Cuidado com o abraço!

* Adriana Ribeiro

    

 Nem bem o dia amanhecera e já se ouvia alguém bater levemente na porta e chamar:

__ Zequinha! Zequinha!

     Ergueu o tronco da cama e olhou pela fresta da janela para ver a claridade do dia e nada. Ainda estava tudo escuro. Então resmungou:

__ Mas quem será a essa hora?

     A Dona Chica, sua esposa, tinha sono leve e ouvindo o marido resmungar respondeu:

_ Vai dormir homem! Não tem ninguém aí chamando! Você tá é ouvindo coisas...

     Depois de alguns minutos em total silêncio, Zequinha se convenceu que sonhara e voltou a se deitar.  E quando já estava quase adormecendo, naquele estágio entre o sono profundo e a quase consciência das coisas ao redor, tornou a ouvir o mesmo chamado acompanhado das batidas na porta. Duas batidas! Nem uma e nem três! Duas apenas como da primeira vez:

_ Zequinha!? Zequinha!?

     Desta vez a voz tinha mais urgência. Tornou a levantar-se e já com os pés para fora da cama, lembrou-se de perguntar:

__ O que é?

A voz então respondeu:

__ Acorda homem! Seu Abdias mandou lhe chamar para fazer um serviço atrás do curral!

    Mesmo prestando atenção, Zequinha não conseguiu identificar aquela voz e tornou a perguntar:

__ Quem tá aí?

E a voz, agora impaciente, disparou:

__ Levanta criatura! Não vê que eu tô com pressa? O patrão não vai gostar nada dessa demora. Ele disse que o serviço precisa ficar pronto antes do sol sair. Bom, eu fiz minha obrigação! O recado está dado!

 

     Mas Zequinha, agora de pé ao lado da cama tornou a perguntar:

__ Quem é você?

     Mas como resposta só ouviu as pisadas das patas do cavalo fazendo a volta e soprando para se lançar em disparada. Zequinha correu para a porta para ver se dava tempo de reconhecer o mensageiro. Enquanto a abria escutou a voz se identificar já bem distante:

__ Eu sou aquele que já foi!

  Ouvindo aquilo um leve arrepio cruzou seu corpo todo como se um vento frio tivesse entrado ali no quarto, mas não havia como, pois as portas ainda estavam fechadas.  Zequinha então voltou para o quarto, olhou para a mulher que ressonava na cama, e resmungou outra vez:

__ Mas que diacho Seu Abdias quer fazer dessa vez?

     Só havia um jeito de descobrir e sendo assim resolveu ir até a fazenda. Vestiu a roupa e saiu do quarto em direção ao quarto dos fundos que servia como depósito de ferramentas onde deixava os apetrechos de trabalho. Calçou as botas e, como não sabia do que se tratava o serviço, pegou o facão e pendurou na cintura. Em seguida separou uma foice e um cavador de cerca junto com a capanga onde guardava o desapregador, o martelo e os grampos. Na fazenda tinha tudo, mas gostava mesmo era de trabalhar com as próprias ferramentas.

     Abriu a porta dos fundos, olhou o horizonte e viu que ainda não havia sinal do sol. Então voltou e pegou a velha espingarda e a cartucheira. Costumava ir até a fazenda pelo atalho onde havia um pequeno trecho de mata fechada do lado leste que, àquelas horas da madrugada, devia estar muito escuro. Melhor se prevenir.

     Há muitos anos trabalhava na Fazenda Tuim. Era roçador de pastos e cerqueiro, mas fazia de tudo que fosse preciso. Não era de fazer corpo mole, se estava dentro do seu horário de trabalho, o que mandassem fazer, fazia sem reclamar. Inclusive companhia ao patrão que muitas vezes mandava chamá-lo para vistoriar as cercas apenas com o propósito de ouvi-lo contar pilhérias enquanto andavam a cavalo.

 

     Zequinha era um famoso contador de causos. E divertia o grupo de trabalhadores contando toda sorte de estórias e anedotas. Naqueles tempos eram necessários muitos homens para roçar os pastos imensos, pois o trator ainda era máquina recém criada e só se via na televisão ou nas feiras e exposições de implementos agropecuárias.

     Já vestido e paramentado para a lida foi até o quarto avisar à esposa que não carecia se levantar para fazer seu café. Iria saber o que era tão urgente que fizera Seu Abdias mandar alguém chamá-lo àquelas horas, mas se precisasse pegaria um cavalo para vir almoçar em casa.

     Ao terminar de falar reparou que a esposa ressonava e aquilo não era normal. Depois de tanto barulho ela continuava a dormir. Logo ela que acordava com tanta facilidade. Pensando em chamá-la deu alguns passos em direção a cama, mas ela se virou para o lado contrário murmurando:

__ Cuidado com o abraço!

     Zequinha então teve dó da esposa. Estava de sono solto e chegava até a sonhar.

Então resolveu deixá-la dormir. Ela devia ter ouvido o recado e ia saber para onde ele fora de qualquer jeito.

     Assim, pegou o caminho da fazenda.

     O atalho pela estrada de gado que costumava tomar ia sair nos fundos do curral e como o vaqueiro já deveria estar tirando o leite ia aproveitar para fazer uma boquinha. Havia colocado na capanga um punhado de farinha com sal e como sempre carregava uma colher e um caneco consigo, não teria dificuldades para encher a barriga.

     Antes de chegar no curral havia um açude e ao lado da banca de represamento, já chegando no final, havia uma moita de bambu antiga onde o caminho bifurcava entre o curral, o quintal da casa grande e o pasto de apartação das vacas de leite durante a noite. Era uma espécie de encruzilhada ao pé da ladeira que dava para um outeiro onde foram erguidas as construções para evitar as cheias do Rio Tuim.

     Foi ali que o roçador encontrou um senhor cavando um buraco.

Não o reconhecia pois além de estar de costas usava uma capa escura cobrindo o corpo completamente e escondendo o rosto. Mesmo assim se aproximou e perguntou-lhes se precisava de ajuda:

__ Aêee! Quem está ai? __ Precisa de ajuda amigo?

 

     Sem se levantar ou virar-se para cumprimentá-lo, o desconhecido respondeu:

__ Aêee! Quem vem lá? __ Preciso de ajuda sim companheiro. Na verdade estou lhe esperando faz uma meia hora e só vim lhe mostrar o serviço. Aqui neste local está enterrado um objeto que me pertence, mas como estou sem ferramentas não consigo cavar para retirá-lo. O Senhor demorou muito e como a minha hora está chegando preciso adiantar o passo, de modo que estou lhe dando tal objeto de presente. Cave! Tudo que encontrar aqui é seu.

     Zequinha se aproximou do buraco de quase trinta centímetros já cavados à mão e reparou no bico de uma bota de couro. Ficou curioso!

     Sem mais se lembrar de olhar o rosto do homem ao lado se debruçou sobre o buraco e lembrou do cavador que trazia consigo. Então disse:

__ Se avexe não companheiro. Num instante a gente encontra o teu objeto e o Senhor segue viagem. Temos tempo. E começou a cavar.

    Quando removeu a terra solta ao redor da bota percebeu que se tratava de uma perna de homem e ficou assustado. Quem será que estava enterrado ali? Seria o homem da capa um assassino querendo envolvê-lo naquele crime sinistro?

     Zequinha levantou-se! Olhou para o indivíduo e tentando ver-lhe o rosto ergueu a mão para tirar-lhe o gorro da cabeça. Mas com uma rapidez e força inesperada seu braço foi agarrado por uma mão enorme e fria. 

Arrepiou-se todo pela segunda vez, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa ouviu uma voz suave que, contrastando com aquela mão forte a segurar-lhe o pulso, dizia:

__ Se acalme Homem! Nada do que você vê aqui ou verá daqui para a frente é real. Apenas faça o que eu disse e siga cavando!

 

     Zequinha não entendia nada daquilo que estava vivendo, mas aquela voz lhe inspirava confiança e calma.

De repente se deu conta do cenário inusitado: Dois homens desconhecidos entre si à beira de uma moita de bambu, cavando um buraco estranho em busca de algo mais estranho ainda. Mas a voz do encapuzado de novo o exortou a cavar:

__ Vamos lá meu rapaz! Cave! Já estamos perto...

     Zequinha voltou a olhar o buraco e viu que a perna e a bota não estavam mais lá! Ficou impressionado novamente, mas não era homem de correr de medo, então recomeçou a escavação.

     De repente uma batida do cavador fez ressoar um som metálico dentro do buraco e, retirando a terra solta revelou-se um objeto retangular como se fosse uma caixa de metal, não dava para ver direito no escuro, mas o som inconfundível confirmava se tratar de algo de ferro ou cobre, com o formato de um baú.

     Voltando-se para o homem de pé ao seu lado, Zequinha reclamou:

__ Bem amigo, tá difícil retirar teu objeto. Se ele for mesmo o que parece ser, temos muita terra para cavar ainda.

Ao terminar de falar sentiu a mão do homem segurar-lhe o ombro direito como se a tornar a pedir que continuasse o serviço e não teve outra reação senão continuar a cavar. Porém, quando virou-se para o buraco viu saindo de dentro dele várias serpentes de diferentes tamanhos, cujas escamas brilhavam refletindo a luz da lua. Teve medo, mas como aquela mão continuasse parada sobre seu ombro, não se abalou. Lembrou-se de quando ele lhe dissera que nada ali era real.

Esperou alguns segundos e quando já não se via mais nenhuma serpente, reiniciou a escavação pelos lados do retângulo de metal, alternando ora de um, ora de outro e logo abaixava-se par retirar com a mão o excesso de terra cavada. Foi então que ouviu o rosnado de um cachorro que parecia querer mordê-lo. Olhou por sobre o ombro e viu um cão enorme, todo preto e peludo. Mas como não havia cachorro preto na fazenda e muito menos que não o conhecesse, ignorou.

Àquela altura Zequinha já sabia que não devia parar de cavar e continuou...

Dali a pouco era um bando de gansos que passava grasnando por eles em direção ao açude. Mas ali na fazenda também não havia gansos.

Nessa peleja para desenterrar o objeto, amanhecia o dia quando a caixa de metal ficou quase toda de fora da terra e Zequinha levantou-se para falar com o homem da capa, mas este, quase desvanecendo na sua frente se aproximou dizendo:

__ Pronto meu amigo Zequinha! Este baú cheio de moedas de ouro e prata agora é seu! Aproveite-o bem enquanto pode!

     E dizendo isso deu um passo em direção ao roçador como se quisesse abraçá-lo, mas nesse momento a voz da esposa ressoou nítida aos seus ouvidos:

__ Cuidado com o abraço!

     Desta vez o cabelo da nuca de Zequinha enriçou-se e o corpo tremeu de medo. Tentando se desvencilhar das mãos do desconhecido antes de ser tocado por elas se desequilibrou, escorregou na terra solta da borda e caiu no buraco.

     Extremamente assustado gritou:

__ Sai para lá fio duma égua!

     De repente tudo clareou. O buraco desapareceu junto com o baú de metal que ele nem chegara a abrir e o homem da capa sumiu completamente como se não houvesse estado ali.

   Desconfiado e ainda sem acreditar no que tinha acontecido, o cerqueiro pegou suas coisas e se dirigiu ao curral. O leite já estava tirado e envasado. E aparentemente o vaqueiro havia saído para levar as vacas e os bezerros no pasto.

     Então resolveu saber logo do patrão o que ele queria fazer com tanta urgência.

Mas este ainda dormia e foi a patroa quem o recebeu.  Mandou que ele entrasse até o escritório e aguardasse um pouco que iria chamar o marido para vir atendê-lo.

Zequinha acompanhou a patroa até o local e já no escritório sentou-se numa poltrona de couro que dava para uma parede cheia de quadros. Como era bom poder se sentar! Pensou Zequinha. Estava exausto.  Pôs as duas mãos no rosto como se estivesse com sono e quando as retirou, seu olhar foi atraído para uma das telas ali penduradas.

Nela revelava-se um homem alto, de cabelos escuros, vestido de preto, aparentemente uma capa ou casaca antiga. Estava usando um chapéu imponente e calçando um par de botas lustrosas parecidas com as que acabara de ver no buraco...

__ O buraco! Gritou o homem levantando-se de repente da poltrona para sair dali, mas o patrão já estava entrando na sala e vendo-o olhar assustado para o retrato na parede, deu uma risada rouca e disse:

__ Meu pai ia gostar de conhecê-lo meu amigo!

     E dizendo isso segurou forte no seu ombro direito...

   Profundamente impressionado, o roçador encolheu-se na poltrona e quase ouviu novamente o persuasivo comando:

__ Cave!

 

 

Adriribeiro/@adri.poesias

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 24/01/2022
Reeditado em 30/01/2022
Código do texto: T7436366
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