Raiva

Seu gato lhe roçou a perna, provocando uma contração involuntária de sua coxa direita. Fazia tempo que não andava tanto como andou naquele dia. Havia, por puro espírito de aventura, buscado realizar o trajeto entre a Liberdade e Anhangabaú a pé, mas acabou se perdendo momentaneamente na região central de São Paulo e subirá a avenida que cruza com a famosa Ipiranga com a Av. São João em direção a Galeria do Rock.

O tempo no centro de São Paulo parecia que corria diferente, não no sentido do passar das horas, mas no sentido de que os prédios lhe remetiam aos ares dos anos 60. Sabia de tantos artistas que haviam morado naquele centro e aquilo lhe obrigava a realizar um esforço para os imaginá-los andando por aquelas ruas. O quanto tudo mudará? Quantos prédios haviam testemunhado o passar acelerado de artistas como Tarsila do Amaral? Fingia que seus olhos cercados de prédios se acostumavam com tudo o que via e sentia ali, mas em seu íntimo era tudo meio espantoso e grandioso. A grandiosidade dos prédios lhe sufocava e ele precisava de ar naquela cidade movimentada, mas onde?

As pessoas em situação de rua que se amontoavam nas praças pareciam um cenário já comum para os paulistanos que passavam por ali, era como se o ambiente exigisse tais composições, pois se assim fosse diferente não seria mais São Paulo. O ar estava quente. O trânsito de carros e pessoas era agitado. Isso era São Paulo? Algo despontou em seu peito, um sentimento já conhecido, mas ele não ligou muito naquele momento.

Todos andavam com pressa por aquelas ruas. Observava jovens que naturalmente eram apreciadores de arte. Provavelmente a localização próxima da Galeria do Rock justificava tantas pessoas que se vestiam diferentes daquilo que ele julgava normal. Porém, outros que passavam por ele eram, claramente, pessoas preocupadas em chegar ao seu destino e descansar do dia que viviam. Como eles viviam, afinal, naquela cidade confusa?

De toda forma, o sol que aquecia sua cabeça lhe obrigava a perguntar para qualquer um desses tipos de pessoas como ele chegava no Anhangabaú. Sentia uma leve dor de cabeça despontando e isso lhe provocava um pequeno sentimento de raiva. Novamente raiva, algo que ele sabia que não podia controlar tão bem.

Sua internet acabará, sabia que devia perguntar para qualquer transeunte onde ele chegava ao seu destino há muito perdido, mas algo dentro dele sentia vergonha de revelar que não era um paulistano como muitos ali, como se houvesse um orgulho em ser mais um da multidão, mas qual era o motivo da vergonha?

- Boa tarde, Senhora. Sinto que estou perdido, gostaria de chegar no Anhangabaú.

- Rapaz, é só você ir em direção oposta ao que está fazendo atualmente.

O olhar dela não dizia nada, mas ele assim sentiu. Por que a necessidade de provar ser paulistano? Mais uma bobeira que ele sabia que ocupava sua atenção. Desceu a avenida. Seus passos iam automaticamente pelas ruas, mas seus olhos procuravam intencionalmente locais que lhe poderiam remeter algum tipo de curiosidade histórica. Via os grafites nas paredes que coloriam a cidade. Via tantos jovens despreocupados e alegres, e ali ele soube, como há muito já pressentia, que sentia uma raiva viva, quase tangível.

Isso às vezes lhe ocorria, sentia raiva apenas por sentir. A vida lhe era injusta, o contato social com São Paulo revelava seu desconforto com as pessoas e aquilo lhe dava raiva. Gostaria de ser uma pessoa social, mas não era. A raiva não deixava soluções para poder extingui-la. Ele respirou e foi em direção a uma lanchonete, comer talvez aliviaria o estranho sentimento.

Mas não aliviou, e ele foi obrigado a pegar o metrô assim que chegou perto da estação Anhangabaú. Estava irritado com tudo que sentia, era como se o sentimento tivesse surgido do nada e agora o controlava. Ele olhava irritado para as pessoas. Tantos seres inúteis o cercavam. Sabia que seus pensamentos começavam a se descontrolar mais uma vez, mas até onde isso iria o levar?

Da última vez ele perderá completamente o controle. Havia visto um filme que lhe provocava raiva. Era apenas uma comédia romântica boba. Por que sentiu aquilo? Ele não soube, mas acabou matando um de seus gatos em um estranho ataque de fúria. Aquilo controlou sua raiva. Mas agora o que controlaria?

Seu punho estava cerrado, desceu do trem e agora se encontrava em um parque solitário, como sempre fora na vida. Raiva ainda lhe controlava, mas agora menos. Ficou sentado na praça vendo o ir e vir das pessoas. Aos poucos os pensamentos clareando, sabia que em breve deveria levantar, ir para casa, tomar banho e dormir. Seu único dia de folga em 2 semanas acabaria como se fosse um dia normal. Ele desperdiçou mais uma chance de ser feliz e fazer coisas diferentes e se sentia horrível por isso.

Entretanto ele não voltou pra casa como havia planejado, notou um homem ao longe, sujeito simples, mas que lhe parecia feliz. A felicidade dos outros lhe dava raiva, isso não era justo. Mas por que escolheu aquele homem no meio de tantos? Talvez a sua forma de se portar lhe remeterá aos tantos garotos que lhe humilhavam na escola, aqueles garotos que destruíram sua autoestima e lhe fizeram viver tantos episódios de depressão até os dias atuais. De toda forma ele se levantou e seguiu aquele homem de uma certa distância. Ou melhor, como ele acreditava, a raiva seguiu aquele homem.

A tarde já caía, as primeiras estrelas do céu já começavam a cintilar, e o homem se encontrava em um local sem movimento no parque perto de uma lagoa. A raiva lhe obrigou a pegar aquela pedra, mas por quê? A raiva chegou em silêncio atrás do homem, mas por quê? A raiva lhe fez golpear fortemente o homem na nuca e o arrastar para o mato. Sim, novamente aquele sentimento lhe inundava, o sentimento de prazer em descontar sua raiva. Agora a raiva não vivia apenas nele, era exposta ao mundo.

Longe da vista das pessoas, acertou diversas vezes o homem no rosto, o sangue espirrou e lhe sujou a sua roupa, mas isso não lhe importava agora, a raiva se reduzia a cada golpe que acertava. Quantas vezes dera o golpe? Talvez umas 2, ou talvez umas 25. Ele perdeu a conta, estava em frenesi, mas a raiva passou. Por que ele fez aquilo? Não fora ele, fora a raiva.

Estava sujo, mas se banhou cuidadosamente no lago ali na sua frente, estava noite e morava perto. Acreditava que o calor secaria rapidamente suas roupas e as pessoas não notariam que ele estava tão molhado, ele não sabia, mas assim o fez.

E assim fora seu dia, sua perna ainda doía de tanto andar. Fez carinho em seu gato, o único que lhe sobrará (Por quanto tempo?) e sorriu um sorriso frio. Abriu seu refrigerante gelado e ligou a televisão para ver o noticiário daquele dia.

Vinicius Marques
Enviado por Vinicius Marques em 11/01/2022
Reeditado em 28/06/2022
Código do texto: T7427064
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