"Diabólico"
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[O Caderno Preto do Britto]
Conto: "Diabólico"
O menino com cabelos escorridos no rosto, estava sentado em frente a casa abandonada; naquela praça de bancos com nomes e nomes de gente que pagou para ter nomes e nomes… cravados, imortalizados. Que eram camas pra mendigos dormirem. Sua função era importante… Seus nomes não eram. Priscila e Vicente se encontraram pra namorar e sentaram num banco. Encararam o menino… já impacientes; “Tanto lugar pra ficar… Por quê logo aqui na frente?! Menino babaca!!”, ela disse. Vicente então se tomou duma falsa valentia, fundamentada num suposto excesso de zelo que no fundo, sabia que não era pra tanto. Era apenas virgindade – de um e do outro… – Uma espécie de “data limite” para riscar uma pendência. Vontade de que “aquilo” se vá, e outras fases apareceram. “EI, IDIOTA! Ô…ESQUISITÃO!! NÃO TEM NADA MELHOR PRA FAZER NÃO? EI!!”. Priscila o segurava pelo braço mandando-o parar de gritar, com voz quase inaudível. Ela não queria que ele parasse… Ela estava AMANDO a cena. Aquilo era mais preliminar do que qualquer coisa que ele pudesse fazer com beijos e amassos. O menino soltou um grunhido, mas não levantou e nem levantou a cabeça, que encarava o chão; Cabelos completamente molhados de suor, escorridos e colados na face e nos ombros. Vicente gritou outras vezes e Priscila usava uma voz complacente pedindo pra que ele parasse… Ele se sentia cada vez mais valente e então se levantou. Será que ela o impediria se fosse até o garoto para arrebentar sua cara? Não… Era desnecessário. A braveza e os gritos estavam suficientes. O que precisavam agora era: Uma camisinha e qualquer beco escuro perto do rio, e só. Priscila pensava num jeito de levar a situação até isso… Quando afinal… o menino suspendeu o rosto. Vicente parou de gritar, engolindo seco e imediatamente apertou a mão de Priscila que se pôs a tremer. O menino tinha dentes pretos… melhor dizendo, ele tinhas PRESAS e gengivas tão vermelhas que pareciam banhadas em sangue. Todos os seus dentes eram pontudos como dentes caninos…. num sorriso/careta que não transmitia a menor humanidade.
(…) foi se levantando devagar, mas a cada movimento, seus ossos emitiam barulhos como se fossem constantemente quebrados ou deslocados. Parecia sorrir… Mas aquilo não era realmente um sorriso. Era uma afronta… Era ameaçador… “vamos embora, vamos embora, vamos embora, VAMOS, CORRE!!”. Viraram-se juntos e correram sem olhar para trás, subindo uma ladeira querendo encontrar outras pessoas. Chegaram numa praça e já era madrugada e chovia. Todas as casas estavam fechadas, a rua vazia. Viram uma menina sentada de costas, parecia mexer em alguma coisa, que talvez fosse um bichinho ou um brinquedo. Ela se virou para eles; Olhos vermelhos e os dentes iguais ao do garoto lá embaixo. Babava em cima de algo que parecia ser o que tinha sobrado de um cachorrinho ou um gato. O sangue e alguns pedaços escorriam da boca. Ela se movimentou fazendo os mesmos estalos agonizantes. Correram pra rua que entrava ao lado e bateram na única casa onde a porta estava fechada, mas as janelas abertas e as luzes acesas. A porta se abriu sozinha. Eles correram pra dentro batendo a porta e fechando a janela. Gritavam por socorro e ao mesmo tempo contavam aos gritos – pra quem os pudesse ouvir… – sobre coisas “diabólicas” que os cercaram na praça. Ouviram umas risadas abafadas que vinha de uma área externa depois da cozinha. Um cheiro de carne queimada ganhava força e intensidade. “… aqui também, não… aqui também não, Vicente… aqui também não!!”,
(…) Priscila gritou mas era tarde demais… Encontraram uma família inteira daqueles seres, sentados numa mesa. Todos viraram de uma vez emitindo sons e mostrando os dentes, no que parecia ser um sorriso, mas não… Era perceptível… eles sentiam nos poros. Todo o sentido de adrenalina e perigo apontava pro fato de que aquele “sorriso” que davam… era de pura fome. “são crianças… em cima da mesa… ali, queimadas, são crianças, Vicente, tá vendo…”. “tô vendo, tô vendo… meu Deus…” balbuciavam enquanto iam se encostando na parede… lágrimas e soluços de quem sabe que vai morrer. Pela porta o menino de cabelos molhados entrou de mãos dadas com a menina da praça. Estavam cercados, agachados… Perdidos em milésimos de segundos de pensamentos que sentiam certa “nostalgia sensorial” de beijos e amassos e virgindades perdidas.
... Lágrimas e soluços de quem sabe que vai morrer.