Te conto uma história

Me lembro - a memória ainda me é permitida - quando Ele buscou quem nos comprasse naquele lugar horrível. Nessa minha vida de agora, falseando alegria, mas não infeliz, até penso que me dei bem. Outrora sem ninguém, buscando a morte para me livrar de um tudo-nada, agora: um sossego quase senil, mas tendo quem diz me amar. Que bom. Aconteceu tarde, mas mais vale aproveitar o pouco restante disso do que lamentar pela vida dilacerada; porém ainda me há um quê de ingratidão com o destino, parece. Fico a olhar o céu, nesse balanço bom de sono, e nada me vem. Convém, nessas ocasiões, por a mão em turvo aquário e tentar fisgar um peixe podre, então uso a imaginação para revitalizá-lo - volta, peixinho, agora nada e vive nesses meus pensamentos. Daí volta a lembrança: K disse-me, no meio de um caminho, que voltava de uma obrigação (todos nós estávamos ocupados), mas, chegando na Casa, ouviu gritos e pedidos de socorro. Ele carregava duas - uma das menores e a enfermeira. Foi uma confusão, mas tudo se esclareceu. No final, fomos nós três no lugar delas. Sabíamos onde tínhamos nos metido, mas só descobrimos o quão abismal foi a decisão quando chegamos lá e Ele nos disse o que faria. Eu, particularmente, era o que mais detestava-o. H também, mas agia estranho com todo mundo. Apenas K teve a sorte da tranquilidade ter repousado em sua alma. Daí veio o desconforto, aquelas roupas apertadas e até impróprias, um monte de coisa. Horrível. E nos foi oferecendo de casa em casa, baratas mercadorias, quase inúteis, o importante era alguém adquirir. Foi K, foi H, faltava eu. Tive de escutar mais deboches Dele, mas fui. Graças ao meu talento musical mal aproveitado, me aceitaram num lugarzinho. Tendo feito o que planejara, não o Vimos mais.

Começa a vir uma brisa leve, que falta fazer o corpo de folha caída e levar para onde quiser. Vai o espírito no lugar, então. Sempre abro o mesmo sorriso de prazer quando ela vem, e o céu continua clarinho, com umas nuvenzinhas amenizando o Sol. Fico revezando entre olhar para o céu e olhar para a paisagem terrestre - aqui ainda tá tudo verdinho e colorido, orvalhoso e florido. Coisa que agora eu aproveito, ainda bem. Antigamente eu não prestava atenção a essas coisas, tudo era muito "escuro", me entenda. Mas seguindo: estávamos nessa situação por necessidade (não direi vontade porque, enfim) Dele. Apesar da circunstância, o que nos foi passado deveria ser realizado. Tudo muito difícil, a qualquer momento poderia acontecer de descobrir eu, ou H, ou K. Não sei que sorte foi essa de não ter acontecido isso, apesar de H ter dito que teve de se esforçar muito por conta de algo não podia disfarçar, mas podia "ocultar". K, quando findou tudo, me falou que passou por dias, veja bem, tranquilos. Diferente de H e eu. Disse que vivia trabalhando muito - bem capaz de, tendo nada para fazer, caçava qualquer coisa para se ocupar com a dona -, mas já tinha costume com isso, então... As coisas, comigo, deveriam ter sido mais fáceis, já que tinham praticamente renegado meus "dotes", diferente das outras, ora. Restou-me o outro tipo de trabalho, mas bem melhor foi isso ter acontecido. Fiquei, como disse, com a música - quase todos os instrumentos, aliás. A maioria das meninas novatas ou ordinárias estavam lá para servir, infelizmente.

Com os dias passando, estava cada vez mais difícil esquivar-se da nojeira, pior foi para H, que, ao menos, tinha um rosto chamativo. Me disse que quase pôs tudo a perder - certo que não usa muito a cabeça. K ficou quase como uma 'dona de casa', ou doméstica. O que testemunhei ali foi, certas vezes, bem desagradável. Vi meninas, com dez anos, por aí, por lá; como criadas de uma das chefes. Não que fizessem o "trabalho sujo" - espero -, mas viviam como escravas. A senhorita B, que também trabalhava nessa casa, era horrível. Tratava todos com crueza indescritível, era um medo geral; mas eu ainda não tinha conhecido ela. Foi justamente nesse dia que eu contava, vi uma delas chorando e tentei consolar, mas B surgiu de repente. Até que eu conseguiria me livrar de qualquer problema, viria a desculpa do 'mal-entendido' e pronto, ouviria apenas palavras rudes e não mais toparia o olhar com o dela. Mas... aquela pobre menina sendo maltratada. Foi péssimo. Não consegui segurar, intervi. Só não digo, hoje, que foi inutilmente porque, ao menos, o foco da raiva virou-se para mim; a garota conseguiu sair da situação. Foi aí, porém, que começou meu pesadelo. O proprietário rogou que, veja bem, tremendo, deixasse para ele me punir no lugar dela. Suas repreensões não surtiram nenhum efeito, minha vida não dependia daquilo, estava ali por outro motivo; mas imagine se fosse qualquer uma dessas meninas. Ele também pegou uma palmatória, mas estava pensando em tanta coisa que sequer senti aquele castigo gentil. Errado estava eu em impedir o que estava errado? Nunca entendi certas coisas nesse mundo mesmo. Já vi, no tempo das ruas, um dos mendigos sendo preso porque ele gritava contra a injustiça: a gente toda passando, saudável, saciado e são, e nós ali, estirados, esquecidos e execrados. Tínhamos força para fazer nada, e, se fizéssemos, talvez iríamos fazer companhia numa cela; ou não, ele nunca mais voltou. Cresci a ponto de detestar demais tudo aquilo, tinha nem treze anos direito... pedi, por favor, uma moeda para tentar conseguir algo para comer. A mulher olhou-me com um nojo, o marido foi e me arrastou até um lugar mais sujo e me jogou no meio do lixo. Daí saí, fui para onde se plantava de tudo - vai ver conseguisse um emprego lá, ou qualquer coisa. Mais me veio uma enganação e uma adoção doce e torturante; ele queria meu bem do jeito mais mau. Mais tarde conheci K e, depois, H.

Voltando, mais uma vez, desculpe, ao assunto...

Devem já entender que coisas ruins aconteceram comigo. B - coincidentemente o mesmo bê de bruxa -, ainda de madrugada, enquanto descansava do tal castigo, veio, logo após a menina, e as duas irmãs, que agrediu me agradecer pelo feito. Eu não sabia que ela estava espreitando-me. Estava sentado, respirando, tentando me recuperar de tudo que aconteceu nesse dia. B veio por trás, de repente, e só lembro que apaguei. Acordei num quarto escuro, amarrado. Lá eu estava na companhia de outra pessoa, mais tarde descobri que era quem nós buscávamos, porém, estava desmaiada; logo entenderão porquê. Fiquei lá uns minutos, precisava sair, começaram os ruídos (minha boca estava tampada), aí ela veio. Tenho vasta experiência com gente ruim, mas B tinha uma maldade que não cabia na alma; não humana. Pior foi que nesse tempo as coisas pareciam melhorar para mim, conheci, como disse, K e H, umas das pouquíssimas pessoas que já me trataram com gentileza. Fiquei mal acostumado... Tudo aquilo doeu o dobro. Usou agulhas, lâminas, foi péssimo. Sentia o corpo desfalecer diversas vezes, perdi muito sangue naquele dia. Errado estava eu? Três dias ficamos naquele lugar. Eu e A, a pessoa a quem fomos incumbidos de achar, nos comunicamos, principalmente, pelo olhar; nada decisivo, disso, saiu. Só não morremos porque ela enviou cartas, anteriormente, a Ele - foi capturada por causa disso, aliás. Eles chegaram a tempo... Aquele tempo todo, inclusive, tornou-se permanente. Sabe como? Eu te mostro, ainda tenho minhas cicatrizes.

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ñ.r.

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 21/12/2021
Código do texto: T7412436
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