minha afeição, havia desejado me aprisionar em uma existência para a qual eu não tinha qualquer aptidão e à qual eu sucumbira em razão da decadência financeira de minha família, o que sempre seria para mim motivo de vergonha e eterna humilhação.
Pareceu-me que aquele ainda era o desejo de Olívia que em sua morte havia, enfim, despertado para a vida e foi com um terror extremo que ouvi, sem que a boca tomada pela rigidez cadavérica manifestasse o mais insignificante movimento, sua voz proferir a palavra acusadora que me perseguia desde o dia de sua morte. Assassino!
Com minha dignidade derrotada e tendo como única testemunha a lua branca que rasgara as nuvens para contemplar minha desgraça, tomei em meus braços o corpo rígido de Olívia, cujo coração pareceu-me ainda pulsar e, com dificuldade, caminhei em direção ao casarão, pois estava decidido a não permitir que ela alcançasse seu vil intento.
A noite já ia avançada quando depositei o corpo no chão de meu escritório e sobre ele despejei todo absinto que encontrei em minha adega. Senti o cinismo vazio me consumir e o ódio me dominar e, dando ouvidos ao demônio que soprava suas palavras doces em meu ouvido, lancei sobre ela uma pequena centelha de fogo subtraída da lareira. Sentei-me em minha poltrona para observar com olhos inquietos o corpo de minha esposa morta unir-se ao seu espírito e ambos serem devorados pelo fogo. Acreditava que assim iria expurgar para sempre sua presença daquela casa e, sobretudo, da minha vida.
Enquanto sombras disformes dançavam ao meu redor numa ciranda demoníaca, o fogo consumiu a camisola branca de renda que cobria o corpo de Olivia e se espalhou apressado pelas tapeçarias antigas, pelos livros de capa de couro e pelos móveis de madeira até tocar o teto de ébano negro tornando-se em poucos minutos labaredas que consumiam tudo ao seu redor com a mesma voracidade com que eu havia consumido o ópio e o láudano em meus dias de loucura e medo.
Em algum momento, quando a casa já estava tomada pelo fogo, senti braços fortes me arrastarem para fora dali e me abandonarem no chão frio. Ouvi o tumulto de vozes que não reconheci e que gritavam com urgência tentando em vão salvar o casarão das chamas devoradoras.
Observei o fogo arder esticando seus dedos em direção ao céu e escondendo a lua atrás da fumaça densa e feia que subia em ondas assustadoras crepitando na noite sem estrelas. Os criados da casa estavam no gramado e olhavam atônitos à ruína daquela casa que vinham servindo há gerações. Nos rostos sombrios e escurecidos pela fuligem e pela preocupação, não havia tristeza e era possível perceber algo que se assemelhava à admiração pelo espetáculo das chamas contra o negror da noite.
O casarão de meus antepassados ardeu durante toda aquela madrugada longa e calma de inverno e quando o amanhecer cinzento se insinuou no horizonte, ouvi alguém dizer: “Está acabado”. Aquelas poucas palavras me despertaram do transe que havia me acometido e sobressaltado compreendi que o único bem que me restara ardera em fogo até ser reduzido a um monte de entulho fumegante. Nada mais me restava. Naquele instante de lucidez, desabei de joelhos na terra molhada e chorei até que, como um eco que gradualmente declina até se desfazer no ar, perdi completamente os sentidos.
Louco. É como me chamam agora os homens e eu, preso a essa cama, amordaçado, amarrado, privado de minha herança e de todos os aspectos de minha tão cara liberdade, ouço-os conversar sobre mim e sobre minha incapacidade mental como seu eu não estivesse presente.
Dizem eles que fui consumido pela loucura diante da dor da morte de Olívia, a quem acreditam que eu amava, afirmam em vozes sussurradas que naquela noite em que tentei expurgar sua presença de minha vida para sempre tinha eu procurado me juntar a ela numa malfadada tentativa de suicido.
Tolos! Nada sabem sobre as visões perturbadoras que me perseguem ou sobre os sons melancólicos que entoam em meus ouvidos torturando-me com a lembrança acusadora.
Não sentem o odor de sândalo que em mim penetrou de alguma forma para nunca mais me deixar e nenhum deles pode ver aquele sorriso doce e gentil que, desde o crepúsculo até as primeiras horas da manhã permanece ali imóvel, sempre no mesmo lugar, a me atormentar e a me acusar e a zombar dos grilhões que me atam a este quarto escuro e me prendem a essa vida débil.
Nota: esse conto foi revisado e repostado, pois é um dos meus contos preferidos. Realmente, adorei escrevê-lo e fiz inspirada em Dickens e Poe. Gosto muito do resultado.