HORAS DE PAVOR.

A sexta feira era sagrada para Eduardo. Na noite anterior a tralha estava toda pronta. A lista na mão do pescador experiente, conferindo item por item. A caixa de anzóis, os molinetes, a velha companheira varinha de bambu, as iscas, o mapa, a lanterna com pilhas novas, o chapéu camuflado, os óculos de sol, protetor solar, repelente, raquete mata mosquito, a faca, o canivete suíço multifuncional, estepe do carro, kit de primeiros socorros, bateria e carregador de celular, o cooler de cerveja, a cachaça branquinha, saco de dormir, caixa de isopor pra guardar os peixes, a barraca de lona, a garrafa térmica, a camisa do Empório do Pescador, alicate, fogãozinho a gás, café solúvel, a bota impermeável e comida enlatada suficiente pra passar um mês, embora ele fosse pescar só no final de semana. A mulher observando o marido arrumar tudo. Um entra e sai no carro, na varanda, na casa. Arruma isso e aquilo. O homem falando sozinho. -"Num quer ir junto comigo, amor? Dá tempo, Salete." A mulher cruzou os braços. -"Já fui uma vez, de tanto você insistir. Não gostei. Já estou ficando louca só de ver você arrumar isso." Eduardo não deu ouvidos. -"Devia ter chamado o Juca." Uma hora depois, a caminhonete saiu, enfim. O homem buzinou e ganhou a rua. O som do carro no volume máximo. -"Toca, Gino e Geno. Rio Grande, lá vou eu." Calibragem dos pneus e o tanque cheio no posto de gasolina da saída da cidade. A rodovia. O carro voando baixo. Quinhentos quilômetros pela frente, até a divisa de São Paulo e Minas. Almoço na churrascaria de beira de estrada. O rio, finalmente. Desde criança ele vinha ao mesmo lugar com seu finado pai. Uma clareira, com acesso por uma estradinha de terra, um grande barranco no braço do rio, local cheio de peixes grandes. Já tinha levado muitos parentes e amigos até aquele local. Ele desceu do carro. -"Eita, paraíso. Coisa linda." Resolveu olhar o mapa. -"Dessa vez vou pescar mais pra cima. É isso." Ele ajeitou o chapéu e entrou no carro. Andou por uns três quilômetros acima de seu local preferido. A isca na água. A paciência característica do bom pescador. Uma fisgada atrás da outra, após anoitecer. Ele se empolgou. As horas passando. O café forte já não diminuia o sono. O pescador se recolheu as onze. A barraca. O saco de dormir. A chuva fina lá fora. O despertador do celular tocou as quatro horas da madruga. -"Domingo, vamos lá." Ele saiu pra fora, se espreguiçando. -"Bora, aproveitar. Peixes, eu vou abalar geral." O mato fechado. Um terreno desconhecido. Ele se afastou cem metros da barraca. A escuridão quebrada pela luz da lanterna de LED. Eduardo pisou em um galho. Ele gritou e caiu num poço abandonado. Uma queda de cinco metros. Desacordado, Eduardo não viu o dia nascer. -"Que houve? Que buraco é esse?" Procurou pelo celular. -"Cacilda, o telefone tá na barraca." Ele ouviu passos. -"Meu Deus. Tem que ser alguém, outro pescador." O rosnado forte acabou com suas esperanças. -"Onça." Ele se encolheu. Percebeu que tinha quebrado a perna. Por sorte, alguns galhos cobriam o poço e a onça não podia vê-lo. Uma chuva forte. Os raios e trovões. Na manhã da segunda feira Salete se preocupou e ligou para os amigos do esposo. Ninguém o tinha visto nem falado com ele. A família preocupada. O telefone de Eduardo não atendia, nenhuma resposta às mensagens de Salete. Na terça feira de manhã, a mulher foi a delegacia. Os primos de Eduardo foram ao local da pescaria. Nenhum sinal dele. -"Não há sinal de fogueira, da barraca, como sempre. Eduardo não esteve aqui." Disse Olegário, preocupado. A polícia iniciou as buscas. Os pescadores interrogados. Nenhum sinal de Eduardo. O barco da polícia, devagar, vigiando as margens do rio. -"Se ele afogou-se, o corpo já era pra ter boiado." Salete não gostou da frase de Olegário. -"Ele está vivo. Deve ter ido pra outro ponto de pesca." A polícia usou drones. A caminhonete foi localizada. A barraca de Eduardo. O policial entrou e achou o celular dele. -"É de seu esposo? Achamos o local de pesca." Os policiais, Olegário, Dirceu e Salete percorreram a área em volta da barraca. Olegário foi a beira do rio. -"Não há sinal. Pra mim a onça comeu o primo." Salete se benzeu. Os policiais passaram rente ao poço. Eduardo escutou os gritos deles, o chamando mas ele não tinha forças pra responder. Estava muito fraco e abatido. A noite chegando. Os policiais encerraram as buscas. Olegário voltaria com a caminhonete de Eduardo. Salete desarmou a barraca. -"Está tudo aqui, as coisas dele. Me ajuda, minha Nossa Senhora Aparecida." Salete resolveu ficar na vila de pescadores. -"Sinto que o Eduardo está vivo." Ela conversava com cada um, mostrava a foto do esposo. -"Não se afogou, não foi roubado pois o carro e as coisas dele estavam lá, não há sinal de sangue nem de onça, só há uma hipótese." Salete olhou séria para o velho pescador Benjamin. -"Ele caiu no poço do Malaquias. Eu ajudei o pobre Malaquias abrir aquele poço mas logo secou." Pela localização que a senhora forneceu, de onde tava o carro, é bem possível que ele caiu no poço." Salete ganhou ânimo. -"Nós gritamos por ele, andamos por toda área." Benjamin e alguns pescadores seguiu a esposa de Eduardo. -"Deve estar fraco demais. Não conseguiu responder nem gritar por socorro." Horas depois, Salete e Benjamin estavam a poucos metros do poço. -"Aqui tem onça, cuidado." Os homens tiraram os galhos da entrada do poço. -"Eduardo? Você está aí?" Benjamin acendeu a lanterna. -"Está aqui, tem alguém lá embaixo." Salete ligou para os bombeiros. A polícia e a imprensa vieram. O resgate era questão de tempo. Os bombeiros desceram até Eduardo e o amarraram numa corda. Salete abraçou o esposo enlameado. -"Graças a Deus." Eduardo foi levado ao hospital mais próximo, onde ficou por três dias. -"Salete, quase virei comida de onça. Foram horas de medo e pavor." FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 03/02/2022
Reeditado em 04/02/2022
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