Azar de família
Nessas correrias estrepólicas que dou, de vez em quando, dentro de casa, acabo percebendo algumas coisas que não podem - ou não deveriam - ser percebidas: um estranho num cantinho, uma voz desconhecida, um frio estagnado... No fundo eu sei o que são essas coisas, mas prefiro me valer da suposta desimportância dessas coisas que viram imaginação ou mera visagens. Não sou besta de me endoidar - pra quê? Se tiver mesmo fantasmas por aqui, que poderei fazer? Como pensei, é apenas impressão. É mais confortável voltar o foco aos trupelos, ao copo d'água, à tomada de fôlego, à ligeira volta ao terreirinho; mais vale a alegria das brincadeiras.
Ingênua ela.
Mas a mana, tem hora, é meio doida. Tá sorrindo, descansando, e para, assustada, olhando pro quarto ou pra outro canto. Tem hora que, de repente, fica procurando o nada e vem perguntar o que disse - sem ter dito nada! E ela me vem chamar de doidinho, eu!?
Não sei se é certo... Ele tem quantos? Fez nem dez anos direito, e o juízo ele deixou na poça, na vez que caiu e deu aquele trabalho pra gente tirar... sem falar que ficamos teeeeempo procurando ele, o grito abafado, quem achava rápido? Doidinho ele. Mas sei que ele entende, se eu falar; é só dizer com jeitinho. Criança tem medo disso, não? Eu falo como se fosse algo assim, besta, que nem eu mesmo faço. Só pra confirmar, pior coisa é a gente se dar por doido antes mesmo dos outros.
- Ei, te aquieta, quero perguntar um negócio.
- Diz, quero a bola!
- Depois, olha, prest'enção, é importante. Promete que não vai falar pra mainha? - recebeu um sim com a cabeça - Nem me chamar de doida? - recebeu uma risada, mas, com cara fechada feita, foi e recebeu um sim, de novo - Olha, né nada sério, é só pra ver se sou eu que tô vendo coisa, tá? Não teve quando tu disse que eu fiquei com o olho quase pra fora, visando a janela? E quando tu disse que meu anjo falava demais?
- Sim, que-que tem?
- Pois é, não ri, hein? Naquela vez eu vi um cabeça-branca, do lado de fora, me encarando. E da outra vez ouvi tipo uma mulher falando um monte, mas não entendi direito, achei que fosse alguém chamando...
- Hum...
- Tá, mas não é pra ficar pensando nisso não, tá? Foi só pra saber se era só eu mesmo. Aconteceu parecido?
E ele pensou.
- Olha, foi num tempinho, já. Eu me levantei de noitinha, tu já tava até mole de sono, mas eu queria fazer xixi, né, acabei indo só, fui pra cá e, quando voltei, vi um homem réi de barba indo pro quarto da mãe. Quando cheguei lá, ele não tava, mas mamãe tava toda suada e estranha, acordei ela e deu naquele dia que ela passou mal.
- Ah, eu me lembro... Esquisito. Mas pior que eu me lembrei que quando o seu Marco levava ela pro posto eu escutei a mesma voz dizendo que não-sei-quem tava com saudade dela. Será que tem a ver?
- Não sei, mas vamos parar de falar nisso...
- É, tá ficando escuro, depois a gente passa a noite com medo.
E a gente parou, mas só de conversar, o pensamento fica, né. Homem de barba... Se não tinha mais ninguém, era alma. E quem é que tava com saudade? Saudade tenho eu, mainha; só não o Li porque ele nem conheceu papai direito, só de fotografia - a que fica no altarzinho, a que tem ele, a gente, e vovô e vovó, mas azar de goteira esculhambou parte da foto, borrou os dois. Será azar? Não conheci vovô, Li não conheceu o pai.
Mas eu te conheço.
~
ñ.r