VESTIU AMARELO, ACERTOU A MEGA DA VIRADA MAS MORREU ANTES DO RÉVEILLON.

Dia trinta e um de dezembro, dezenove horas. O mundo as portas da chegada do ano novo. Adeus dois mil e vinte e um, feliz dois mil e vinte e dois. Os supermercados abarrotados. Os shoppings lotados O show da virada na tevê. O barulho dos primeiros fogos, tormento para os cães. O aroma delicioso de pernil assado e antepasto de berinjela inundava a casa. Roberval, de cinquenta e seis anos, com a cervejinha na mão, conferiu a champanhe na geladeira. A romã, em destaque junto de outras frutas, na bandeja sobre a mesa com a toalha de natal. O pisca pisca ligado. O presépio. A árvore majestosa. A revelação do amigo secreto. A troca de presentes. A casa cheia de gente. -"Estamos todos de amarelo, a família toda. Essa mega da virada tem que ser nossa. Sonhei com isso." Roberval pagava aluguel há vinte anos, na mesma casa verde de esquina, na rua das Azaléias. Roberval pintou a casa de amarelo ouro, por dentro e por fora. Exultou ao saber do prêmio de trezentos e cinquenta milhões da mega sena da virada. -"Sinto que Deus vai nos ajudar. Vamos fazer a novena da vitória." Roberval entrou em vários bolões, da empresa e de vizinhos. Através do amigo Cássio, bombeiro da cidade, conseguiu participar do bolão do Corpo de Bombeiros. -"Ano passado ganharam. Eu tenho que participar do bolão dos caras. Algo me diz que esse ano será da minha sorte, vou mudar de vida." O sobrinho Carlos estava eufórico. -"Tio Roberval, nosso bolão da família nunca esteve tão gordo. Quarenta cotas de trezentos reais cada, vamos ganhar... fiz tudo no computador." Roberval abraçou o sobrinho. -"Gosto assim, pensamento positivo. Dinheiro atrai dinheiro. Vamos comer romã, lentilhas pois parecem moedas, só carne de porco pois fuça pra frente. Estou de meias e cueca amarela, tudo amarelo pra atrair dinheiro. Esse será o ano da mudança de patamar da nossa família, se Deus quiser e Ele quer." Desde abril que Carlos e Roberval começaram a organizar o bolão da família Silva. -"Trezentos cada um? Isso é muito dinheiro, Roberval! Com o preço da gasolina, do gás, da carne lá nas alturas. Não vou entrar no bolão. Tô fora." Roberval abraçou a tia Zulmira. -"A senhora paga trinta por mês. Não precisa pagar de uma vez. Vindo pra cá, pisei em um cocô de cachorro. Significa sorte." A senhora sorriu. -"Verdade. Eu vou entrar pois sinto que vamos ganhar dessa vez. " Dona Zulmira pegou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. -"Vou fazer um manto amarelo pra vestir a santa, no dia que começarem as apostas da mega sena da virada, meu filho. Vamos orar e crer." Roberval se emocionou nesse dia. Dezembro. Acompanhando as notícias no site da Caixa, Roberval vibrou ao saber do início das apostas do sorteio do prêmio milionário. -"Trezentos e cinquenta? Caraca, é muito dinheiro. Vou poder rodar o mundo num cruzeiro, Dubai, as pirâmides do Egito, a terra santa." O interfone. A tia no portão. Roberval e a esposa ajoelharam diante da santa. -"Que linda. Parabéns, tia Zulmira." A foto da família, Roberval com a santa, de manto amarelo, nas redes sociais. -"Sonhei que não vão sortear as dezenas de um a dez, nem de cinquenta a sessenta. Teremos poucos ganhadores por isso." Roberval duvidou da tia. -"Será, tia? Não sei não. Isso derrubaria quantidade grande de apostas." A senhora colocou a imagem no aparador da casa do sobrinho. Última semana de dezembro. Roberval chegou do trabalho. -"Só trabalho depois ano que vem. Melhor dizendo, não vou mais trabalhar pois sinto que vamos arrebentar a boca do balão." Volantes da mega sena nas mãos. -"Sobrou um dinheirinho da segunda parcela do décimo terceiro. Farei dez joguinhos amanhã cedo, naquela lotérica pé quente da avenida Monte Castelo. A tia Zulmira disse que sonhou que, entre as dezenas sorteadas da mega, não teriam dezenas de um a dez, nem de cinquenta a sessenta." A esposa veio da cozinha. -"E você vai fazer cartelas sem essas dezenas? Boa idéia." A filha Maria Rita chegou com o esposo e os dois filhos. Roberval interrompeu a marcação das apostas e deu atenção aos netos. Pedro Henrique, de três anos, pegou um dos volantes. O garoto deixou o cartão todo riscado. -"Filho, está atrapalhando o vovô." Renato pegou o filho no colo e o levou pra sala. O garoto ficou olhando a imagem da santa. -"O vestido dela é azul." Todos riram. Roberval foi pra sala. -"A partir de hoje a santa estará de amarelo, Pedrinho. Olha, vou ensinar a preencher o volante. Faça seis bolinhas nesses quadrinhos, de um a sessenta. Só seis bolinhas." O garoto viu uma bola e quis brincar com ela. Roberval deixou o volante e a caneta no tapete. Tempo depois, a família no alpendre, em volta da mesa com café e pães de queijo. As resenhas. As risadas. Pedro Henrique correu pra sala e marcou seis dezenas no volante. O garoto colocou a cartela aos pés da santa. -"Beijo, santinha." A esposa de Roberval, horas depois, após os familiares irem embora, ela encontrou o volante. -"Roberval deixou esse volante aqui. Vou guardar sob o manto de Nossa Senhora." O dia trinta e um chegou. Os preparativos pra ceia. No intervalo do Jornal Nacional, o sorteio tão esperado. Roberval ansioso. Tia Zulmira, a senhora de setenta janeiros, esperançosa e confiante. A maioria das pessoas vestidas de amarelo. -"Silêncio, turma. Vai começar o sorteio. Dezembro é mês doze. Vão sortear o doze. A idade de Cristo também vai sair." Profetizou a sobrinha Fernanda. Roberval ergueu o volume da tevê. Os globos com as sessenta bolinhas girando. As assistentes de palco. O representante da Caixa Econômica Federal. O ator global sorridente. -"Vai começar o sorteio da mega sena da virada de 2021. Pra começar o ano novo milionário, quem sabe. Vamos ao sorteio que não acumula, são trezentos e cinquenta milhões de reais. Boa sorte..." Roberval abraçou a esposa. As pessoas de mãos dadas. Tia Zulmira pegou a imagem da santa nas mãos. Ela ficou de pé no meio da sala. -"Dezenas sorteadas: doze." Fernanda socou o ar. -"Eu falei que sorteariam o doze." As outras dezenas, o quinze, o vinte e três. -"Vem a idade de Cristo agora." Disse Fernanda. Sorteada a dezena trinta e dois. Em seguida, a trinta e três. Roberval olhou para a tia, segurando a santa. -"A tia estava certa. Começou no doze pode terminar sem dezenas do cinquenta ao sessenta." Pensou o homem de amarelo da cabeça aos pés. Última dezena, quarenta e seis. Carlos, com os jogos do bolão na tela do celular, já sabia que não tinham ganho nada. -"O aplicativo já conferiu. Não fizemos nenhuma quadra. Deu água, tio Roberval. Desolada, tia Zulmira sentou-se no sofá. Acariciando o tecido macio, um papel caiu no chão. Roberval pegou o volante. -"Tia Zulmira, a senhora marcou as seis dezenas aqui?" A mulher nada entendeu. -"Não. Nem caneta eu tenho. Esse volante estava dentro do manto." A esposa de Roberval arregalou os olhos. Pedro Henrique pegou o volante das mãos do avô. -"São minhas bolinhas. Marquei as seis bolinhas para o vô mas não foi agora." Roberval estava sem reação. -"Eu não fiz esse volante? Me lembro de pedir para o Pedrinho marcar mas não peguei o cartão. Não fiz esse jogo." Roberval olhou para o netinho. -"Pessoal. O Pedrinho marcou as seis dezenas sorteadas. " Carlos foi direto. -"Exatamente. Não fizemos o jogo, não adianta nada agora." A esposa de Roberval desmaiou. Tia Zulmira sentiu a pressão subir e foi levada as pressas para o pronto socorro. A família preocupada. Os comentários. Os vizinhos curiosos. Tia Zulmira voltou bem do hospital. A notícia de que Roberval teve os números sorteados e não fez a aposta se espalhou. Ele ficou sentado no tapete da sala, olhando fixamente para o cartão do neto. Fernanda deu água com açúcar para o homem beber. Roberval começou a tremer. Dez minutos para a meia noite. -"Não acredito nisso." Roberval estava inconsolável. A família na rua, vendo a queima de fogos. -"Nossa Senhora..." Ele pôs as mãos no peito. Foram as últimas palavras dele, antes de um infarto fulminante. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 09/01/2022
Reeditado em 09/01/2022
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