Os guardiões do pé de sete cascas

 

*Adriana Ribeiro

 

     Há alguns anos a minha família adquiriu um terreno localizado no município de Santa Luzia do Itanhy/SE, no Assentamento Mocambo, cuja fronteira sul se avizinha da mata nativa que é o limite natural entre o mesmo e a Fazenda Castelo, um latifúndio bastante conhecido na região.

 

     Durante a limpeza do terreno os trabalhadores descobriram, às margens de um pequeno riacho perene e cristalino que corta um trecho das nossas terras e serve inclusive de divisa natural entre a pastagem e a mata nativa, que ali havia um caminho antigo onde pessoas a pé, montadas a cavalo, charretes e provavelmente em carros-de-bois, costumavam viajar para escoar os produtos agrícolas da região dos engenhos até o centro comercial mais próximo que ficava na cidade de Estância.

 

     No trecho onde eles estavam trabalhando ao longo do caminho antigo dentro do terreno, perceberam uma espécie de pavimentação de pedras, como se a estrada houvesse sido calçada para evitar o lamaceiro natural e localizaram vestígios de uma antiga moradia situada na margem oposta da mesma, numa parte mais elevada. Ali identificaram uma área circundada por uma esteira de tijolos como um tipo de calçada e na frente dessa área percberam partes de uma construção antiga como um escuro porão sob uma pavimentação retangular ladrilhada por tijolos hexagonais, que remete ao formato de uma sala. Até os cacos de um velho purrão de barro foi encontrado no lugar com o fundo enterrado no chão.

 

     Ao saber do achado fui visitar o local e ao chegar lá fiquei imediatamente impressionada com o cenário bucólico maravilhoso onde uma árvore imensa, toda florida é o verdadeiro espetáculo da natureza! O chão estava completamente forrado de pétalas rosadas e o cheiro doce atraindo abelhas, besouros e minúsculos beija-flores. Um verdadeiro encanto de se ver.

     

     Perguntando aos trabalhadores, descobri que se tratava de um pé de sete cascas ou pé de bordão-de-velho, como o povo costuma chamar popularmente. Árvore nativa frondosa cujo nome científico na verdade é Samanea tubulosa. 

 

     Fiquei tão maravilhada com a visão que perguntei a um senhor que estava trabalhando mais perto da gente se conhecia a história daquelas ruínas e se aquele gigante pé de sete cascas fora plantado ali pelos antigos moradores ou nascera naturalmente, pois, para mim que sou apaixonada por flores, aquela preciosidade mais parecia um elemento de jardinagem perdido no meio de uma floresta natural.

  

   Foi então que ele nos contou uma história maravilhosa. Com final um tanto quanto nostálgico e bastante fantasioso, porém uma história de vida real com todas as suas interfaces melancólicas e cheia de crendices populares.

 

     De acordo com o trabalhador, ali onde estávamos embaixo do pé de sete cascas, era um lugar considerado assombrado. Viajantes antigos diziam que costumava-se ver três tipos de aparições: Um senhor negro bem idoso, todo vestido de branco e fumando um cigarro tão grosso de palha de fumo que mais parecia um charuto caseiro. Uma mulher vestida de cor clara e um lenço azul ao redor da cabeça, a qual costumava ser vista ora cruzando a estrada carregada com pote d’água ora com um terço numa das mãos e um punhado de flores do pé de sete-cascas como se estivesse rezando perto da árvore - e um menino que mais parecia um curumim vestido só de tanga e carregando trespassado sobre o dorso uma espécie de arco e uma capanga com flechas feitas de palha de dendê.

 

     Mas, segundo o trabalhador, o que assustava os antigos viajantes era que assim que emparelhavam com tais espectros, os mesmos olhavam pra eles e em seguida viravam as costas e sumiam como se entrasse dentro do pé de sete cascas ou em alguma saliência por trás da árvore.

 

     Por ocasião da estruturação do Assentamento Mocambo a estrada real fora desviada dali e um dos motivos que justificaram os pedidos dos novos moradores foram os tais relatos dos frequentes episódios de assombração. Novas estradas foram criadas na divisão dos lotes de terra e para a construção da comunidade de 40 famílias assentadas pelo Programa Da Reforma Agrária orientada pelo INCRA. Desde então quase ninguém, com exceção dos caçadores e pescadores, continuou passando por aquele caminho e o pé de sete cascas fora esquecido junto com os seus guardiões.

 

     Ouvindo aquela história fiquei ainda mais curiosa. Queria saber mais sobre aquela crendice popular. Sempre gostei de ouvir causos fantasiosos. Então indaguei se ele sabia quem eram aquelas pessoas, as supostas visagens, e porque estariam ali. Novamente o Senhor foi nos contando o que sabia. Segundo ele já ouvira pelo menos duas versões dessa parte da história dos antigos moradores daquela região e de acordo com o construtor de cercas, naquela localidade da estrada velha para os engenhos Antas, Rapa-Pau e Castelo, haviam várias famílias vivendo ao longo do Rio Gurerema e do riacho que corta o nosso terreno. Uma das famílias era aquela, composta de apenas três membros. Um velho lenhador de nome Cipriano, a sua mulher Dona Maria de Fátima e o filho do casal que recebeu o nome de Sebastião, porém ainda não era batizado.

 

     Uma das versões daquele causo iniciou-se em torno do menino Sebastião que era um garotinho sonhador de apenas 7 anos que queria ser Doutor. Este vivia dizendo aos pais que um dia iria para a cidade grande estudar pra ser um médico veterinário. Era essa a formação de um dos mais antigos e fiéis clientes de seu pai, o velho Cipriano que sobrevivia da produção artesanal de carvão vegetal a qual vendia para Senhor Simplício Ferreira, o médico veterinário da região, que sempre que via o menino Sebastião com o pai, dava-lhes umas gorjetas para comprar doces enquanto piscava-lhes o olho dizendo. 

 

___Vê lá menino! Você precisa ir à escola.

 

     Mas morando tão longe de tudo, a escola foi só um sonho para Sebastião, que nem chegou a frequentar uma, pois, aos sete anos ficou muito doente e a sua mãe, sem atinar com o que o filho estava sentindo, dava-lhes todos os tipos de chás que lhe ensinavam, mas o garoto ficava cada vez mais fraco e pálido. Numa noite de lua minguante piorou e não abriu mais os olhos para ver a claridade do dia. Seus pais muito tristes, sem conhecimentos e sem recursos para tratar dos trâmites para o enterro, decidiram fazer o sepultamento ali mesmo ao lado do pé de sete cascas. E assim o fizeram.

 

     Alguns anos mais tarde a Dona Maria de Fátima, que se tornara a única companhia e ajudante do velho carvoeiro, também sucumbiu à vida difícil. Não se sabe se devido à tristeza ou à própria lida com a feitura do carvão, adoeceu dos pulmões e logo veio a falecer. O Senhor Cipriano, sem fazer alarde, cavou a cova da esposa e a enterrou ao lado do filho de ambos. E desde então as pessoas que passavam na frente daquela propriedade diziam vê-lo sentado, a qualquer hora do dia ou da noite, embaixo do pé de sete cascas. O olhar fixo, vigilante, virado para os dois montes de pedras que circundavam as duas cruzes. Uma maior e outra menor.

 

     Pouco tempo depois o velho carvoeiro sumiu. Uns disseram que enlouqueceu e se perdeu na Mata Atlântica, densa e misteriosa. Outros acreditavam que ele fez um tipo de túmulo e ali se recolheu para morrer. Mas de fato ninguém viu nem teve mais notícias do velho Cipriano!

 

     O que se sabe é que ele e sua pequena família foram vistos, em várias ocasiões e por diferentes viajantes, entrando no tronco do gigante pé de sete cascas. Em seguida desaparecendo completamente como se fossem névoas que se dissipam.

 

     Ao final desse relato curioso, não havia um só ouvinte que não estivesse todo arrepiado. Incluindo o próprio contador do causo.

 

     E eu, após conhecer esta versão da suposta história por trás das misteriosas assombrações, senti no ar um cheiro inconfundível de flores usadas em velórios misturado ao odor da fumaça de um cigarro de palha e, ao longe quase pude ouvir o som agradável das risadas de uma criança brincando de esconde-esconde junto ao murmurejar das água do riacho...

 

    Mas bem poderia ser a minha imaginação pregando peças...

     Afinal, é quase impossível não se impregnar de crenças e sensações ouvindo histórias como esta, tão cheia de emoção e misticismo...

 

 

Adriribeiro/@adri.poesias

 

 

 

 

Adriribeiro
Enviado por Adriribeiro em 10/01/2022
Reeditado em 27/01/2022
Código do texto: T7426141
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