O RÉVEILLON DA CONDESSA MONTSSERRAT.

-"Quer ganhar uma grana extra na virada do ano?" Renata olhou para a prima. -"Com certeza. Não tenho dinheiro nem pra fazer um joguinho na mega sena da virada! A coisa tá osso, prima." Samantha foi direta. -"No meu trabalho, a Alexandra ficou doente. Há uma vaga de auxiliar de cozinha, se quiser é sua." Renata deu uma gargalhada. -"Trabalhar com você, na casa da velha louca? Nem por todo o dinheiro do mundo." Samantha, cuidadora de idosos, insistiu. -"Quatro dias apenas, oitocentos reais na sua mão. Ah, e você come no trabalho, nada de levar marmitão no busão." Renata pensou por um instante. -"Boa grana. Pela grana eu vou. Contato com a velha louca, a condessa?" A moça estava quase aceitando a oferta. -"Quase nenhum. Vai trabalhar doze horas, na cozinha. A condessa Montsserrat vai pouco no local, prefere ficar na sala ou seu quarto." Explicou Samantha. -"Não faça esse olhar do Gato de Botas! Eu aceito. Olha, seis da tarde eu vazo daquele hospício, não durmo lá nem que a vaca tussa. Estou avisando." Samantha se deu por satisfeita. -"Tranquilo, prima. Vai trabalhar do dia vinte e oito até a tarde do réveillon, dia trinta e um. Vou ligar para o sobrinho da condessa. Ele fará um pix e daqui a pouco o seu dinheiro estará na sua mão." Tempo depois, Samantha conversava com Philip, sobrinho da condessa Montsserrat. -"Sou eu, Samantha. Senhor Philip, consegui alguém para a semana . Minha prima é de confiança, garanto. Pode fazer o pagamento." Philip estava aliviado. -"Dois dias de anúncios e poucos candidatos. Nem vou entrevistar sua prima, então. A vaga é dela. Grato, senhorita Samantha." A moça suspirou. -"Graças a Deus. Que hora pra Alê ficar doente? Na época que a condessa dá mais trabalho. Que Deus nos proteja das sandices da velha rica." O fim do mês de dezembro se aproximando. Renata desceu do ônibus. -"Rua das Bromélias, 2.450. É aqui." Um muro alto. Bairro nobre. Portão alto. Ela tocou a campainha. -"Bom dia. Quem é e o que deseja?" A moça quase gritou. -"Ora, sou eu. A nova auxiliar de cozinha, prima da Samantha." A voz masculino no interfone. -"A criadagem deve entrar pelo portão dos fundos, por favor. Não pise na grama." A moça deu a volta na quadra. -"Pai do céu, essa casa pega o quarteirão todo!" O mordomo a recebeu. -"Bom dia. Sou Francisco, o mordomo. Aqui está o livro de regras. Qualquer dano causado terá de ser ressarcido por sua senhoria. Respeite horários e não discuta, nada de gírias ou fones de ouvido. Celular desligado, enquanto estiver na residência da condessa. Seu uniforme será entregue pela governanta, senhora Helena. Alguma dúvida?" Renata suspirou. -"Posso soltar gases na cozinha ou terei que soltar no jardim?" Sorriu irônica. O mordomo Francisco ficou sério. -"Prenda, se estiver na cozinha. Jamais conhecerá o jardim, visto que seu posto é a cozinha. Bom dia." A governanta Helena recebeu a moça. Era menos formal que o mordomo Francisco mas igualmente séria. -"Norma é a cozinheira. Faça apenas o que ela pedir. Seu uniforme. Bom trabalho, senhora Renata." A cozinha era grande. Móveis brilhando, novos. A cozinheira estava fazendo café. Renata a cumprimentou. Norma foi breve. -"Bom dia. Vamos trabalhar, moça." A casa era luxuosa e grande. Norma ia constantemente a copa, onde conversava com a governanta. As duas falavam baixinho, gesticulando muito. Renata tinha muito trabalho. A governanta, no segundo dia, deixou sobre a mesa da cozinha a lista de preparativos para a ceia de réveillon da condessa. Renata leu a lista. -"Pai amado. Tem comida pra alimentar um batalhão do exército e sobra comida." A cozinheira sorriu. -"De fato. A condessa é sozinha, o sobrinho passa por aqui apenas. Essa comida vai toda pro lixo.. Há três freezers abarrotados de comida, na despensa. Até os anos 2000, essa casa tinha festas homericas por dias seguidos." Renata leu a lista em voz alta. -"Pra que essa mulher quer dois perus, dois chesters, três frangos inteiros assados, faisão. Essa ave existe ainda? Continuando, uma leitoa na pururuca, profiteroles que não sei o que é, amêndoas, seis panetones, salpicão, cordeiro, arroz a grega, salada de frutas, três tenders, dois manjares de côco, rabanadas, duas caixas de vinho francês, sete garrafas de champanhe, seis espumantes, suco de laranja são dez litros, refrigerante para as crianças, bombons finos, bolo de reis, bolo de maçã e canela, bolo de nozes, antepasto de berinjela, vitela ao molho madeira, três potes de dez litros de sorvete, dois pavês de chocolate branco, duas tortas holandesas, um bolo de pêra com baba de moça? Babando estou eu, lendo tudo isso. Nem o rei Salomão tinha um banquete desses." O mordomo entrou na cozinha e tirou uma foto da lista. -"Vou dar a lista ao Jarbas, o motorista. Ele vai ao hipermercado com o cartão do senhor Philip." Renata estava boquiaberta. -"A gente vai preparar tudo aquilo? Pra uma pessoa só, que só belisca a comida?" Samantha entrou na cozinha. -"Oi, prima. Vim pegar água sem gás." Renata abraçou a prima. -"Só hoje te vi. Essa casa é uma prisão." Samantha se soltou da outra. -"A condessa está agitada. O doutor Fritz está vindo. O réveillon vai chegando e ela fica ansiosa." A cozinheira continuou seus afazeres. Renata ficou imóvel, vendo a prima se retirar. -"Sem ver a louca, já estou nervosa. Pai amado, que dê tudo certo até depois de amanhã." O interfone. Duas costureiras e dois maquiadores entraram pela cozinha, seguidos pelo mordomo. -"A condessa manda fazer dois vestidos pra virada de ano. É tradição. Quer testar a maquiagem antes da festa. Ela vive no passado e pensa que virão muitas pessoas pra festa dela. Vive nas nuvens, tadinha." Disse a cozinheira, já mais a vontade com Renata. -" Tadinho é filhote de rato que nasce pelado. Dois vestidos? Ela não sai de casa e manda fazer dois vestidos? Não vêm ninguém pra casa e ela contrata dois maquiadores? Isso é que é jogar dinheiro fora. Ela tem, ela pode. É podre de rica a velhota. Eu, malemá passo um esmalte nas unhas, uma massa corrida na cara." No terceiro dia, as geladeiras da cozinha estavam sem espaço pra tanta comida. Renata e a cozinheira foram pururucar a leitoa no quintal, por causa do espaço. O mordomo Francisco assistia a cena. -"Cavalheirismo zero. O mordomo cara de boneco de Olinda poderia nos ajudar. Esse tacho de óleo é um perigo." Samantha entrou na cozinha. -"A condessa espera a mulher da relojoaria. Deveria estar aqui as três." A governanta olhou o relógio. -"Vou ligar pra ela. Duas tiaras e um colar de pérolas. A condessa ficará linda." Renata segurou o riso. -"Setenta e seis anos. Vai ficar linda de tiara da Lady Diana. Essa condessa está fazendo hora extra no mundo." Manhã do dia trinta e um. O casarão da condessa de Montsserrat estava agitado, com entregadores de floriculturas e supermercados. As outras duas empregadas preocupadas em deixar tudo limpo. Renata com os braços doendo, de tanto ajudar no preparo de pratos e lavar tanta louça. -" O vinho das rabanadas?! A condessa gosta de Cabernet nas rabanadas. Renata, tome a chave da adega. Busque uma garrafa de Cabernet." A moça ficou sem graça. -"A governanta Helena já foi embora? São quatro horas ainda." Renata saiu da cozinha. Philip estava na sala de estar, ao celular. -"Mamãe está senil. Vamos dar um jeito, meu caro. Não posso internar num asilo, seria doloroso. Logo ela baterá as botas." Renata seguia para a adega. -"Pai amado, esses ricos são estranhos." Ela abriu a porta e desceu as escadas. Era escuro e frio lá embaixo. Ela acendeu a luz. -"Quanta garrafa!" Do chão ao teto milhares de garrafas de vinho, tudo etiquetado. -"Letra C. Criquot. Champanhe. Costa Brava. Cabernet. Achei." A moça voltava pra cozinha. -"Seu lugar não é na adega, moça. Não deve deixar a copa." Renata se assustou ao ver Philip. -"Me perdoe. A governanta e o mordomo se foram. As rabanadas não podem ficar sem Cabernet." Philip sorriu. -"De fato. Pode ir embora as dezoito. Mamãe gosta de passar o réveillon sozinha. Sua prima já foi embora, após dar a injeção na mamãe." Renata sorriu. -"Certo. Feliz ano novo." Philip não respondeu. Rabanadas prontas, a cozinheira levou a bandeja até a mesa de jantar. -"Vou indo, Renata. Feliz ano novo. Obrigada pela ajuda." A moça abraçou a mulher. -"Você é uma guerreira, faz pratos maravilhosos.. Feliz ano novo." As duas mulheres saíram do casarão. -"Meu celular. Esqueci na cozinha." Norma acenou para um táxi. -"Volte e tranque o portão. Deixa minhas chaves com a Samantha. Tchau." Renata voltou. A porta da cozinha. Ela viu Philip e o motorista Jarbas no jardim, ao lado do Rollis Royce. A chave da adega sobre a mesa. -"Se eu levar uma garrafa não sentirão falta." Ela seguiu para a adega. Uma pancada na sua nuca. A moça caiu, inconsciente. Já era noite quando Renata recobrou a consciência. Um galo na cabeça. Ela ouviu passos e se escondeu atrás de um sofá. Cobriu-se de almofadas. Alguém descia as escadas. Renata viu uma mulher descendo. -"Quem? Não acredito, é a condessa só que mais jovem? Está linda igual a Branca de Neve." A mulher colocou um disco na vitrola. O som de uma sinfonia de Mozart encheu o ambiente. -"A mulher parou em frente a mesa de guloseimas. Ela espetou a faca no leitão a pururuca." As mãos para o alto. -"Amigos. Venham cear comigo. Demônios, anjos, gnomos, bruxas, ogros, lobisomens, elfos, vampiros, eu vos invoco." Os raios. A chuva começou. Renata arrepiada e aterrorizada. -"Caramba. A velha vai se transformar no Mun-Rah." Renata espiou. O salão estava cheio de criaturas horripilantes. A condessa levitava. -" Tem alguém aqui, condessa Montsserrat. Está atrás do sofá. Sinto cheiro de sangue fresco." Disse uma das bruxas. Renata tinha sido descoberta. Os trovões. Um vampiro saltou sobre ela. O ser das trevas a agarrou e preparou as presas para morder seu pescoço. Renata gritou. Um policial a cobriu com seus jaqueta. Renata foi algemada e levada pra fora da casa. Samantha correu e ficou ao lado dela. Os fotógrafos e suas câmeras procurando o melhor ângulo pra foto da assassina da condessa Montsserrat. Os curiosos. -"Prima, monstro." Renata estava vendo embaçado e, grogue, não sentiu o tapa de Samantha. Um filete de sangue saía de sua cabeça. Norma e o mordomo Francisco choravam. O motorista Jarbas a xingou. A governanta Helena soluçava, triste pela morte da condessa. Philip estava sentado na escada, desolado. Os policiais a viraram e Renata viu o cadáver da condessa Montsserrat boiando na piscina. Uma poça de sangue. -"Se trancou na adega e tomou três garrafas de vinho a fim de ter um álibi. A arma em sua mão a incrimina. Renata, está presa pela morte da condessa." Disse o delegado Wendel. Philip era o único herdeiro direto da fortuna de quinhentos e noventa milhões da condessa. Renata, com uma dor de cabeça forte, "curtiu" cinco dias na prisão. O delegado ouviu todos os empregados e prestadores de serviço que estiveram na mansão naqueles dias. Médicos e advogados da condessa foram ouvidos. As provas com os peritos. As imagens das câmeras de segurança analisadas. Compassiva e arrependida, Samantha visitou Renata. -" Não fui eu que matou a velha. Tomei um golpe na cabeça e desmaiei. Me lembro da festa no salão mas acho que foi sonho. Parecia série de monstros da Netflix. Nunca atirei na vida e pra que ia fazer isso? Mataram a louca, quer dizer, a coitada da condessa e plantaram a arma na minha mão." Samantha conversou de novo com o delegado. -"Ela fez isso? Alguém sabe disso?" O delegado chamou um de seus investigadores. -"Vamos a casa da condessa. Garrafa 263 da adega. Lá está o que precisamos." Samantha lembrou que a condessa lhe disse, em segredo, que mudaria seu testamento: -"Garrafa 263, se algo me acontecer. Não confio no advogado que Philip me arrumou. Não vivo fora da realidade e não sou louca como pensam. Sou generosa para com aqueles que me servem e me tratam bem. Você disse que sua prima está na cozinha, quero conhecê-la qualquer dia." O delegado estava curioso. -"Alguém mais soube que ela mudou o testamento, por isso o quarto da condessa foi revirado. Certamente a condessa revelou sob efeito de medicamentos. O assassino a forçou a escrever outro testamento mas a condessa declinou. Furioso, ele descarregou o revólver na nobre condessa Montsserrat." O delegado ligou para Philip. O sobrinho da condessa entrou na casa, acompanhado dos policiais. -" Vi a senhora Renata saindo da adega. Tomara a chave do mistério esteja lá." Disse Philip. O delegado puxou a garrafa 263. A garrafa de vinho chileno. -" Ela adorava o Chile." Philip enfiou a mão no receptáculo da adega. Um papel pardo saiu com sua mão. A letra da condessa. A assinatura. A data recente. A descrição dos bens. Philip torceu o lenço e socou a parede. -" Filha da puta." Ele correu para o escritório. Os policiais atrás dele. Philip pegou um cartão. O delegado acariciou os ombros do sobrinho da condessa. -"É o fim." As viaturas saíram da mansão. O delegado convocou a imprensa. Renata foi libertada e abraçou Samantha ao sair da delegacia. As lentes dos fotógrafos no rosto da mulher algemada. A governanta Helena foi presa no aeroporto. -"Helena era governanta e enfermeira da condessa de Montsserrat há décadas. Sabendo que a condessa queria mudar o testamento e deixar valores aos empregados, Helena passou a ministrar altas doses de calmantes e antidepressivos a velha senhora. Fingindo engolir os comprimidos, a condessa também fingia dormir e escutou Helena descarregar ofensas e ameaças a vida dela. Helena foi destituída, pela condessa, da função de enfermeira e cuidadora, passando a ser apenas governanta. Com um altíssimo salário, a condessa não via razão de colocar a governanta no testamento. De todos da mansão, Helena era a única que tinha curso e posse de armas. Helena matou a condessa Montsserrat." Explicou o delegado. Helena gritou. -"Sim, eu me livrei dela. Aquela velha não era desse mundo, ela levitava a noite." Philip, num canto da sala da delegacia, sorria com o canto dos lábios, discordando com a a cabeça. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 02/01/2022
Reeditado em 02/01/2022
Código do texto: T7420282
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