*Adriana Ribeiro

 

     Em cidades do interior é muito comum as pessoas especularem sobre estórias e causos de assombração. Mas a história que eu vou contar, dizem que aconteceu de verdade e, até hoje, há quem diga que conheceu os envolvidos no malfadado casamento que culminou com a morte da noiva e sua eterna peregrinação pela cidade a cada sete anos a procura do noivo desaparecido. Suas aparições assustam alguns moradores mas servem de assunto para outros que gostam de espalhar boatos. E foi assim que eu fiquei sabendo deste causo.

 

     Vera era uma moça da cidade do interior e namorava com Otávio há 7 anos.

Por volta do terceiro ano de relacionamento ficaram noivos e desde então começaram a se preparar para o enlace matrimonial. Compraram juntos um chão de casa num loteamento novo que o povo apelidou de baixa do jenipapeiro, pois ali havia um afundamento no terreno que acumulava muita água em épocas de chuvas intensas e e tinha vários pés de jenipapo.

 

     Ali começara a construir a casa dos sonhos de ambos. Ele era estudante do Curso Técnico em Eletrônica e costumava ajudar o pai na oficina de consertos de aparelhos domésticos, mas também prestava serviços para as casas comerciais e até mesmo para a prefeitura local. Muito esforçado, todo o dinheiro que pegava empregava na construção da casa nova. Ela, professora recém-contratada na cidade onde nascera e morava, também pouco ou nada gastava que não fosse com a obra.

 

     Quando a casa estava quase pronta, decidiram marcar a data do casamento para o mês de aniversário da moça que seria em janeiro do ano de 1972, quando a mesma completaria 21 anos. Naquele final de ano Otávio concluiu o Curso técnico que fazia e pretendia fazer a Faculdade de Engenharia Eletroeletrônica pela Universidade Federal de Sergipe. Começando a estudar com muito afinco para passar no vestibular. Mas em dezembro optou por participar de uma seleção por correspondência para ser Técnico em eletroeletrônica de uma empresa multinacional, cuja sede ficava fora do Estado. Foi selecionado e resolveu aceitar a vaga de trabalho com a justificativa de se inserir no mercado de trabalho e assim poder dar condições melhores aos pais e aos futuros filhos após o casamento.

 

     Vera não pôde acompanhar o noivo sob pena de perder o emprego conquistado com muito esforço e indicação de parentes influentes. Decidiu ficar, pois não podia trocar o certo pelo duvidoso. Não estavam em tempos de se jogar fora um emprego público efetivo para procurar outro na cidade grande onde as vagas para a sua área de formação eram muito disputadas no setor privado e quase inexistentes no setor público posto que estavam na era das seleções de currículos, e o dela nem bem se iniciara. Otávio então foi sozinho para a Paraíba. O casamento com Vera, marcado para o mês de janeiro, foi adiado para o ano seguinte.

 

     Naquele mesmo ano realizou seu segundo sonho de ingressar na universidade de Engenharia eletroeletrônica na Capital João Pessoa. Queria se especializar na área de energia solar, que estava no auge da implantação devido ao custo-benefício a longo prazo para os grandes empreendimentos. Desse modo, garantiria a estabilidade profissional na Sede da empresa multinacional que ficava na Paraíba. Isso seria a coroação dos seus planos. O sonho de atuar na sua área de formação juntamente com o salário e as demais condições de contratação que teria somavam os objetivos profissionais que traçara para si naquele ano longe da noiva, de quem antes não se desgrudava por um dia inteiro sequer, agora se lembrava poucas vezes durante o dia corrido e a noite de estudos aplicados.

 

     Mas no interior sergipano Vera sofria de saudades. Começara a namorar Otávio muito cedo. Ela com 15 anos recém completados, pois o noivo foi seu par no baile de debutantes, na época com 23 anos. Um jovem estudioso. Filho de pais humildes, porém esforçados, a mãe dona de casa e o pai um técnico em eletrônica que prestava serviços de consertar aparelhos diversos na cidade e povoações vizinhas. Foi com ele que Otávio aprendera a gostar de consertar coisas e crescera com o intuito de se formar na área para montar com o pai o sonho de ter sua própria loja de suprimentos eletrônicos e uma prestadora de serviços oficializada.

 

     Mas os sonhos se transformam. O destino muda os caminhos e Otávio refez os planos.

     Deixara a cidadezinha onde nascera, os pais e a futura esposa para tentar a vida de outro jeito. Queria ser um Engenheiro eletroeletrônico de carreira. E a oportunidade chegara. Não poderia perdê-la.

 

     A noiva, ainda que muito chorosa, não se colocara como impecílio. Sabia que coisa era sonhar. Terceira filha de um casal de lavradores duma povoação próxima da cidade, passava a semana na casa da avó materna para estudar. E fora ali mesmo que passara a morar, quando ficara noiva de Otávio aos 18 anos. Concluíra o ensino básico e na ocasião precisava estudar o curso técnico em Magistério na cidade de Estância. Pois dali viajaria no mesmo ônibus que o futuro marido viajava para estudar Eletrotécnica.

 

     Assim os dois se apegavam cada vez mais, dia após dia. Ela era moça decente. E ele muito respeitoso. Mas havia quem apostasse que já eram mais que noivos. Porém ninguém provava.

     Começaram a construir a casa onde viriam a morar quando casassem e como obra demora os anos foram se passando e cada vez eles desejavam uma casa melhor e o projeto ia se estendendo de modo que quando terminaram de construir a casa começaram a mobiliá-la.

     Quando a casa estava quase pronta, inclusive já com grande parte dos móveis, surgiu essa oportunidade de trabalho para Otávio que viria mudar completamente os planos e o destino de ambos. Tantos sonhos planejaram e acharam que tudo aconteceriam como os haviam concebido. O casamento aconteceria em janeiro, Vera se mudaria para a casa nova e Otávio, após a lua de mel, voltaria para a Paraíba, vindo mensalmente porque a empresa garantia um final de semana prolongado para que ele pudesse visitar a família em Sergipe.

     

     Mas as coisas mudaram.

 

     Na empresa onde o rapaz atuava não haviam só homens trabalhando e pela primeira vez ele passou a ter contato direto com moças que não conhecia e não sabiam da sua história com a Vera. Morando sozinho em cidade desconhecida, começou a estabelecer vínculos de amizade perigosas para seu futuro planejado e foi assim que, aos poucos, foi se afastando da noiva.

     No início trimestralmente ele vinha visitá-la. Chegava saudoso e com receio de havê-la perdido para outro mais presente, porém, conforme os meses iam passando, começou a ficar com olhar ausente, o pensamento longe e o semblante carregado. Vera questionava, mas ele sempre respondia que era preocupação com a obra, ocupação com trabalho e com os estudos, posto que ainda era novato e estava com dificuldade para se adaptar. No início Vera acreditava, mas os meses foram passando, o casamento se aproximando e cada vez mais Otávio parecia ausente. Começou a falhar as visitas ao Estado de Sergipe. Havia Sempre uma desculpa que o impedia de viajar.

 

     Mas na cidade do interior os preparativos para o casamento prosseguiam e assim, no fim do dezembro Otávio veio passar as festas natalinas com a família e Vera, mas nos dias que ele passou em sua companhia ela o percebeu ainda mais distante e comentou com a sua avó que achava noivo muito quieto, como se estivesse preocupado, e quisesse lhe dizer alguma coisa mas que não tinha como ou não podia temendo magoá-la. Mas a avó só dizia que era coisa da sua cabeça, que ela estava com ciúmes por ele estar trabalhando fora e vindo cada vez menos, mas era assim mesmo. Que ela devia se acalmar pois ia dar tudo certo. Mas Vera sentia que algo não estava bem.

 

     Naquela semana os presentes começaram a chegar junto com os avisos dos convidados que viriam se hospedar na cidade em casas de parentes e amigos próximos. Assim, a cabeça de Vera se ocupou e ela não mais pensou na fisionomia triste e distante do noivo. Conversaram por telefone algumas vezes de maneira rápida e objetiva. Mas mesmo de tão longe a moça sentia que algo não estava bem com o rapaz.

     

     O dia do casamento chegou. Tudo pronto para a festa, salão arrumado, Igreja decorada, a noiva tendo seu dia de preparação. Todo mundo sorrindo alegre. Todas as comidas prontas, banda contratada pelos padrinhos já instalada no espaço de recepção. A cidade inteira estava em festa. Era um casamento muito guardado, a professorinha com o filho do único consertador de TV da cidade.

     O Senhor Jaime era muito querido. Um homem simpático que sabia atender seus clientes com muita cortesia, de modo que o seu estabelecimento estava sempre com alguém e a história do seu filho tornando-se um grande Engenheiro e trabalhando numa multinacional era motivo de muito orgulho para a cidade.

 

     A noiva preparava-se mas o noivo não chegava. Porém, acreditando que ele não faltaria ao compromisso, pois sua avó garantia que ele nunca faria isso, Vera foi para a Igreja. Embora tivesse o pressentimento de que algo estava para acontecer e que seu noivo não viria. Já na Igreja, como Otávio estivessem demorando muito, levaram a moça para a Sacristia, mas ali fazia muito calor, e não se importando em ser vista, Vera pediu que a levassem para a lateral do altar, onde ficava o altar de Nossa Senhora vestida de noiva, a famosa estátua de Nossa Senhora da Pureza. O semblante da Santa como quem olhava para Vera com uma feição de piedade e amor com que olhava para todos os fiéis. Mas aquele olhar deve tê-la impressionando pois a moça pendeu a cabeça e começou a chorar baixinho. Juntou as mãos com o buquê de flores de laranjeira nativa e parecia tentar rezar. Mas enquanto rezava caíam grossas lágrimas dos seus olhos e os ombros balançavam. As mãos crispadas e muito pálidas denunciavam o seu desespero mudo.

     

     Chegou o horário marcado para cerimônia às 18:00 horas e o noivo não havia chegado. O padre chamou os organizadores da festa e perguntou se ainda haveria casamento. As pessoas começaram a se alvoroçar e como se tudo precisasse dar errado naquele dia, o tempo fechou e nuvens carregadas de chuva chegaram rapidamente à cidade e desabou um aguaceiro nunca visto com tal intensidade. Mais um motivo para as pessoas aguardarem na igreja. E assim as horas passavam... Com a chuva caindo torrencialmente não dava para ninguém ir embora para as suas casas.

 

     As pessoas tinham ido para a igreja desprevenidas pois ninguém se preocupava em carregar guarda-chuva com o tempo tão bom. Agora, com suas roupas de festas, ninguém queria sair para se molhar. E logo a conversação se instalou. Começaram a especular que o rio deveria estar enchendo e a ponte provavelmente já estava intransitável. Ouvindo aquelas conversas várias coisas se passaram na cabeça de Vera e dos convidados. Alguns começaram a pensar que o noivo talvez tivesse impossibilitado de chegar até a cidade por causa da enchente e assim o tempo ia passando...

 

     A chuva caindo, a cerimônia cancelada, a festa sem poder ser realizada pois a energia da cidade acabara e as velas da igreja completavam o cenário lúgubre daquela noite catastrófica. Foi assim que o povo dormiu sentado nos bancos da igreja. Alguns mais afoitos decidiram voltar para casa mesmo sabendo que chegariam encharcados. A noiva ficou naquele altar da igreja por um bom tempo ainda, mas de repente saiu em disparada e não deu tempo de ninguém segurá-la. Já na porta da igreja deu uma olhada para a Santa e depois para a sua avó, que continuava dormindo no banco ao lado de onde ela estivera sentada. Depois virou-se e saiu rumo à tempestade.

 

     Ninguém sabia ou mesmo desconfiava para onde ia aquela moça vestida de noiva. Alguns homens que a viram sair correndo foram à sua procura mas logo desistiram e voltaram dizendo que não se enxergava um palmo à frente do nariz por causa da chuva e da escuridão.

 

Vera sumiu!

 

     Vários dias se passaram sem que ninguém soubesse do seu paradeiro. Algumas pessoas disseram que a viram correndo pela cidade em direção à casa nova onde o casal moraria e para onde os pertences de ambos haviam sido levados alguns dias antes da cerimônia da igreja. Outros disseram que ouviram gritos de socorro naquela noite e ainda uns poucos afirmam ter ouvido a moça chamando alto pelo nome:

__ Otávioôôô !!!

 

     Mas a casa nova ficava numa parte da cidade atrás de uma baixada que costumava inundar em época de grandes chuvas. Era uma região circundada por um punhado de jenipapeiros em cujo centro ficava um areal juntado pelas águas das chuvas. A profundidade do terreno era imperceptível para os leigos em topografia, mas havia chovido forte e durante muito tempo, de modo que a baixada já estava cheia e para chegar até a casa seria preciso contornar os jenipapeiros ou atravessar a nado. Os dias ainda eram chuvosos e como nenhum corpo havia boiado ali naquela lagoa temporária muitos não acreditavam que a moça estivesse ali. Tampouco estava trancada em casa pois já haviam entrado ali à sua procura e não encontraram sinal de lama o que significava que ela não entrara.

 

     Como tinha se passado quase uma semana o noivo já havia dado notícias.

     Com as fortes chuvas que se iniciaram na madrugada do dia do casamento em João Pessoa houveram várias quedas de barreiras nas estradas da BR101. Otávio ficará preso no trânsito ainda no estado da Paraíba. Havia acontecido um acidente na via expressa e ele não pôde chegar ao aeroporto pois o trânsito fora fechado. Perdera o avião daquela manhã para Aracaju. Ele havia decidido não ir dirigindo e assim devido às fortes chuvas no nordeste também não conseguia se comunicar por telefone desde o dia anterior para avisar da mudança de planos. Quando chegou na casa dos pais, dois dias depois da data do casamento, ficara sabendo que a noiva estava desaparecida.

 

     Não teve mais sossego. Dia e noite procurando a moça sem saber onde ela estava. Várias possibilidades passavam na sua cabeça mas nenhuma se confirmava. Até que no sétimo dia de desaparecimento ele foi até a casa nova e no alto do declive de onde se avistava toda a baixada já com as águas rasas, Otávio avistou um corpo bem no centro do areal, apenas a alguns metros de distância da frente da casa de ambos.

Era o corpo da noiva.

     

     Vera saíra da igreja com os nervos abalados e pelo visto não parara para pensar antes de tentar atravessar pela lagoa. Não imaginara que a fundura ou a força da enxurrada a impediria de caminhar e sem pensar que fosse perigoso, ou desejando mesmo acabar com o sofrimento que sentia - como alguns deduziram e nunca foi possível saber ao certo se foi verdade - lançara-se nas águas para chegar em casa mais rápido, mas no meio do caminho onde a baixada era mais íngreme, deve ter se desequilibrado e sido arrastada para o centro do terreno onde fora encontrada.

 

     Quando a notícia espalhou-se a cidade entrou em comoção. O povo gritava e chorava em desespero. Algumas mulheres ao ver a cena caíram de joelhos a rezar fervorosamente e chegaram até a espalhar a notícia de que uma santa fora encontrada na baixa do jenipapeiro. 

     Mas Otávio reconheceu o corpo da noiva que incrivelmente estava intacto e com as vestes compostas. Dizem que o corpo foi achado com as mãos juntas como se rezasse. E algumas pessoas juram que o vestido branco estava alvo como no dia que a noiva vestira. Apenas um detalhe explicava o afogamento: o pé direito da moça estava preso entre alguns galhos que provavelmente, com as fortes chuvas e rajadas de ventos, foram arrancados dos jenipapeiros e arrastados pela enxurrada até ali no meio mais fundo.

 

     Pelo aspecto sereno do seu rosto, ninguém sabia se realmente Vera gritou ou se debateu pedindo ajuda, mas naquela madrugada ninguém saiu de casa e nem pôde ouvi-la devido à chuva forte que batia nos telhados fazendo muito barulho e impedindo que qualquer som chegasse até alguém. Mesmo porque aquela área da cidade não era muito habitada ainda.

Naquele momento descobriu-se a verdade, Vera afogara-se na lagoa do Jenipapeiro. Dias e dias procuraram por ela e ninguém sabia aonde ela fora pois quando saíra da igreja não dissera nada a ninguém. Ninguém podia imaginar que era ali que seu corpo estava submerso nas águas lamacentas.

 

     O velório e o cortejo fúnebre foram realizados com muita tristeza naquele mesmo dia ao cair da tarde. Mas à noite há quem jure de mãos abertas que Vera voltou para o lago que se formou ali na baixada e nunca mais secou. Virou alma penada. Uma assombração.

A prefeitura da cidade em respeito às famílias resolveu preservar a lagoa e construiu um parque ao redor dela, onde as pessoas costumam se sentar para tomar fresca embaixo dos jenipapeiros.

 

     Mas dizem que de 7 em 7 anos a noiva sai das águas para reivindicar o seu direito de casar-se. Vaga pela cidade até de madrugada chamando pelo noivo e só depois que encontra algum desavisado, volta com ele para a lagoa e o carrega para casarem-se na outra vida.

 

     Essa lenda se propaga e assusta os moradores da baixada do Jenipapeiro até os dias atuais. Há quem duvide e quem aposte que é verdade...

 

     Ah! Querem saber sobre o noivo?

     Dizem que alguns dias após o velório ele voltou para a Paraíba. Com o tempo vendeu a casa e levou os pais para João Pessoa, se casando por lá. Desde então, nada mais se sabe dele.

 

Adreiribeiro/@adri.poesias

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 31/01/2022
Reeditado em 01/02/2022
Código do texto: T7441994
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