O Gato

Ontem me ocorreu uma cena que desejaria abolir de minha mente, mas não consigo-- algo que parecia ter saído de um dos contos de Edgar Allan Poe. Antes de falar sobre isso, pularei algumas partes do meu dia. Só há uma parte interessante e que será contada agora. Se eu tivesse de contar os pormenores, teria que começar uma série de descrições que pretendo omitir por brevidade. Não me venham com essa ladainha de espaço e tempo.

 

Tudo começa pela manhã. Não lembro exatamente das horas, mas eu estava sentado na garagem, numa cadeira velha, cheia de remendas; um copo de café na mão, dando alguns goles pausados. Estava pensando no dia anterior. Na casa de alguns amigos — por inocência ou excitação — acabei contando uma piada clássica do politicamente incorreto. Fui

surpreendido por um silêncio constrangedor, o ar ficou mais pesado e não sabia o que dizer.

Em casa, fazia várias conjunturas sobre esse ocorrido, quando um som interrompeu todo

aquele pensamento, até me fez esquecer o constrangimento. Era um “miado”. Ao olhar

para a direita, através da fresta do portão velho, avistei a figura de um gato. Olhos

arregalados, pêlo cinza com algumas listras pretas. Ele encarava-me e miava. Achei que fosse fome e estava ali, de alguma forma, na sua linguagem, pedindo comida. Desse modo, mesmo sem ração para gatos, busquei na geladeira algo que pudesse saciá-lo, alguma coisa com carne. Fiz uma mistura em um prato pequeno, levei para o gato—que ainda estava la, mas, desta vez, em silêncio— coloquei ao seu lado. O gato nada fez. A comida estava perto dele, mas sua concentração se voltava para mim. “Talvez seja sede”, pensei. Novamente entrei em busca de água. Ao retornar o gato havia desaparecido, deixando o prato intocável.

Para mim, todo esse ocorrido não passou de algo comum. Portanto, pularei toda tarde desse dia, não há necessidade de mencionar minhas idas à lotérica, mercado etc. Vamos ao ponto.

Nesse mesmo dia, agora noite, depois de toda exaustão — as quais omiti por brevidade — preparava-me para dormir. Com todas as luzes apagadas, ouvindo os roncos de minha mãe (não mencionei moradores por querer ser breve também), escuto algo muito perto, não era ronco. Parecia o ronronar. “Um gato”, sussurrei. Não podia ser possível, minha casa é um simples cômodo, um barraco, apenas com uma porta de acesso para fora, sem muitas brechas ou algo de que pudesse esquecer aberto, possibilitando a passagem de algum animal. “Sim, algo de minha cabeça”, tentava acreditar. Mais uma vez escuto aquele ronronar, agora mais de perto. Como um lampejo, duas esferas brilhantes começam a flutuar ao lado de minha cama, em cima do banco que uso para colocar livros. Era um par de olhos de um gato. Assustado, tateei vagarosamente ate encontrar meu celular. Liguei a lanterna e vi ali o mesmo gato de mais cedo. Continuava a me encarar como fazia antes. “Mas como ele entrou ali?”, indagava a mim mesmo. De repente, ele começou a miar e, algo que abalou minhas faculdades mentais, uma mão pálida, desnutrida, começou a acariciar o animal. Não tive coragem de iluminar o que estava ali, apenas vi uma silhueta. A coisa, que afogava a mão inumana nos pelos do felino, abriu os olhos num suspiro. Com o espanto, joguei meu celular longe e quando o apanhei de volta, o gato e a coisa misteriosa não estavam mais lá.

Desde então meus sonos nunca foram os mesmos, agora são cheios de interrupções e o sentimento de nunca está sozinho assombravam-me.