PORÕES DO TERROR.
-"Prima, estou perto de Americana, terra do Rodrigo José." Foi a última mensagem de Aline. O celular de Fernanda nas mãos do investigador de polícia. Aline estava desaparecida há um mês. -"A família estava acostumada com os sumiços da moça, a mochileira da família. Aline nunca ficou mais de uma semana sem dar notícias." Disse Alfredo, primo da jovem arquiteta. A polícia vasculhou o quarto da jovem de 23 anos. As paredes com fotos de viagens a Austrália, Japão, Congo, África do Sul, Canadá e Argentina. -"Ela viajava de carona, quase sempre. Apaixonada por trilhas, camping e montanhismo. Ela carrega sempre uma barraca portátil, saco de dormir, lanterna, faça, isqueiro, objetos de higiene pessoal, nada mais. Aline é cidadã do mundo, não é de fixar morada. Não anda com dinheiro, só um cartão de crédito." Disse Samira, mãe da jovem desaparecida. O investigador prestava atenção a cada detalhe fornecido pelos familiares da moça desaparecida. -"Ela estava mais perto da gente, numa fase de conhecer mais o Brasil. Tinha ido a Chapada Diamantina, Serra da Capivara, Jalapão e as cidades históricas de Minas. Seu objetivo, segundo nossas últimas conversas, seria conhecer Curitiba e as serras gaúchas." Explicou Fernanda ao investigador. -"Não tinha desafetos, namoradinhos, paqueras, inimizades! Muito estranho. Ninguém some assim, do nada." Concluiu o delegado Percival. Os cartazes com a foto de Aline espalhados pela cidade de Goiânia. A foto da moça em embalagens de leite. -"O último sinal de celular de sua filha indicava a presença dela em Campinas, em São Paulo. E depois disso, não há mais nada." Disse o investigador a Denis, pai da jovem. -"O celular dela foi destruído, certeza. Não vamos parar de procurar sua filha." O homem de quarenta janeiros não acreditava que estava vivendo um pesadelo. -"Minha filha, ela vai voltar pra casa." Hélia, a mãe, estava sob efeitos de calmantes. A família desesperada com o sumiço de Aline. O tempo passando. A polícia trabalhando no caso. Meses, anos, mais de uma década, sem um único sinal da jovem. A mãe de Aline se foi, dois anos após o desaparecimento da filha. Denis, o pai, jogou a toalha, deu a luta por vencida, entregando os pontos e acreditando na morte da filha. -"Deve ter sido abduzida por seres alienígenas. Foi morta e queimada pois não há sinal algum dela. Refiz todo o trajeto dela, alguns a viram mas, a partir de Americana, ela evaporou." Amigos de Aline montaram um grupo de buscas, caminhando e refazendo o trajeto por onde a jovem passara antes de desaparecer. A portinhola de ferro do porão se abriu. A mulher tapou os olhos devido a claridade. Ela se encolheu num canto. -"Dia da higiene, Luciana. Vai ganhar um dia de beleza." Disse o homem que desceu as escadas com uma mochila nas mãos. -"Está limpinho aqui. Parabéns." Luciana sorriu. A um sinal dele, Luciana sentou-se na cadeira. O homem a algemou. Ela consentiu, oferecendo os braços. -"Isso, Luciana. Vai ser rápido. Tem sido uma boa menina, sabia?" Luciana fechou os olhos pra não ver seus cabelos caindo. Ela aprendeu a gostar do barulho da máquina de cortar cabelo. -"Pronto." O homem tirou um espelho de uma mochila. -"Veja. Ficou bom, como Sinéad O'Connor." Ela riu. Ele guardou o espelho. Os olhos dela brilharam ao ver o vidro de esmalte vermelho. Há anos não pintava as unhas. O homem caprichou, limpando as cutículas com algodão. -"Dinorá lhe deu seu próprio esmalte. Ela é muito boa." Luciana concordou. Ele aplicou uma injeção no braço de Luciana. -"Seu remédio, querida. Vai relaxar." Tempo depois, ele tirou as algemas. -"Não precisamos disso, já é da família. Nossa doce Luciana. Eue a Dinorá gostamos de você. Tem sido uma boa companhia pra nós. Não imaginamos a vida sem você ." O homem a beijou. Ele subiu as escadas e abriu o porão. Luciana deixou o corpo cair na cama. Estava exausta de lavar roupas, limpar a casa e cozinhar para a família daquele homem. A cabeça parou de doer e ela sentiu as pálpebras pesarem. Nem lembrava direito há quanto tempo estava ali, longe do mundo, esquecida. Era escravizada, drogada e maltratada. A rebeldia do começo deu lugar a indiferença e sujeição pra conseguir um mínimo de conforto. As correntes e mordaças, necessárias para abafar os gritos, foram substituídas pois a prisioneira não oferecia mais perigo. Fugir era impossível. Tempo depois, ela passou a sentir gratidão pelo casal pois achava que eles tinham tirado ela das ruas violentas, do mundo cruel. Luciana fazia as tarefas como uma empregada normal, exceto pelo fato de ter uma arma sempre apontada pra ela, durante o trabalho. Ela não saía no quintal de jeito nenhum. Após o trabalho, a moça era levada ao porão do terror, onde era amarrada e drogada. Ela esqueceu seu nome verdadeiro, Aline. Após sete anos, ela começou a ganhar direito a banho e duas refeições por dia. Às vezes, o casal de sequestradores viajava, ficando dias fora. Luciana ficava no porão, amarrada, passando fome e sede. Erasmo e Dinorá, cujos nomes verdadeiros eram Deivid e Marielle, passaram a ter brigas homéricas, assim que a mulher descobriu que o homem abusava há tempos de Luciana, cativa. Grávida, ela foi forçada a tomar chá abortivo e ainda levou uma surra de Dinorá. -"O pedágio de Sumaré. O carro cinza." Era tudo que Aline lembrava. O casal jovem e sorridente ofereceu carona a mochileira. Dinorá tão gentil, na lanchonete do rodoposto, pagando a conta da moça. -"Vamos pra capital. Deixamos você lá, amiga." Aline despertou no dia seguinte, devido a pancada na cabeça. Ele foi colocada no porta malas do carro do casal de sequestradores. A polícia apertou o cerco e o casal estava desconfiado de que membros do bando não compactuavam mais com eles. Os dois sequestradores planejavam fugir para o Paraguai. -"Luciana só servirá para nos atrasar, querido. Vamos pegar outra jovem." A moça foi amarrada, amordaçada e vendada. Luciana foi abandonada pelo casal a dois quilômetros da ponte da amizade, em Foz do Iguaçu. -"Adeus e até nunca mais, Luciana." Disse a sequestradora, antes de entrar no carro. Tempo depois, um caminhoneiro parou. O motorista estranhou aquele corpo inerte no acostamento. A polícia foi chamada. Luciana foi colocada na maca da ambulância. Ela estava assustada. Aos paramédicos nada disse, com medo. Tinha um chinelo e um vestido velho, desbotado. A cabeça raspada. Raquítica e desnutrida, parecendo ter o dobro de sua idade. Nenhum documento. -"Qual seu nome?" Ela não respondeu a pergunta da policial de Foz do Iguaçu. Não sabia seu endereço, não lembrava do nome de ninguém. -"É uma moradora de rua. Não há nada que a identifique." Uma semana no hospital. Quase um ano numa fazenda de tratamento para dependentes químicos. Um mês no albergue, onde Luciana ajudava na cozinha. Ela decidiu se fechar e não falar muito com as pessoas. Uma reportagem de tevê sobre moradores de rua no albergue. Luciana foi apontada como o anjo daquele lugar, sempre dedicada e trabalhando sem remuneração. Fernanda viu a reportagem. Ela deu um salto no sofá. -"Jesus Cristo. É a Aline. Ela está viva." A moça correu até a casa de Dênis. -"Tio. A Aline está viva. Está em Foz do Iguaçu." O homem não escutou direito. -"Quem é?" Fernanda pegou a foto de Aline. -"Olha, tio. A prima está viva." O velho Denis chorou. -"Ela morreu. Está morta." Fernanda ligou para o canal de tevê, se identicando como prima da tal Luciana. -"É minha prima Aline. Está mais velha mas é ela." O caso viralizou. A equipe da tevê preparou o reencontro surpresa entre Denis e a filha. A família viajou até Foz. Denis, Fernanda, a equipe da televisão. A moça nos seus afazeres diários. O repórter entre pai e filha. Luciana olhou para Fernanda e não a reconheceu. -"Ela não se lembra, não reconheceu ninguém após três décadas sumida. Está sem aquele brilho no olhar, vivendo no mundo de Nárnia." O repórter entrou ao vivo. -"Luciana? Conhece esse homem? Essa moça?" A moça não respondeu. O repórter refez a pergunta. -"Não." Respondeu a moça do albergue. -"Seu pai. Esse é Denis, seu pai. Aline? Seu nome verdadeiro é Aline." Gritou Fernanda, enquanto chorava. Luciana estava confusa. Aquele velho não era seu pai. Denis olhava fixo pra moça. -"É a minha Samira com quase cinquenta anos. Lembra a Samira." Ao ouvir o nome da mãe, Luciana tremeu. -" Samira. Eu gosto." Fernanda a abraçou. Denis entrou no abraço, ainda que a filha estivesse diferente, algo nela transmitia paz. -" Luciana terá que se tratar. Nada como o tempo pra cicratizar as feridas e colocar as coisas no lugar." Disse a psicóloga que acompanhava a equipe da televisão. Aline forneceu nomes e características dos sequestradores pra polícia elaborar retratos falados mas Aline se contradizia, estava confusa demais. Ela não sabia nada do cativeiro, que cidade ficava, não tinha pista alguma. Meses depois, o progresso era visível. Aline, agora uma senhora beirando os sessenta anos, estava recuperando a memória aos poucos e passou a narrar algumas experiências que o viveu no cativeiro. Era chocante e revoltante. Aline adora prosear com o pai. Fernanda decidiu morar com Denis, para cuidar dele e de Aline. Durante o dia ela é prestativa, gentil e trabalhadora. A noite, prefere se recolher cedo, após o jantar. Fernanda algema mãos e pés de Aline e deita-se ao lado da prima. -"Não vai doer, Aline?" A moça sorri. -"Prefiro assim. Posso ficar agitada demais." Aline gosta que Fernanda leia histórias pra ela, antes de adormecer. -"Tome os remédios, prima Essa noite vamos ler a fábula da raposa e as uvas. " A música baixinha, o quarto com um pequeno abajur. Fernanda ouve Aline gritar enquanto dorme. A moça faz massagem nos pés da prima que tem pesadelos. Aline se acalma por um momento. -" Aline está livre mas sua mente ainda está lá no porão do terror " FIM