A vacina da órfã
A vacina da órfã
Janaína Bellé
Num canto da velha mesa, cadernos, livros e lápis se impunham timidamente e cotidianamente. Eram os únicos sinais de abstrata esperança de alguém que havia nascido predestinada à miséria. Ao redor, os poucos e precários objetos estavam à disposição para as necessidades mais básicas e restritas que a mente humana possa alcançar. As paredes do porão feitas de tijolos e barro proporcionavam um desconforto interno inimaginável. Nas noites chuvosas, a água passava por entre os tijolos e invadia o lar. As janelas e a única porta existente eram de uma madeira frágil tanto quanto a autoestima dos que ali habitavam. Um cheiro forte vindo do andar superior também de madeira misturava-se com a chuva de poeira que insistentemente caia com os passos daqueles que ali trabalhavam. Cheiro esse que denunciava a convivência com o veneno do fumo seco. No horizonte, por onde quer que a visão alcance, o nascer e o pôr do sol contrastavam com as lavouras de verdejante plantação de fumo.
Nesse ambiente, crescia uma menina de cabelos lisos e dourados que balançavam ao vento. Seu rosto trazia lindos traços e ela era de uma beleza única que desconhecia, mesmo ao olhar-se num pedaço de espelho improvisado. Faziam-na sentir vergonha de quem era. Tinha olhos verdes como duas esmeraldas num semblante apático. Ela amava as descobertas que fazia. Às vezes, esquecia o mundo e, por alguns instantes, a alegria de viver se fazia presente por meio das leituras. Assim vivia Gabi.
Mas para o destino, a sua miséria não era suficiente. E, então, encarregou-se de dar-lhe um golpe. Era dezembro de 1991, a menina tinha 11 anos, quando o impiedoso destino lhe arrancava o chão. Sua jovem mãe, de 35 anos, que lutava contra um melanoma, teve seus gritos calados. Ela repousou para sempre num leito de rosas. Aquela inesquecível imagem acompanhava Gabi pela vida.
Com a partida da mãe, a pequena órfã teve que assumir o seu papel. Seu corpo de menina, anêmico e exausto pelo trabalho com seu pai, tinha longos e desproporcionais braços de mulher que traziam baldes de água da fonte para saciar a sede dos três que restaram. Suas mãos ásperas, tingidas em cor preta pelo fumo, guardavam para si o peso das responsabilidades. A miséria, a fome e o frio sulino se fizeram rotina na vida da órfã, nos trapos que cobriam seu corpo miúdo e nos restos que enganavam a sua fome. Pobreza que se perpetuava nos intermináveis e angustiantes dias. A vida dura e sem brilho lhe proporcionava raiva do que, provavelmente, o futuro reservava.
Na volta para casa, depois de um longo dia de trabalho, a pequena plantadora de fumo caminhava inconformada por entre a verdejante plantação. Tinha certeza de que ainda não havia encontrado o seu lugar. Seu coração pulsava confiante. Ela havia feito um juramento para si mesma de que no futuro tudo seria diferente tanto para si, quanto para seu pai e sua irmã.
Entre uma árdua tarefa e outra, havia tempo para seus sonhos e eram genuínos. Eles não cabiam dentro daquele porão de tijolos com barro sem banheiro o qual ela cuidava e chamava de lar. Incomodada, sempre que podia, escondia seu caderno, pois se envergonhava do odor de fumaça vindo do fogão de lenha que perfumava e pintava de amarela as suas folhas.
Sem o acalento da mãe, a pequena órfã passou a ter que enfrentar os dissabores da vida, as inesperadas circunstâncias, os intermináveis anos escolares de Bullying, as angústias... E seguir os passos da mãe, não fazia parte dos seus anseios. A palavra “mãe”, a mais doce de todas, ficara presa em sua garganta por um longo período. Com a partida dela, a pequena órfã também morreu e renasceu inúmeras vezes. Tudo isso não foi suficiente para sucumbir com os seus sonhos. O que restou foi conviver com a esperança num futuro promissor e as lembranças das crenças e do afeto maternal inexistente.
A caminho da escola, mesmo sofrendo as doloridas humilhações, a menina calada levava consigo uma única certeza: estava no caminho certo e agarrara-se a ele com uma imensurável força. Nada podia detê-la! A pequena órfã guardava dentro de si uma herança indestrutível deixada por sua mãe ainda em vida.
A mãe afirmara uma única vez para a menina que havia feito uma vacina na gestação chamada: “vacina da inteligência”. Ela havia lhe feito acreditar na sua eficiência. E isso tornou-se uma crença sólida e inquestionável. E qualquer coisa que a menina fizesse confirmava internamente o poder da vacina.
A pequena órfã dedicara sua vida ao trabalho e ao estudo. Ela descobrira a riqueza que havia nos livros e os frutos no trabalho. E então foi crescendo e a miséria foi ficando para trás. O sabor que os livros lhe proporcionavam saciava a sua fome de aprender, viver e amenizar suas tristezas.
Os anos se passaram, a vida tornou-se ainda mais dura. Ela estava na vida adulta quando retomou o assunto da vacina e, em suas reflexões, descobriu que a “vacina da inteligência” nunca existiu. Mas, naquela altura da vida, era tarde demais. Já havia passado por tantas provas com êxito. Ela havia se tornado uma profissional de sucesso.
Com isso, começou a fazer descobertas libertadoras e a dar-se conta de que ela era uma eterna aprendiz. Ao acordar para a vida, ela acordou também a sua autoestima e autoconfiança. E assim passou a refletir sobre vários aspectos da vida; sobre a sabedoria e a generosidade da sua jovem mãe... Fez as pazes com Deus, com a despedida da sua mãe e com o mundo.
A vida da jovem Gabi passou a brilhar. Ela passou a amar e valorizar a sua mãe. Diferentemente dela, que havia partido aos 35 anos, a jovem deu a luz a uma linda menina nos seus 35 anos. Passara a ouvir a palavra mãe como uma melodia angelical na doce voz da sua filha. E começara a ver o mundo com os olhos de mãe.
E, sendo mãe, havia muito ainda para aprender, um universo a ser descoberto. Ela entendeu que o que sabia era similar a um grão de areia entre tantos. O que a deixava muito feliz. E tudo bem se não aprendesse sobre todas as coisas. E tudo bem se não atendesse as expectativas dos outros. O importante era ser feliz em essência e passar esse sentimento puro adiante.
Gabi se tornara realizada, pois havia conquistado muito mais que os sonhos da pequena órfã. O conforto da casa em que vivia com sua família era reflexo de toda a sua luta. As paredes, as portas e as janelas eram fortes como a força da imaginação da menina. A luz que iluminava o ambiente era a materialização da sua esperança. Na cama macia havia os sonhados cobertores que aqueciam seu corpo nas noites de inverno. A água que brotava nas torneiras era bem-vinda. Já podia banhar-se diariamente e preparar suas refeições, alimentar e saciar a sede de vida daqueles que ali viviam.
Ao retornar, com sua família, ao lugarejo onde havia sobrevivido na infância, percebera que o Senhor Tempo havia provocado mudanças vitais. E as fantasias daquela época, que eram seu único refúgio, também haviam mudado. A pequena órfã não era mais a mesma. Se tornara uma mulher plena e feliz. A vida de Gabi se transformara para melhor que nos sonhos da infância.
A real vacina que salvou a pequena órfã da miséria foi, na verdade, sua crença inocente no efeito.