O DESEJO DA FERA

A história que vou contar a vocês teve início em meados da década de sessenta do século passado. O local não distava muito do centro de uma das principais metrópoles do país. Refiro-me a uma pequena ilha urbana, que apesar da proximidade do ir e vir frenético da modernidade, reserva até os dias de hoje um ar bucólico e interiorano em suas cercanias.

Quanto a identidade das personagens, prefiro mantê-las em sigilo, pois até a atualidade a família em questão ainda faz do logradouro sua morada e, por conta disso, não desejo expô-los à curiosidade de forasteiros, porque embora não haja segredo para os locais quanto aos eventos que aqui relatarei, a pequena ilha é muito visitada como atrativo turístico e não é minha intenção atrapalhar tal vocação, ou pior, convertê-la em algo diferente da sua hospitalidade, história e beleza natural.

O garoto tinha por volta de onze anos de idade quando fora mandado pelos pais para passar as férias com alguns parentes na ilha. Os dias na casa dos tios foram quentes, ensolarados e revestidos por pura felicidade. A diversão ao ar livre traduzia-se em banhos de mar, desventuras pelas matas, descobertas e interação com a tradição local. Mas, para o garoto, tudo viria a mudar com a chegada da quaresma e um período de apreensão com a noite do primeiro plenilúnio. Ele ainda não sabia, mas os eventos que estavam por vir o marcariam de forma traumática para toda a vida.

Naquela noite, embora não entendesse toda a correria e os preparativos que dominavam a atenção de suas tias, ele desconfiava que algo diferente e perigoso se avizinhava. Um alerta de perigo que o fez correr para salvar um de seus amigos, o filho do caseiro, quando este decidira sair da proteção da casa para a mata em busca de respostas, mesmo com a proibição expressa das tias para que todos mantivessem os seus lugares, a despeito de qualquer coisa que ouvissem do lado de fora.

O garoto seguiu os passou do amigo por entre a escuridão da mata, disposto a trazê-lo para diante dos olhos dos mais velhos, não porque sentisse medo ou algo do tipo, pois, a bem da verdade, seu senso urbano não atendia a tais apelos. Ele desejava trazer de volta o menino por dever. Por não querer assistir a qualquer tipo de represália que os impedisse de se divertirem nos últimos dias de férias.

Pelo amigo ele chamou, mas a resposta que teve não fora a que seus ouvidos gostariam. Uma fera surgida do inferno o localizou e o perseguiu. O garoto tentou fugir e durante essa tentativa caiu num buraco. O que poderia ter sido o seu fim fora, na verdade, sua salvação, pois a fera que surgira na abertura do solo e nublava o céu com sua presença tentou de todas as maneiras alcançá-lo. Ela enfiou os braços na fina reentrância e balançava as garras. Projetava o focinho e mordia o ar, deixando cair uma gosma esbranquiçada sobre o menino. Ele inspirava o ar da noite e o mirava com um olhar desejoso. Porém, todas as suas tentativas foram em vão, e o demônio não conseguiu pôr as mãos em sua presa. Com isso, a luz do dia chegou e o acharam na armadilha do solo que acabara por salvar sua vida.

No entanto, o maior trauma do garoto ainda estava por ocorrer. Após ser levado para casa e cuidado pelas tias, ele ouviu um lamento de dor vindo de um dos quartos, enquanto descansava numa poltrona na sala de tudo o que presenciara na noite anterior. Então, movido pela curiosidade, ele seguiu pé ante pé até a origem do som. E, ao abrir a porta do aposento, ele viu, deitado sobre a cama, um velho desnudo e marcado por barro e o que parecia ser manchas de sangue.

Ao notar sua presença, o velho se virou e o encarou. O garoto o reconheceu. Era um tio-avô que quase não vira durante as férias. Entretanto, mais do que isso, o menino fora capaz de perceber sua verdadeira essência, porque, mesmo que apresentasse um rosto familiar e humano, aqueles olhos ferinos eram incapazes de nublar sua índole vil e crua.

Por outro lado, o velho também não fizera questão de esconder sua outra face e, mais do que isso, ao inspirar profundamente o ar e estalar os lábios, enviava um recado claro e direto: ele o desejava mais do que tudo em sua maldita existência. O garoto correu enquanto o tio gargalhava no quarto.

Ainda naquela tarde, enquanto via de dentro da barca a ilha ficando cada vez mais distante em sua visão, o garoto jurou para si mesmo jamais voltar a pôr os pés naquele lugar maldito. E do fundo de sua alma ele estava convicto disso, mas as décadas seguintes, o tempo, a vida, nada fora capaz de superar os traumas que o assombravam. E em toda noite de lua cheia, ele trancava e conferia mais de uma vez todas as portas e janelas, e embora morasse muito longe daquele pedaço de terra entre as águas da baía, ele pressentia que em meio à escuridão veria os olhos faiscantes do tio e sua boca escancarada desejosa de sua carne.

Aqui eu sou incapaz de dizer qual seria a dor maior. Se seria a do pobre adulto que sofria com os traumas infantis ou a do velho torturado pelas vontades do demônio. Na mesma ilha, já tendo enterrado as irmãs e primas que presenciaram seu desejo pela carne do sobrinho, o velho ainda vivia. Vivia porque a maldição que o abraçava estendia sua vida ao máximo, como uma fina camada de manteiga sobre um longo pedaço de pão.

O velho sabia que sua vida não poderia ser tomada em sua face mundana. Por algumas vezes já haviam testado acabar com a maldição atentando contra o frasco que a resguarda. Mas em todas tais vezes, ele sempre retornava e mais faminto do que antes. O velho sabia que apenas um golpe contundente com um instrumento de prata diretamente em seu coração ou cérebro teria a eficácia necessária para por um fim em sua existência. Mas, naquela ilha não havia uma só viva alma que fosse capaz de olhar nos olhos da fera e tentar tal façanha.

Ao mesmo tempo em que o velho se sentia confortável com essa certeza, tendo o tempo ao seu lado para saciar seu desejo, também sofria com a incapacidade de realizá-lo e a morte após tanto tempo já não era um paliativo tão desagradável. O velho tinha um filho, tão ou mais velho do que ele próprio na ocasião em que quase provara o prato dos seus sonhos. E esse filho também nutria o seu próprio desejo: o de ocupar o lugar do pai como o demônio da lua cheia. Mas, para isso, o pai teria de, finalmente, alcançar o seu descanso eterno, antes que ele mesmo, pela idade, acabasse abraçando o seu. Desse modo, quando o pai lhe fizera o pedido, ele não teve dúvidas.

O filho do velho reuniu toda a comunidade da ilha e diante deles propôs um acordo: todos deveriam ser cúmplices numa simulação de morte do seu pai, que pretendia com isso atrair para o local o garoto que escapara, o qual voltaria para vê-lo enterrado e com isso exorcizando de vez os seus fantasmas. Em troca, após saciar o seu desejo, a fera poderia enfim descansar em paz e deixaria ser abatida, pondo um fim às matanças mensais. O que o filho da fera ocultou, obviamente, é que ele próprio ansiava por ocupar tal posto. Os líderes locais concordaram.

Após receber a notícia do primo, o homem que já fora um garoto, tomava a barca que atravessaria a baía rumo a um lugar para o qual jurara não retornar. Mas a sua paz de espírito dependia de ver aquele maldito velho ser enterrado para ser consumido até a alma pelos vermes.

E assim ele fez. E, como ele, todo os insulanos estavam presentes para ver a terra levar aquele que fizera de suas vidas um inferno. Os que puderem foram embora ao longo do tempo, mas para aqueles que não tinham opção, o jeito fora sobreviver da melhor maneira possível. Agora todos estavam ali. Vítimas. Cúmplices. Isca e presa.

O homem com a infância arruinada olhou o conteúdo do caixão e reconheceu os contornos do maldito. Um ferimento marcava a sua testa. Por ali a bala de prata entrara, lhe dissera o primo. Estava feito, afinal. Poderia a partir daquele momento seguir com a sua vida em paz. Uma grande celebração teve início com a última pá de terra jogada pelo coveiro.

As comemorações foram até o anoitecer e, no meio da praça principal, uma grande lua cheia iluminava os presentes. O traumatizado homem imaginava que nenhum dos presentes precisaria temê-la novamente, mas não sabia que cada um deles o havia oferecido como pagamento pela liberdade. E, ao ouvir um som familiar e que lhe acordara em pesadelos todas noites, deixou uma lágrima cair.

Ele olhou ao redor, vislumbrou uma tentativa de fuga, como fizera quando criança, mas ouviu murmúrios dos presentes para que não o deixassem escapar. Então, entendeu o cenário. Logo, um espaço foi aberto entre a multidão e os contornos conhecidos de um demônio que ele temia, mas que não pretendia ver novamente em vida, surgiram entre ela.

De pé, a fera caminhava lentamente em sua direção. Às suas costas, ele ouvia a voz do primo dizendo para que ele enfrentasse o seu destino. O demônio parou diante dele, mas não o atacou com ímpeto ou volúpia, parecia querer extrair até a última gota de medo de sua presa. Talvez seu primo estivesse certo, ele não era mais um garoto, precisava enfrentar o seu destino.

A fera abaixou a cabeça para perto do rosto do homem, que, num ato de proteção, esticou os braços. A mandíbula da criatura se fechou lentamente na região do pulso e mão esquerdos da vítima, os dentes penetraram a carne liberando a acesso ao desejado sangue. A língua áspera da besta chicoteava o líquido vivo. E, com um movimento, ela puxou para si um pedaço da carne do sobrinho. Enquanto, saboreava e engolia o alimento, o velho imaginava que já poderia morrer em paz.

Talvez, esse não fosse um pensamento apropriado se ele imaginasse o que se passava na cabeça de sua presa. O homem que não gritara, pois já não era um garoto, afinal, usou a mão intacta para sacar das costas um revólver calibre.38, onde em cada espaço do tambor havia uma bala de prata, pronta para ser enterrada no cérebro do maldito. O que cada um ali presente não sabia era que ele havia cruzado as águas da baía esperando pelo melhor, mas preparado para o pior.

O velho sabia que ninguém naquela ilha teria coragem suficiente para encará-lo em sua face de fera e projetar o misticismo da prata contra sua integridade. Mas aquele homem, que já não era um menino repleto de medo, não era dali. E nele havia a chama necessária para flexionar o gatilho repedidas vezes, despejando o metal precioso a queima roupa contra o seu pior pesadelo.

A multidão gritou de alegria, mas de uma forma precipitada, me atrevo a dizer. Pois, com seu filho morto, a lua derramou sua luz imediatamente sobre o substituto, e aquele que já não era um garoto, deixava também de ser um homem.

A nova fera avançou primeiro sobre o primo e, em seguida, sobre o maior número de pessoas que conseguiu, antes de se atirar nas águas do mar em busca de um lugar para acalmar seu coração. Ele, o novo demônio, não temia mais aquela ilha e nadaria até ela a cada novo ciclo disposto a devorar quem encontrasse pelo caminho. O povo daquele lugar o havia condenado e, agora, ele retribuiria. Esse era o desejo da fera.

Ah, eu sei que vocês devem ter visto em algum lugar acerca dessa chacina, obviamente não com os contornos reais que aqui relatei. Eu não recomendo, mas posso passar onde fica a ilha, caso queiram visitá-la. Só não passem a noite lá, sobretudo se for de lua cheia.