A baía do afogado
“O horror, o horror.”
Joseph Conrad – O coração das trevas
Ainda não tínhamos avistado o mar, mas já era possível sentir nos lábios o sabor do sal trazido pelo vento e a maresia grudando em nossa pele. Apesar de muito cansados pela longa caminhada abrindo passagem em meio a mata fechada, carregando suprimentos, ferramentas e outros apetrechos que seriam necessários para nossa missão, a excitação começou a tomar conta de todos ao perceberem que estávamos chegando. Nenhuma daquelas pessoas conhecia o mar, já tinham nascido cativos nas fazendas do interior, de onde nunca teriam saído não fosse aquela situação que seria a grande e única experiência de suas vidas fora dos limites impostos pelas infinitas plantações de cana-de-açúcar.
Apenas Macobo, o homem mais alto e mais forte do que qualquer outro que já tínhamos visto, conhecia a imensidão azul. Quieto e soturno, tinha a pele e a alma marcadas por profundas cicatrizes e desde que havia chegado, há mais de vinte anos, nunca se ouviu uma palavra saindo de sua boca. Tinha feito a travessia ainda menino e aqueles que chegaram com ele contavam que o homem cuja força todos temiam, emudeceu quando viu a carnificina dos tubarões que seguiam a embarcação atraídos pelo alimento fácil e abundante. Quando viu seu irmão agonizante ser lançado ao mar ainda com vida, Macobo tentou pular pela amurada para se juntar a ele, mas foi impedido pelos tripulantes. Ele ainda era uma criança, porém seu corpo já insinuava o homem de força descomunal que viria a ser, era lucro certo que não poderia ser desperdiçado, então, para que Macobo não tentasse se lançar ao mar outra vez, amarram-no em um canto escuro e úmido sob o convés onde o menino permaneceu por todo o restante da viagem. Desde então, uma sombra intransponível de melancolia cobriu seus olhos e sua alma se escondeu em silêncio em algum lugar no fundo do seu ser.
Chegamos à costa ao amanhecer, quando as primeiras luzes do dia despontavam no horizonte num espetáculo resplandecente. Em poucos minutos, o sol reluzente de início de verão já ofuscava nossos olhos. Permiti que os homens entusiasmados pela novidade contemplassem a beleza do horizonte por algum tempo, afinal, logo começaria o trabalho pesado e sem descanso do nascer do sol ao anoitecer. Estávamos ali para construir um ancoradouro para que os navios que traficavam gente pudessem aportar. O comércio de homens e mulheres era lucrativo e seria ainda mais sem os tributos devidos à coroa, mas para isso os contrabandistas precisavam de um lugar seguro para desembarcar a carga.
Apesar da costa extensa, foi difícil encontrar um local adequado para aquela empreitada, onde as ondas fossem calmas, a água tivesse a profundidade certa e os navios pudessem aportar protegidos de olhos e ouvidos indiscretos, sobretudo daqueles que tinham o poder de exigir o pagamento de quantias exorbitantes para fazer vista grossa. Só depois de muita procura encontrei uma baía perfeita e agora que estávamos ali tínhamos poucos dias para nos preparar, a primeira carga chegaria em pouco tempo.
Foi interessante observar aqueles olhos cansados e tristes se extasiando com a beleza do amanhecer sobre a água cristalina e profundamente azul e aquilo me fez pensar que talvez eles não fossem menos humanos do que nós, como acreditávamos, afinal só o homem é capaz de reconhecer e apreciar o que é belo. Não demorou para que o mais ousado do grupo fosse até a água, molhasse o dedo e o levasse a boca, a fim de comprovar se aquela água era realmente salgada. Num ato teatral, voltou-se para os outros confirmando que aquilo que tinham ouvido falar era mesmo verdade, então todos correram até a água ainda um pouco receosos, mas em grande alvoroço, para tirar a prova por si mesmos.
Macobo não acompanhou os demais. Parecia hipnotizado enquanto olhava fixamente para a vastidão à sua frente, porém, diferente dos outros, não demonstrava ter sido tocado pela visão exuberante, seu olhar não demonstrava admiração, mas havia algo ali, algo que eu não pude decifrar, então me aproximei e toquei em seu braço, ele se assustou com meu toque e parecendo sair do transe que o dominava me olhou e eu pude ver um estranho brilho se acender em seus olhos escuros e sem fundo.
Por vários dias os homens já acostumados ao trabalho pesado da fazenda seguiram à risca nossas ordens. Companheiros desde o nascimento, alguns filhos da mesma mãe, sabiam trabalhar bem em equipe, eram um grupo coeso e incansável que já tinha construído muitas outras coisas sob minhas ordens e, apesar de toda dificuldade que aquela construção à beira-mar apresentava, não demorou para que a estrutura de madeira começasse a tomar a forma de um ancoradouro.
Ao final de cada dia, depois que o sol se punha, os homens se sentavam na areia da praia para comer a refeição da noite e enquanto conversavam quase não desviavam os olhos do oceano, como se quisessem aproveitar cada instante para guardar na memória a visão daquele lugar que possivelmente nunca mais voltariam a ver depois que voltassem para casa. Macobo também se sentava com os companheiros e ali ficava por muito tempo mesmo após todos irem se deitar, passava boa parte da madrugada em seu silêncio sentado na areia e olhando para o horizonte infinito como se esperando que algo viesse das águas para buscá-lo.
Quando estávamos finalizando os últimos detalhes do ancoradouro, os homens demonstraram orgulho pelo que tinham feito. Aquela era a obra de suas mãos e braços fortes, de seu trabalho incansável, algo que só existia graças a cada um deles, e isso os deixava quase felizes. Naquele dia, quando a hora mais quente chegou e os homens aguardavam as ordens sentados sob a sombra dos coqueiros que margeavam a praia, alguém avistou um ponto escuro manchando a linha onde céu e água se encontravam e, apesar da distância, soubemos que aquele era o navio que estávamos aguardando.
Por um longo tempo o ponto escuro pareceu não se mover no horizonte, mas quando a tarde chegou ao fim a embarcação já tinha se aproximado o suficiente para que fosse possível distinguir até mesmo o contorno das pessoas que nos olhavam da amurada e acenavam para nós. Crendo que faltava pouco para o navio aportar, ficamos a observar a embarcação que após algum tempo estancou há alguns quilómetros da costa.
Assistimos à tripulação ao longe lançando dezenas de fardos ao mar enquanto cada um de nós, sem saber o que aquilo significava, arriscava seu palpite. Somente quando a espuma que chegavam à praia mudou de cor é que, mesmo sem poder acreditar no que nossos olhos viam, começamos a compreender o que estava acontecendo. Os fardos lançados ao mar eram aqueles que não tinham sobrevivido à travessia ou que não teriam forças para desembarcar e a tinta vermelha que tingia a espuma das ondas era o sangue dos corpos estraçalhados pelos tubarões. Não demorou para que a brisa trouxesse o cheiro agridoce de carne humana que empesteou tudo. Ficamos todos ali, hipnotizados por aquele espetáculo horrendo, até que a maré começou a trazer até nós não só o sangue das vidas perdidas, mas também os restos dos corpos destroçados. Naquele instante, mesmo os mais fortes não tiveram força suficiente para segurar a última refeição no estomago.
Foi só então que Macobo compreendeu o que aquilo tudo significava e que sua força e seu trabalho tinham ajudado a construir uma porta de entrada para tantos outros como ele. A compreensão daquilo despertou os fantasmas do passado que habitavam seu interior e que há muitos anos percorriam os corredores sombrios de sua mente doente. Tomado por um desespero inconcebível, Macobo se lançou ao chão e prostrado com o rosto na areia chorou alto gritando palavras que estavam sufocadas em sua garganta há anos, palavras que não entendíamos, talvez porque fossem ditas em sua língua nativa ou talvez porque expressavam uma dor que nunca tínhamos sentido.
De repente, as águas calmas da baía a nossa frente começaram a se agitar e o horizonte foi invadido por nuvens completamente escuras, o céu se encobriu por inteiro e já não havia mais sol para iluminar do dia. Dezenas de raios riscaram o firmamento e o som dos trovões ecoou anunciando o lamento do temporal que se formava em alto-mar e que rumava para a costa em uma velocidade surpreendente. As ondas atingiram uma altura apavorante e o navio que agora zarpava em busca de proteção na baía foi esmagado como um brinquedo. Então uma forte ventania nos envolveu fazendo a areia fina rodopiar em redemoinhos a nossa volta. Tive a certeza de que a areia que entrava por minhas narinas e cegava meus olhos ia me sufocar e, diante do grande perigo que nos ameaçava, ordenei aos homens que buscassem proteção.
O mundo estava se acabando, mas Macobo continuava ajoelhado na areia como um adorador do apocalipse que havia nascido em alto-mar e agora avançava em nossa direção com a promessa de destruir tudo que existia. Apesar do medo que senti, não poderia deixar um dos meus homens ali para morrer, então corri até Macobo e tentei desperta-lo do estupor que o dominava, porém, apesar da violência com que me lancei sobre ele tentando fazer com que viesse comigo, Macobo não se mexeu. Percebendo que nada seria capaz de tira-lo dali, abandonei-o à própria sorte e corri para salvar minha pele. Ainda olhei uma última vez para traz a tempo de ver Macobo se levantar e caminhar em direção ao oceano onde a fúria do temporal e a escuridão o engoliram.
Somente muitas horas depois a tempestade acalmou e o sol voltou a brilhar no céu. O ancoradouro tinha sido destruído pela força da água e na praia os destroços do navio de gente dividia espaço com os restos dos corpos que chegavam trazidos pelas ondas. Ordenei que procurassem por Macobo, não seria difícil distingui-lo dos demais. Os homens passaram o dia ajuntando o que havia sobrado dos tripulantes e da carga humana para serem queimados sem encontrar qualquer sinal de Macobo. Quando terminamos de queimar tudo que pudesse denunciar o que tinha acontecido ali, rumamos de volta para casa, cada um levando consigo o peso do que tinha presenciado, mas era a ausência de Macobo que nos pesava como a falta de um membro de nosso próprio corpo.
Voltamos para casa e, por mais que eu tentasse, não conseguia me esquecer do horror dos corpos lançados ao mar, das águas tingidas de vermelho, do cheiro agridoce e dos pedaços de gente flutuando nas águas até atolarem na areia. A noite, acordava assustado, ouvindo o lamento de Macobo e não conseguia mais dormir. Aquelas lembranças me fizeram questionar tudo que acontecia a minha volta e minhas constantes tentativas de dissuadir meu pai de continuar comprando pessoas para serem escravizadas acabou por tornar nossa convivência impossível, então, deixei a fazenda e me mudei para capital onde, em pouco tempo, me tornei um abolicionista ferrenho.
Soube mais tarde que todas as tentativas de reconstruir o ancoradouro na Baía do Afogado, como ficou conhecido o lugar depois daquela tragédia, foram frustradas, pois mesmo a mais simples obra da engenharia humana acabava por ser arrastada pela violência das águas e pela força do vento.
Agora que muitos anos se passaram e que meus dias se aproximam do fim, fui tomado por um grande desejo de voltar ao cenário daqueles acontecimentos que mudaram minha vida para sempre. Olho para as águas que um dia foram calmas e serenas e vejo uma praia castigadas por ondas gigantes e tão fortes quanto eram os braços de Macobo enquanto ouço um dos moradores locais me contar que quando as tempestades que nascem no oceano se aproximam da costa, é possível ouvir no vento o lamento de um homem que chora sua dor e que os poucos que tiveram coragem de olhar para o mar nessas horas juram ter visto o vulto de um gigante saindo das águas e caminhando em direção à praia, destruindo com sua força tudo que encontra em seu caminho enquanto carrega consigo a fúria da tempestade.
Tema: Herança africana