OS FANTASMAS DO ANO NOVO.
Dia 31 de dezembro. Último dia do ano. A chuva fina no final da tarde. Herbert pisou no freio. -"Que merda. Cadê os freios?" A namorada ao seu lado se desesperou. -"Pqp... Herbert. Você não fez a revisão?" Uma carreta a frente. O rapaz virou o volante. -"Pai nosso que estais no céu.... vamos morrer." O rapaz suando frio. O terço pendurado no espelho passou a ser o item mais importante naquele momento. Letícia puxou o terço. Agarrou com força contra o peito. O casal ia pra Araçatuba, onde passaria o réveillon na casa de parentes. O carro, em alta velocidade, se desviou da carreta. Outro veículo vinha de frente. Herbert entrou no acostamento. Uma estradinha de terra. -"Tem um rio alí. Será nossa salvação." Uma manobra arriscada. O carro saiu da pista e entrou na estrada esburacada. Quinhentos metros de uma corrida desenfreada, literalmente. O carro passando veloz entre matagal e árvores. Os solavancos. Uma curva antes do rio. Um barranco. Herbert virou o carro, que deslizou e caiu no riacho. -"Quando cair na água, abra a porta, amor!" Gritou o rapaz. O casal saiu da água. -"Letícia." Eles se abraçaram. A moça estava pálida, tremendo. Herbert tirou a jaqueta e cobriu a moça. Ela sorriu. Os dois ficaram um tempo sentados no barranco. A noite estendeu seu véu e logo escureceu. Dois homens vieram ao encontro deles. -"Boa noite. Vocês estão bem?" Herbert estava aliviado. -"Nosso carro. Perdeu os freios e caiu no riacho. Estamos bem." Herbert olhou o carro, quase coberto totalmente pela água. Não demorou e o veículo afundou por completo. -"O rio não é fundo, uns cinco metros. Tiveram sorte." Disse um dos homens. -"Sou Agnaldo. Esse é meu primo, Darci. Moramos aqui na fazenda." Outras pessoas se aproximaram. Agnaldo contou o ocorrido às demais pessoas. -"Vamos pra fazenda, Agnaldo. Vamos cuidar dos jovens." Disse Lucinda, esposa de Agnaldo. Herbert e Letícia seguiram aquelas pessoas. O casarão branco, de janelas azuis, surgiu a frente deles. O terreiro ao lado da casa grande. Um grupo de músicos ensaiando no amplo salão de festas. Uma árvore de natal num canto, alta e majestosa. Uma mesa de madeira com trinta lugares. Os castiçais. As pratarias. Candelabros. A porcelana chinesa. O lustre lindo pendia do teto de mogno. Os garçons atarefados. Um casal desceu as escadarias do piso superior. Alguns convidados ricamente vestidos. -"É uma gravação de novela das seis? É um sonho." Letícia estava boquiaberta. -"Senhor Herbert, senhorita Letícia. O rei do café, senhor Raulino Miranda Couto e sua esposa, a digníssima senhora Ester Miranda Couto." Disse Agnaldo, se curvando. -"Boa noite, amigos. Celebremos com alegria e gratidão o último dia do ano. Temos convidados, Agnaldo?" Perguntou Raulino. Agnaldo apresentou os jovens. -"Sim, meu senhor. O veículo deles caiu no rio. Serão nossos hóspedes." Dona Ester encarou Letícia. -"Que honra termos hóspedes. Cuide para que se banhem. Dê-lhes roupas secas, Agnaldo. Que moça encantadora." Raulino cochichou pra esposa. -"Sim. Ela se parece muito com nossa filha, Anita. Que Deus a tenha." Agnaldo chamou duas empregadas. O casal foi conduzido para um quarto de hóspedes. Herbert recebeu roupas novas e secas. Letícia estava se enxugando quando Ester surgiu. -"Perdão. Não quis assustar. Tão linda, senhorita. Poderia usar esse vestido azul? Era de Anita." Letícia sorriu. -"Que lindo. Parece um vestido de princesa. Usarei com certeza." Herbert e Agnaldo estavam no salão quando Letícia e Ester desceram as escadas. Os quase quarenta convidados olharam na direção delas. -*Letícia? Está deslumbrante." Herbert estava encantado. A moça usava uma tiara cravejada de diamantes. As luvas de seda. O vestido bordado. Um decote generoso. Herbert começou a aplaudir. Os convidados o imitaram. A valsa vienense. Os casais indo para o salão. A mesa sendo abastecida com perus e outros assados. Dois empregados trouxeram uma grande bandeja com um porco assado inteiro. Herbert prendeu o riso ao ver o porco assado com uma maçã na boca. As mesas laterais com frutas e guloseimas. Letícia foi ao encontro do namorado. Herbert estendeu a mão. Um rapaz se colocou entre eles. -"Me conceda a primeira dança, Anita?" Herbert empurrou o rapaz. Agnaldo o segurou. -"A tradição, meu jovem. A primeira dança é de Eduardo, filho do coronel Raulino." Herbert ajeitou o terno. -"Está certo. O nome dela é Letícia, almofadinha." Os casais abriram espaço. Eduardo conduziu Letícia para o meio do salão. Nervoso, Herbert comeu uma maçã. Letícia parecia atraída pelo rapaz de olhos de esmeralda, alto e atlético. O coronel e a esposa se olharam, orgulhosos. Eduardo e Letícia valsando. O rapaz colava o seu rosto no dela, cochichando galanteios. Herbert, a contragosto, foi puxado por uma mulher. -"Vamos dançar, rapaz." Tempo depois, o coronel fez um discurso e abriu o jantar. Herbert estava sentado ao lado de Letícia. Eduardo do outro lado dela. O coronel na ponta da grande mesa. -"Não gosto desse aí, Letícia. Ele parece te comer com os olhos." A moça pousou o guardanapo nos joelhos. -"Tudo vai dar certo, amor. Você estará sempre no meu coração. Saímos do rio, fomos encontrados. Curta o momento e essa comida deliciosa." Herbert se ajeitou na cadeira. -"Está bem. Você manda, obedeço. De fato, essa festa é um luxo, muito glamour. Que carne deliciosa." Agnaldo, a frente deles, interrompeu. -"Nossos porcos são exportados, sabia? Nosso gado é premiado. Tudo na fazenda é bom. " A contagem regressiva. Os convidados no terreiro. Os fogos de artifício. Herbert e Letícia abraçados. -"Feliz ano novo, meu amor." O casal se beijou. Eduardo se remoendo de ciúmes. Os abraços calorosos. Os votos de feliz ano novo. Um grande bolo foi cortado. O champanhe servido. Os convidados blindando o novo ano. Herbert bocejou. Agnaldo e o coronel se aproximaram. -"Perdão. Tiveram um acidente e suspeito que querem descansar, recobrar as forças." Disse o coronel. Ester e uma empregada conduziram o casal aos seus aposentos. -"Boa noite. Descansem." O coronel se juntou a esposa e ao filho. -"Pijamas limpos e lindos. Que acolhida perfeita, Herbert. Eu poderia viver aqui pra sempre." Letícia o abraçou. -"Eu também mas temos que ir pra Araçatuba. Estão nos esperando. Araçatuba?" Herbert abriu os olhos. As luvas no seu rosto. Luzes fortes. Homens de branco. Os aparelhos da UTI. -"O choque. Abram o peito. Choque, rápido." O corpo do rapaz quase sem vida. Herbert fora do corpo, vendo a luta dos paramédicos em salvar sua vida. -"Perdemos, doutor. Já foi pro saco." Herbert gritou. -"Não desista, doutor. Não quero partir." Outra sessão de choques. Os batimentos do coração do rapaz voltaram. O médico olhou para a máquina com alívio. A equipe médica comemorou. Herbert saiu do coma três dias depois. A visita dos parentes ao hospital de Araçatuba. Ele teve alta e só então soube que Letícia tinha morrido afogada. O primo Natanael o trouxe pra casa, na capital, numa manhã de sábado. A mesma pista, agora em sentido contrário. -"Vai devagar, primo. Pare aqui pois quero visitar o coronel e o casarão." O local do acidente. Herbert pediu para o primo entrar na estrada de terra. O barranco. O riacho a frente deles. Um pescador a vinte metros deles. -"O senhor é aquele rapaz do acidente do ano novo? O Zeca pulou no rio e eu chamei o socorro." Herbert e Natanael ouviram o relato do pescador. -"A moça saiu sem vida. Uma pena." Herbert correu. O primo foi atrás. As ruínas de um casarão. -"A fazenda do coronel Raulino. É de 1850, moço." Disse o pescador, cansado, se juntando a eles. Herbert olhou em volta. Um pequeno cemitério. -"Os descendentes da família do coronel, que moram na Europa, cuidam bem do cemitério, tá tudo conservado." Herbert viu a foto de Anita, na lápide de mármore de um túmulo. -"Meu Deus. É igualzinha a Letícia." Herbert se arrepiou inteiro. O pescador tirou o chapéu e se benzeu. -"Dizem que essa moça morreu afogada no rio, numa noite de dia 31 de dezembro. O noivo, Eduardo, tentou salvar a menina mais era tarde. Ele se matou, dias depois." FIM