Nicolle e o pato- CLTS 17
Tema fobias: Anatidaefobia(medo/fobia de ser observado ou perseguido por patos)
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"Lá vem o Pato
Pata aqui, pata acolá
Lá vem o Pato
Para ver o que é que há"
O Pato- Canção de Toquinho e Vinicius de Moraes
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Nicolle tinha ficado dias com a janela do quarto fechada em uma tentativa de evitar ter que ver o pato que parecia a observar, porém ela decidiu que naquela manhã iria abrir a janela novamente, mesmo que ainda estivesse com medo do animal. Enquanto tomava coragem pensava no dia em que tudo teve início.
O dia em que ela observou o pato pela primeira vez, tinha começado como todos os outros. Ela acordou ao som da cantiga dos galos e como já era a rotina de todas as manhãs, se direcionou até a janela para observar a vista do quintal.
O quintal era amplo, com várias árvores frutíferas. Além das plantas haviam
algumas galinhas e perus. Toda aquela atmosfera de natureza era acolhedora e ajudava a afastar o sono. Ao menos era assim até o pato aparecer.
Desde o primeiro momento o animal se destacou em meio às outras aves, primeiro porque a família de Nicolle não criava patos e segundo porque ele era diferente dos outros animais. O pato ficava parado olhando fixamente para a janela do quarto de Nicolle. Ele não havia ido procurar comida ou saído do lugar por longos minutos. Depois de um tempo, aquilo começou a incomodar a menina que tratou logo de fechar a janela e ir tomar café.
-Tinha um pato no quintal. - a menina comentou durante o café da manhã. Ela disse apenas isso, pois sabia que seria realmente estranho uma menina de catorze anos dizer que estava com medo de um pato. Sua vontade era pedir para alguém levar a ave para bem longe.
-Deve ter fugido de algum outro sítio. - seu pai comentou e Nicolle disse para si mesma que devia ser isso. Ela pensava que a ave logo iria embora e tratou de mudar de assunto.
Mas o pato não foi embora e os dias foram passando e passando. A ave continuou com aquela atitude estranha de parecer lhe observar, não apenas quando ela abria a janela de manhã, mas também quando ela ia alimentar as galinhas ou pegar alguma fruta.
Um dos episódios mais assustadores ocorreu quando ela estava no quintal. A menina estava lendo, sentada em um dos galhos de uma das árvores. Ela achava que aquele era um lugar tranquilo para leitura. Tudo estava certo até que ao olhar para baixo Nicolle viu o pato. O animal estava
aparentemente rodeando a árvore, como um tubarão que nada ao redor da presa.
Nicolle não conseguiu mais se concentrar no livro. Sua atenção e olhos estavam na ave. Torcia para que ela fosse logo embora. Sabia que aquele medo era meio irracional, mas ela só ficaria mais tranquila para descer quando o pato fosse embora. Pareceu demorar longos minutos para isso ocorrer.
Depois desse fato a menina tinha perguntado pela região se alguém tinha perdido algum pato, mas aparentemente não era de nenhum vizinho. Ela tinha até sugerido que talvez fosse uma boa ideia fazer um cozido de pato, mas seu irmão mais novo foi contra. O pato tinha conseguido ganhar a simpatia do caçula da família. No fim o pato ficou de vez.
A menina balançou a cabeça para afastar esses pensamentos, pois pensar essas coisas apenas a fariam querer desistir de abrir a janela. Com as mãos trêmulas continuou a ação até que notou os raios de Sol iluminando o quarto. Para sua surpresa naquele dia o pato não estava lá. Respirou aliviada e sentiu suas mãos pararem de tremer. Mas o alívio duraria pouco, pois somente algumas horas depois, ela descobriria que não tinha se livrado do pato.
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Mais tarde naquele mesmo dia, estava andando para a escola quando notou uma figura pequena, se aproximando pouco a pouco, no final da estrada de terra. Foi com horror que reconheceu o pato. Tentou ser racional e dizer para si mesma que aquilo não fazia o menor sentido e que devia ser outro pato da região. Mas no fundo ela sabia que era a ave que sempre a observava do quintal. Ele de alguma forma havia a seguido.
Seu primeiro pensamento movido pelo medo foi se virar e voltar para casa, mas a menina se controlou, pois não queria que algum conhecido passasse e visse ela fugindo de um pato. Além disso, tinha que seguir em frente, pois era o único caminho para a escola.
Tentou manter o passo firme e acelerado. Notou que o pato parecia ter notado isso e vinha mais rápido na sua direção.Evitava olhar na direção dele, mas não conseguia desviar os olhos. No momento em que apenas alguns passos os separavam, a ave pareceu abrir as asas como se estivesse se preparando para voar em cima dela no momento em que Nicolle passasse por ele. Aquilo foi o suficiente para a menina acelerar em direção à sua casa.
-Nicolle, fugindo da escola?- uma voz conhecida e brincalhona lhe chamou. Era Hícaro, seu amigo de escola. Por sorte ele não achava que ela estava fugindo do pato.
-Só não estou muito bem. Vou voltar para casa.- respondeu Nicolle olhando para trás e notando que o pato tinha ido em direção a um dos sítios. Torcia que ele ficasse por lá.
-Você não parece bem mesmo. Está pálida. Quer que vá com você até em casa?
Ela queria sim, pois temia que o pato tivesse somente se escondido para atacar quando ela estivesse sozinha, porém não queria incomodar Hícaro. Nicolle sabia que se ele fizesse isso iria chegar atrasado na escola.
- Não precisa. Estou melhor. Obrigada.
Hícaro e ela trocaram mais algumas palavras que mais tarde sumiram de sua memória. Cada um seguiu o seu caminho.
Chegando em casa ninguém duvidou que ela realmente não estava bem. Assim como Hícaro, eles notaram que ela parecia mais pálida e que suas mãos estavam suando. Nicolle queria contar para sua família, mas achava que ninguém iria entender o porquê dela ter um certo medo do pato. Achava que as pessoas iriam rir dela.
Saber que tinha que lidar com o medo sozinha lhe deu certo cansaço mental.
Toda essa situação a deixou sonolenta. Dormiu o resto da tarde. Quando acordou notou que já era noite e que havia um movimento estranho na casa, pois ouviu várias vozes vindo da sala. Não era comum ter tanta gente em casa naquele horário.
Saiu do quarto e foi em direção de onde estava vindo as vozes. Encontrou a sala realmente cheia de gente. Pela expressão das pessoas era óbvio que alguma coisa tinha ocorrido. Sentiu uma onda de desespero quando viu que entre as pessoas estava o pai de Hícaro. Começou a se perguntar se tinha ocorrido alguma coisa com o amigo. Ela gostava de Hícaro e não queria nem pensar que ele estava em perigo.
As pessoas demoraram para notar a menina. O primeiro a fazer isso foi justamente o pai do seu amigo. Ele foi até ela e começou a falar com preocupação na voz:
-O Hícaro não voltou para casa. Vocês são próximos. Ele falou que ia para algum lugar? Você falou com ele?- o homem fazia todas as perguntas quase atropelando uma palavra na outra. Nos olhos dele havia um pequeno brilho de esperança de que Nicolle poderia ajudar.
Aquela notícia a atingiu em cheio e ela sentiu que as palavras ficaram presas em sua garganta e não conseguiam chegar até a boca. Teve que se sentar para não cair. Seu primeiro pensamento foi que o pato estava de alguma forma envolvido, mesmo que não pudesse provar. O pato estava escondido na estrada e deve ter visto Hícaro e talvez o seguido.
Nicolle balançou a cabeça para afastar esses pensamentos. Ela não podia ficar pensando nisso, pois talvez acabasse falando de sua suspeita na frente das pessoas e isso não seria aceitável.
Ao invés desses pensamentos tentou lembrar da última conversa que teve com Hícaro, porém sentia que uma parte do diálogo tinha sumido da sua memória. Também associou isso a ave.
-Falei com ele no caminho para a escola.- sentia sua voz falhar e as lembranças fugirem- Ele parecia bem e não falou nada sobre ir para algum outro lugar.
Sentiu quando as lágrimas começaram a cair sem que conseguisse controlar. Sentiu sua mãe a abraçar. Depois desse momento via tudo de forma distante, anestesiada pela notícia e sem conseguir falar mais nenhuma palavra. Acompanhou com os olhos tristes quando os homens montaram um pequeno grupo e foram procurar Hícaro na floresta.
-Você devia ir descansar um pouco. Vai dá tudo certo. Logo ele vai aparecer.- sua mãe lhe disse enquanto ia preparar um chá para ela. Um pouco depois do grupo de busca ter saído.
Nicolle ficou sozinha no sofá. Com os pensamentos longe, mal notou seu irmão se aproximando. O menino se sentou ao seu lado segurando uma caixa de papelão. Ao olhar para dentro da caixa, a menina ficou em choque ao ver o pato.
-O que esse pato está fazendo aqui, Orlandinho?- a menina perguntou se levantando imediatamente do sofá e segurando um grito meio assustado.
-Vou levar ele para dormir no meu quarto.- respondeu seu irmão acariciando as penas do pato. O animal estava manso e parecia aceitar o carinho. - O nome dele é Nuno.
Era só o que faltava. Orlandinho tinha dado nome para a ave misteriosa. Seu irmão estava conseguindo ser mais estranho do que ela em relação ao pato. Mas pelo menos ela veria menos a ave se o animal ficasse no quarto do seu irmão.
Estava realmente incomodada por está tão próxima do pato. Queria que o irmão saísse logo da sala e levasse a ave, mas o menino continuava sentado no sofá. Quando ela pensou que a situação não poderia ficar mais assustadora o seu irmão falou:
-O pato disse que ele sabe o que ocorreu com o Hícaro.
-Isso não tem graça, Orlandinho! - ela falou séria, tentado disfarçar o medo que sentia. Nicolle já estava a uma certa distância do sofá e recuou ainda mais quando ele disse isso.
-Não é piada. Ele também disse que depois do ocorrido é para a gente ficar longe da loja de doces. Ele também falou algo sobre alguém trancando pessoas em um labirinto somente para se divertir com a confusão deles.
-Patos não falam!
-Esse fala sim! De onde ele vem todos os patos falam!
-Existem outros como ele?- a pergunta foi automática e sua voz soou assustada. Em sua mente se formava a imagem de um exército de patos falantes andando pela estrada de terra. Tentou afastar essa figura assustadora da mente.
-Existem. -respondeu Orlandinho e depois completou- Ele não fala com você porque você tem medo dele.
Aquilo a deixou sem palavras e a fez ir rapidamente para o quarto dela. Ela não achava que o irmão estivesse falando sério, mas mesmo assim achou assustador o momento em que ele disse que o pato sabia que ela tinha medo dele.
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Os dias passaram e nem sinal de Hícaro. Para piorar, outras duas pessoas sumiram. Nicolle se sentia triste a cada dia que passava. Em meio ao desespero, as palavras do irmão vinham até sua mente. Principalmente o momento que falava da loja de doces. A frase parecia ter despertado alguma lembrança adormecida da última conversa que teve com Hícaro, pois lembrou que ele falou algo sobre a tal loja, mas não lembrava o que.
Os moradores chamavam de loja de doces, por causa das variedades de doces que eram expostos no balcão, porém na verdade era um mercadinho que vendia um pouco de tudo. Ficava perto da escola e da praça. Não entendia o que podia ter de estranho no lugar. Aquele diálogo todo não fez sentido,mas pelo menos a conversa com o irmão também pareceu confirmar as suspeitas que ela tinha sobre o pato. Agora além do medo da ave ela estava com medo de Orlandinho, que provou ser um aliado do pato. Tentava ficar longe dos dois.
- Não acho que aquele pato deva dormir dentro de casa. - falou uma vez durante o jantar. Tinha esperança que seus pais fossem concordar com ela.- O Orlando anda apegado demais nesse pato.
-É só uma fase.- sua mãe disse.- Além disso, o pato não faz muita sujeira. Fica só na caixinha dele.
- Sua mãe tem razão, é só uma fase. - seu pai concordou e começou a contar uma história de quando ele era criança e criou um passarinho que caiu do ninho.
Parecia que o pato tinha conquistado os pais deles também. Depois desse dia ela não falou mais no assunto, mas evitava ficar no mesmo ambiente que o pato. Na verdade, desde que Hícaro sumiu ela ficava a maior parte do tempo no quarto. Como estava no momento.
Ela ficava deitada, mas temia pegar no sono. Primeiro porque sempre que dormia sonhava com Hícaro. No sonho ele falava, mas ela não conseguia ouvir direito o que o amigo falava. Além da questão dos sonhos, ela não se sentia muito segura sabendo que o pato dormia no quarto ao lado.
-Nicolle?- a voz de sua mãe a tirou de seus pensamentos. Ela estava parada na porta do quarto a olhando preocupada.
- Sim, mamãe.
-Vou ter que ir comprar umas coisas, gostaria de vir comigo? Podemos passar na loja onde vende aqueles doces. - a mãe disse provavelmente em uma tentativa de a fazer sair do quarto.
A menina educadamente recusou o convite, porém no silêncio do quarto lembrou que Hícaro falou algo sobre a loja de doces, sem falar na conversa com o seu irmão. Resolveu ir. Ainda conseguiu alcançar a sua mãe na cozinha. Mas quando chegaram na porta que dava para a saída, algo fez Nicolle recuar. O pato estava parado bem no meio da porta. Como se impedisse a sua saída.
Por mais que tentasse, não conseguia ir em direção à porta, suas mãos suavam e seu corpo queria fugir. Deu meia volta e saiu pela porta da cozinha. Se sua mãe achou sua atitude estranha não comentou.
Uma vez dentro do carro, ao olhar para trás teve a sensação que o pato estava seguindo o veículo. Olhou para a frente tentando afastar a imagem da ave observando o automóvel. Aquilo parecia confirmar que o pato sabia de algo.
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O passeio passou de forma monótona, pelo menos até o momento em que chegaram na loja onde vendiam doces. Ao entrar no local Nicolle teve a sensação que Hícaro estava perto. Sabia que não fazia o menor sentido, mas tinha essa sensação.
-Vou ver as geléias. - disse Nicolle para a sua mãe que conversava com o balconista sobre os desaparecimentos recentes.
Sua mãe concordou, pois a sessão das geléias ficava próxima, mas disse para ela não se afastar muito. Com os desaparecimentos recentes, todos os pais estavam com cuidado redobrado com os filhos.
Nicolle andou pelo corredor e começou a notar que ele parecia mais longo do que parecia inicialmente. As fileiras de geléia pareciam se estender e o lugar parecia ter ficado maior do que realmente era. Ao olhar para trás gritou, pois de alguma forma não conseguia mais ver a porta. Ela tinha sumido juntamente com o balcão onde sua mãe estava. Naquele momento ela realmente viu que tinha algo de errado com aquele lugar.
Tentou voltar pelo caminho por onde tinha vindo, mas era como se esse caminho não existisse mais. Se viu em meio a um labirinto que se mexia toda vez que ela andava. De vez em quando ela tinha a impressão que ouvia o som de um pato, mas pensou que era coisa da sua mente.
Depois de um tempo chegou até um corredor semelhante ao de geléias. Finalmente conseguiu avistar sua mãe, porém para sua surpresa ela ia embora, como se não lembrasse que tinha trazido a menina com ela. Parecia ter esquecido assim como Nicolle tinha esquecido da conversa que teve com Hícaro.
Correu tentando a alcançar, porém para a sua surpresa ela se chocou em uma parede invisível . Enquanto se recuperava do impacto observava a mãe indo embora.
-Minha mãe também esqueceu que tinha me trazido. - uma voz ao lado dela disse.
Nicolle olhou na direção da voz e identificou
um menino que tinha sumido depois de Hícaro.
-O que está ocorrendo aqui?
-O pato. A culpa é do pato. De alguma forma ele controla esse labirinto. Toda vez que estamos perto de sair ele muda o caminho. Acho que isso diverte ele. Até o tempo passa diferente aqui.
Nicolle pensou que finalmente ela tinha achado alguém que também via o pato como a ameaça que ele era, mas quando olhou na direção do menino notou que o corredor tinha mudado novamente e ele tinha sumido. Gritou quando olhou para os antigos potes de geléia, pois no lugar dos doces estavam o que pareciam ser olhos em conservas. Um dos olhos piscou para ela.
Naquela confusão entre o que era real ou não crescia a certeza que o barulho de pato ia ficando mais alto. Até que finalmente a ave apareceu. Ele estava mais ameaçador do que nunca.
O pato grasnou ao ver ela. Quando ele fez isso, o labirinto girou e ela se viu presa no teto. Cada vez que ele grasnava o lugar mudava com mais intensidade e de forma mais absurda. O seu medo estava no grau máximo que ela sentia que ia desmaiar. Foi quando de repente um outro pato voou de vez para cima do primeiro.
-Nicolle! - o pato que chegou meio que grasnou o nome dela. Naquele momento ela soube que era Nuno.
Uma luta se seguiu entre bicadas e penas arrancadas. Nuno parecia estar levando a pior, mas o outro pato recuou. Seu grasnar pareceu uma risada.
-Já me diverti o suficiente nessa cidade, mas acho que prefiro uma cidade maior e talvez um lugar mais agitado do que esse lugar!- o pato vilão disse segundos antes de sumir. - Pode ficar com essa loja para você.
Após ele dizer isso a loja de doces voltou a ser o que sempre foi e aquele labirinto vivo foi embora junto com ele.
-Nicolle!- Hícaro saiu confuso de um corredor. Logo depois os outros dois meninos que tinham sumido. Mas quem estava mais confuso mesmo era o balconista que viu surgir todo aquele povo do nada.
Nicolle abraçou o amigo por um longo tempo, mas depois foi dá atenção para Nuno que estava um pouco machucado. Passou a mão pelas penas dele. No fim seu irmão tinha razão. Talvez ela até tentasse ser amiga da ave, mas isso não mudava o fato dela ter medo de patos. Achava que esse era um medo justificado, pois sabia que em algum lugar tinha um pato sádico de outra dimensão pronto para prender as pessoas em labirintos.