A Mulher Fria
A primeira vez que Ivo a viu, ela estava correndo na chuva. Era uma manhã de segunda-feira. A mulher segurava uma máquina de escrever portátil sobre a cabeça para se proteger da chuva fria. Seus sapatos pretos afundavam na lama, assim como a barra do seu vestido lilás. Um meio sorriso mostrava que a situação não a deixava desconfortada, parecia até se divertir. Quando se aproximou, deixou que seus olhos escuros pousassem sobre Ivo por um breve momento. Ele a acompanhou com os olhos até ela virar a esquina da Rua P. Isabel. Com o coração martelando, encolheu-se sobre a caixa de engraxate e aguardou seu primeiro cliente.
À noite, quando chegou em casa com os bolsos leves, Ivo acendeu seu cachimbo, sentou-se na poltrona puída e tentou entender o porquê da moça não sair da sua cabeça naquele dia. Havia movimento na rua naquela hora; as carroças passavam apressadas espalhando lama; senhores e senhoras de semblante soturno subiam e desciam a rua e ele estava pensando nos contos-de-réis que deveria ganhar naquele dia para poder pagar o aluguel do cômodo ao seu senhorio. A mulher então surgiu, se destacando de tudo e de todos naquela manhã fria. Quem era ela? Para onde ia? Por que despertou tanta fascinação nele?
Batidas na porta tiraram-no do devaneio. Ivo a abriu já sabendo quem era. Isaac, seu senhorio, estendia uma mão gorducha para ele e o olhava como uma ave de rapina. Com um gesto, pediu que o homem aguardasse um momento e encostou a porta. O quarto se encontrava numa semiescuridão; a luz do luar entrava pela janela de vidro e revelava formas no aposento. Ivo acendeu uma vela, contou as moedas no bolso e pegou mais algumas dentro do baú aos pés da cama. Depois de pagar o homem gordo, lavou as mãos e o rosto na bacia sobre a mesa e fez a ceia, uma pequena fatia de pão preto. A imagem da mulher o acompanhava naquela solidão.
Ela passou por ele no dia seguinte, na mesma condição do dia anterior. Ivo teve que se segurar para não ir até a esquina e acompanhá-la mais um pouco com os olhos. Choveu forte o dia todo e não apareceu nenhum cliente. Não fosse a visão da moça, ele teria voltado para a casa numa tristeza que certamente contaminaria todos os inquilinos do seu senhorio. Ela tinha uma presença que o fazia sentir-se como uma criança no seu primeiro dia na praia. Aquele sorrisinho no rosto, o vestido sujo de lama, os pés ágeis e firmes... Nunca alguém havia lhe despertado sentimentos tão avassaladores.
E tornou-se rotina, todas as manhãs, a moça passar por ele apressada. E sempre lançava a Ivo um olhar benevolente como cheio de palavras gentis.
Ela foi até ele numa tarde de garoa quando o engraxate mastigava um pedaço de pão. Estendeu-lhe um par de sapatos que certamente não era dela. Ivo pôs o pão de lado e com as mãos trêmulas pôs-se a exercer o seu ofício, sempre lançando um olhar tímido a ela. A mulher o olhava com ternura. Parada ali segurando o guarda-chuva com as duas mãos, parecia uma criatura fantástica com seu sobretudo verde e chapéu de penas amarelas.
Depois de muitas trocas de olhares os sapatos ficaram prontos. Quando colocou as moedas na mão calejada, deixou que seus dedos gelados descansassem na pele dele por um instante. Com um gesto de agradecimento, a mulher se afastou e seguiu na direção de onde viera.
Em casa naquela noite, Ivo tomou um banho de bacia e fez a barba. Sentou-se na cama e, à luz de velas, estudou seu rosto no pedaço de espelho e se achou feio demais. As mazelas que sofrera na vida estavam marcadas em forma de linhas e pele flácida, ainda que jovem. O cabelo duro e escuro, os olhos grandes e azuis demais. Ele tinha uma voz que detestava e que nunca usava, afinal, quem tinha paciência pare ouvir um fanho? Jogou o espelho na parede e se deitou.
Mais uma manhã fria e chuvosa.
Encolhido sobre a caixa de engraxar, ele esperou. Mas naquele dia ela não passou. E nem nos dias seguintes.
Ah, como sentiu falta dela! Esperava o dia todo por aquela visão angelical em vão. À noite, encolhido na cama, achava consolo fantasiando encontros com ela nos parques em dias ensolarados, tomando bebidas quentes nas padarias chiques, passeando abraçados de coche pela cidade... Assim, adormecia sorrindo.
Foi trabalhar num domingo com esperanças de vê-la passar indo à missa. Mas quem passou foi um homem barbudo de cartola que jogou um jornal na lixeira ao lado dele. Estava frio demais, e o jornal em volta do seu corpo o protegeria um pouco do vento gelado. Ao pegá-lo viu a foto da moça na última página. Demorou vários minutos para conseguir ler o comunicado: "Severina Pekkala, filha do renomado advogado, Omar Pekkala, faleceu na madrugada passada após sofrer vários dias com pneumonia. O enterro será hoje no cemitério São Lázaro às onze horas da manhã."
O sino da igreja acabava de anunciar doze horas. Ivo se levantou, jogou sua fermenta de trabalho nas costas e capengou pelas ruas lamacentas até o cemitério municipal.
Com as botas enlameadas, a roupa encharcada e tremendo de frio, atravessou o portão do cemitério pela primeira vez na vida.
Uma fétida neblina passeava pelo lugar transformando tudo ao redor em sombras difusas. Caminhou encurvado e seguiu o som de vozes que pareciam vir de outro mundo. Finalmente viu-se em meio a um grupo de pessoas bem-vestidas. A neblina ali era menos densa, talvez devido ao calor humano e as velas que os enlutados seguravam. O caixão de mogno já estava sendo descido na cova por quatro homens. Gotas de chuva caiam no vidro que mostrava a face da defunta; estava tão pálida, os cantos da boca repuxados insinuavam um sorriso forçado.
As pessoas lançavam olhares de estranheza para o homem que carregava uma caixa de engraxate nas costas e comentavam em murmúrios que não o conhecia. Quem era aquele, o dono do choro mais inconsolável, e que parecia ter saído dos esgotos da cidade?
Os enlutados foram se afastando aos pares depois que o caixão foi coberto de terra, agora sem interesse algum no homem desconhecido. Logo só restou uma vivalma no campo santo que se debruçou sobre o novo túmulo.
Naquela noite, após chegar em casa, Ivo foi dominado por um sentimento que parecia elétrico. Queria agir, mas o medo das consequências o freava. Sentado na sua poltrona, ainda com a roupa molhada, lutava entre o desejo e o medo de perpetrar um crime. Era comum — sim, ele sabia, pois, ouvia as pessoas comentarem na rua — o roubo de corpos, mas quando pegos, os criminosos pagavam um alto preço.
O sino da igreja anunciou meia-noite quando Ivo se levantou decidido. Saiu do seu pequeno aposento e sorrateiro, tomou emprestado algumas ferramentas nos fundos da propriedade. Antes de sair do edifício, pensou ter visto a sombra do rosto de Issac na janela do quarto, dois andares acima do seu.
As ruas estavam praticamente escuras; os guardas já haviam apagado os lampiões dos postes; apenas uma casa e outra iluminavam o caminho. Ivo seguia empurrando um carrinho de mão como se fizesse isso todos os dias. Passou pelo portão quebrado do cemitério e acendeu um lampião. Algo que parecia magnético o levou direto para o mais recente túmulo.
A chuva fina era a única companhia do homem. Ela lavava de seu corpo o suor que as emoções daquela noite lhe causavam. Quando enfim retornou ao edifício, a chuva desabou com força. O engraxate descansou o cadáver sob a cerca viva e guardou as ferramentas, sem se preocupar muito com o barulho; mesmo se gritasse, demonstrando sua alegria e medo, ninguém o ouviria em meio aos roncos dos trovões e o barulho da chuva forte.
Subiu os degraus da escada com o corpo — envolto por uma lona — sobre os ombros. Ela era pequena e magra, mas pesava muito. Ofegando, desatracou rápido a porta e depositou a morta na cama. Acendeu todas as velas que tinha e limpou o cadáver com um pano úmido. A maldição da morte era perceptível: a palidez gélida, a rigidez e os gases fétidos que saiam quando a movimentava... Ao menos a putrefação só havia começado dentro dela.
Nunca pensara no quanto a Morte era injusta.
Depois de limpá-la, Ivo sentou-se na poltrona e a observou. A chuva açoitava a única janela e o vento derrubava coisas lá fora.
Onde estava com a cabeça quando decidiu roubá-la? Que direito tinha sobre o corpo dela? E o que faria quando o fedor começasse a sair pelas frestas da porta e janela? Ele iria ser descoberto e preso. Viraria uma lenda e haveria uma manchete no jornal que deixaria as pessoas enjoadas: “HOMEM ROUBA CADÁVER E O LEVA PARA CASA”.
A contemplação no rosto pálido o acalmou aos poucos. Aproximou mais a poltrona e pôs-se a acariciar o rosto dela quando batidas na porta o sobressaltou. Já havia sido descoberto. Algum insone, provavelmente Isaac, deve tê-lo visto da janela e agora a polícia estava ali.
Era o fim de uma vida boa que mal começou.
Levantou-se cheio de tremor e caminhou para o seu inesperado destino.
Ao abrir a porta cobriu a boca com as mãos para não gritar. Isaac estava diante dele, mas não era o mesmo. Tinha os olhos arregalados e vermelhos, vestia um sobretudo preto e imundo; as mãos postas sobre o peito estavam manchadas de vermelho. Mas o pior de tudo era a boca. Como Ivo nunca reparara naquela boca cheia de dentes pontiagudos com uma língua vermelha espreitando como uma serpente? Ah, aquela criatura medonha jamais deveria caminhar sobre a Terra!
Isaac sorriu e olhou para dentro do quarto. Com um movimento de mãos, mandou que Ivo se afastasse e entrou. Parou diante da cama, diante da mulher morta.
Ivo fechou a porta e tentou compreender.
Isaac fitou Ivo e depois a morta; algo como compaixão relampejou naqueles olhos animalescos. Com lentidão, a criatura se abaixou sobre o cadáver como um amante. A língua serpentiforme lambeu todo aquele rosto antes de adentrar na boca e beijá-la. Um raio lá fora iluminou o quarto por mais tempo que o normal e então Isaac, saciado, se ergueu. De sua boca escorria sangue que ele resgatava com a língua comprida.
Um trovão medonho abalou os céus como se estivesse amaldiçoando aquela cena. Então os olhos da morta se abriram. Olhou com surpresa o engraxate que observava tudo espremido no canto da parede. Depois, ela se virou para Isaac. Enquanto os olhos dela fitavam os dele, pareceu compreender o que havia lhe acontecido. Levantou-se com leveza, beijou a testa da criatura que lhe devolveu a vida e se ajoelhou diante dela. Isaac apontou um dedo para Ivo. A mulher que em vida se chamara Severina Pekkala, andou até ele e o puxou para seu peito. Sem compreender ainda como aquilo tudo era possível, Ivo se entregou nos braços dela. Era fria como as manhãs naquela cidade. Tinha um cheiro forte de crisântemos e um pouco de terra de cemitério no cabelo loiro. Aquilo era tremendamente anormal, mas era bom. Ele não ia desperdiçar a dádiva.
A sombra de Isaac caiu sobre eles. Com um movimento quase imperceptível, o senhorio arranhou o rosto de seu inquilino com a unha do dedo mindinho. Um filete de sangue escorreu. Ivo ia levar a mão ao ferimento, mas a mulher, a mulher fria, o deteve. Ela abriu a boca e uma língua semelhante à de Isaac saltou para fora, chicoteou o ferimento e enxugou o sangue. E então, segurando firmemente o corpo do engraxate, ela finalmente o beijou.
Isaac caminhou sem pressa até a janela e a abriu. Olhou mais uma vez para o casal apaixonado e, satisfeito, entregou-se à madrugada tempestuosa.
Por Bruno Wolff.
Instagram: @brunowolff_autor