SUPER - CLTS 17

Enquanto uma caminhonete azul sumia daquelas bandas deixando uma nuvem de fumaça escura, Josefa se despedia acenando com a mão direita da porta de sua casa. Na mão esquerda segurava uma sacola de carne.

- Tchau, seu moço! Deus abençoe, viu! Obrigado por tudo!

Ao entrar, pegou um balde com água, um pano velho e se pôs a esfregar o líquido vermelho espirrado no chão. Algumas marcas de sangue só foram limpas graças a força dos seus braços e a ajuda de uma escova.

Enquanto isso, um menino negro de canelas finas, usando apenas uma velha camiseta regata e shorts verde, estando deitado no sofá, olhava para as teias de aranha nos cantos do teto não rebocado. Ainda se recuperava dos ferimentos que, embora não doessem, vazavam.

- Mãe, eu posso ir pra escola igual o filho do seu Bio?

- Depois a gente conversa, Tomás. Vá lá tomar um banho, se não tu vai deixar a casa mais suja do que já está.

O menino ficara com quatro escoriações nas costelas, dois cortes no lábio inferior por causa dos socos que levara há pouco tempo e ferimentos profundos por golpes de faca. Três na barriga e um no braço. Tudo isso, aos poucos, foi desaparecendo do seu corpo sem deixar cicatriz alguma.

Cliente satisfeito.

Já no banho e sem hematomas, Tomás deixou a água correr em sua pele negra feito rio que desce em terra seca. Lembrava que das grades da sua janela via as crianças que iam para a escola de uniforme. Da mochila que levavam nas costas. Da professora bonita e das merendeiras gordas e sorridentes como avós.

Não sabia ler direito. Mal conseguia rabiscar o nome. Queria conhecer todas as letras do alfabeto.

Por um instante, a memória desenhava novamente o rosto surpreso do moço que lhe batera minutos atrás:

"Esse menino é incrível, uai! Nunca vi coisa igual em toda a vida."

Após lavar o chão e secar o sangue salpicado das paredes, Josefa tirou a mistura da sacola e colocou numa panela.

- Hmmmm. Contrafilé. O moço de hoje foi uma benção de Deus mesmo. Tomás! Sai logo desse banho e chama seus irmãos pra jantar. Seu pedaço vai ser o maior.

***************

Tomás ajudava a mãe a criar seus quatro irmãos mais novos, cada um de um pai diferente. Inúmeras vezes traída e espancada por maridos que a deixavam a mercê da sorte, Josefa percebeu que não daria conta de sustentar cinco bocas ali naquele fim de mundo.

Ainda que um vizinho ou outro ajudasse com algum alimento ou roupa, não era suficiente para seis pessoas, onde a miséria pairava de dia e de noite no solo estéril daquela vida.

Mãe solteira e desempregada, vendo que a morte por fome espreitava sua casa, intentou dar cabo dos filhos e depois de si.

Foi então que, numa noite embriagada nas próprias lágrimas, ao passar a faca no pescoço de Tomás que dormia num colchão estendido no contrapiso mal feito, viu que o ferimento fechou rapidamente.

- Mãe... Meu pescoço está coçando...

Em seguida, o susto:

- Oxe, mãe?! Por que a senhora está com essa faca?

Desperta do transe do desespero, Josefa largou a faca que tilintou no chão duro e abraçou o filho:

- Tomás! Meu filho! Meu filho! Você não sentiu nada?

- Não.

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Dizem que onde reina a lenda, milagre está a venda. Josefa fez propaganda dos "poderes" do filho por onde passava. Mas ninguém daquelas bandas sabia o que era um circo. Só conheciam a vida da roça sob a mira pesada do sol, a cana cortada, as muriçocas, o matagal que crescia como pêlo e a boiada que ia e voltava.

Porém, se a bondade tem pernas, em terra sem lei a maldade cria asas. A angústia do povo escorria pela face, no suor da testa e dos olhos. Calotes, traições, patrões que agiam como coronéis, brigas familiares e outras desavenças enchiam aquelas bandas de ódio. O coração era uma represa de crimes prestes a rachar. Por isso, Josefa mudara a propaganda do filho, clamando:

"Por dois quilos de carne, lançai sobre ele toda vossa raiva!"

E continuava:

"Não cometa loucura! Meu filho é o novo herói que pode vos ajudar! A dor não lhe atinge como aflige a nós! Venha e derrame sobre ele teus pecados! Tudo isso por dois sacos de feijão e um de arroz!"

Tomás não se sentia herói. Achava graça quando a mãe o levava no meio da feira e gritava que seu filho era imortal, um santo ou um novo Messias que se curava sozinho. Ele não sabia voar nem tinha força o suficiente para carregar duas latas d'água por longo caminho, logo, qualquer um o venceria numa luta. Para que servia aquilo em seu corpo, então? Herói não se sentia. Sentia, sim, era vontade de ler o que estava escrito nas placas das barracas de pastel.

PAA... T... EL.

A princípio, muitos repudiaram aquela ideia, mas com o passar do tempo e com a propaganda "Jogue seus pecados no santo", o povo foi aos poucos aderindo.

Um marido traído, por seis garrafas de leite de vaca, despejava, aos socos e pontapés, toda sua frustração em Tomás que nem chorava e, rapidamente, se curava.

Pessoas de perto e de longe pagavam para furá-lo com agulhas, cortá-lo com facas ou cacos de vidro. O menino nem gritava. Certa vez um feirante intentou arrancar-lhe um dedo com uma tesoura. Segundos depois o dedo voltou a crescer como se fosse novo.

"É um santo!"

Numa tarde, um delegado irritado com o serviço foi até a casa de Josefa, espancou o garoto com um porrete.

- Maldito, emprego! Maldito, Estado! Malditos, sejam!

Tomás, após a surra e já de rosto desinchado, se ergueu olhando para seu agressor dizendo:

- Tio, compra um caderno pra mim? Eu deixo o senhor me bater com mais força.

Entorpecido pelo cansaço e surpreso com o pedido da criança, homem deixou um bloquinho de notas com um lápis para o garoto que, sorridente, recebeu como medalhas.

Em seguida, pagou Josefa com cem contos, uma sacola cheia de frutas e doces e, aliviado (e espantado), entrou no seu carro e foi para casa.

Tomás era o herói da casa.

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Em casa, debruçado sobre as grades da janela, treinava, com a mãozinha pesada, rabiscar as letras do seu nome naquele bloquinho de notas. Dali ele enxergava as crianças da escola e se imaginava vestido com aquelas roupas, carregando sua mochila cheia de cadernos, lápis e canetas.

Tentava assimilar as letras. Algumas conseguia. Outras ainda tinha dificuldade.

- Mãe, por que eu não posso ir para a escola? Todo mundo vai.

Josefa dava de mamar para duas crianças ao mesmo tempo, uma em cada seio flácido de estrias.

- Oxe, Tomás. Está com essa "bestagem" agora? Olha pra sua mãe. Estudei até o quarto ano e olha o que a vida me apronta? Cinco filhos pra criar sozinha nessas terras de meu Senhor. Estudo não é lá essas coisas, não. E outra: não é todo mundo que vai, não. Está cheio de gente aí que nunca passou perto de uma escola.

- Mas, mãe. Lá eu ia aprender a falar e escrever bonito. Fazer meu nome e o de todo mundo. Eu ia ser bem sabido e letrado.

- Menino, tu quer que eu aguente a carga toda dessa casa sozinha? Tem dó da tua mãe não?

- Não é isso, mãe. É que...

- Vai fazer igual teu pai? Te botou no mundo e depois abandonou. Quer me abandonar também? Ir pra cidade grande? Daqui uns anos aparece com uma buchuda aí e se enraba pra São Paulo. E a mãe? Que se lasque!

- Oh, mãezinha. Eu não...

Josefa começou a chorar:

- Logo eu que faço de tudo por você. Tu sabe como eu me sinto? Hein? Sabe como é sofrido ver o povo te bater só pra gente não morrer de fome?

Tomás permaneceu em silêncio com o lápis e o bloco de notas na mão.

- Tu não é como a gente, Tomás. Tu não sabe o que é dor, filho. Só por isso tu é um milagre. Eu sei o que é dor. Sei e sei de perto. Já comi folha de macambira porque não tinha o que comer. Cansei de perder meu sono pra cuidar de ti e de teus irmãos. Sozinha. Não vem parente aqui me ajudar. Quem me ajuda é Deus e eu. É isso que tu quer de novo? Que tua mãe, que já não aguenta nada, morra de tanto sofrer?

Tomás levantou o rostinho:

- Então posso pedir um negócio, mãe?

- Pode, amor. Mas peça logo e já se arrume. Acho que hoje vem gente de longe, hein. Hoje a mesa dorme farta.

- Depois me ensina a escrever meu nome.

- Deixe estar, meu bem. Depois que todo esse aperreio passar eu ensino, sim. Agora vá. Tome banho, se vista. Eu vou afastando as coisas aqui.

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O povo gostava do menino. Não como gente, mas gostavam do mesmo jeito. Ele era desajeitado, porém, educado

A clientela era variada.

Esposa traída? Bofetadas na cara. Jovens que não suportavam seus pais? Vassouradas nas costas até o cabo quebrar. Empregados que detestavam seus patrões? De queimaduras de cigarro até tiros. Não importa onde ou quantas vezes. O filho mais velho de Josefa não morria.

"Lance seus pecados sobre o santo", dizia a mãe. Mas não sem pagar com um bom e grande bife, ou dinheiro vivo. Se pagar bem tem direito até a seis facadas. Arroz somente socos. Feijão permite chutes.

Via-se um lugarejo com pessoas menos enraivecidas e dona Josefa engordando com os filhos, que cresciam como gado.

Sempre ao término de cada "sessão de pancadas", após o banho, Tomás tentava escrever seu nome. Uma noite quase conseguiu.

- Olha, mãe. Acho que acertei. Olha só!

- Tomás, a gente não tem tempo pra isso não, moleque. Disseram que hoje vai vir outro cliente e esse é costa-quente. Quem sabe eu não reformo teu quarto e de teus irmãos.

- Sim, mãe. Mas olha. Lê pra ver se eu fiz certo...

Josefa deu um tapa no rosto do menino:

- Escuta aqui, peste! Põe na tua cabeça que gente como a gente não nasceu pra estudar. Só pra ser pobre e virar burro de carga. Isso se não morrer na miséria pra ser enterrado como indigente. E tu... tu não é mais criança de escola. Você trabalha! Seja homem e obedeça, porque é daí que vem o pão que tu come!

Vendo o rosto baixo do filho, acrescentou mansamente:

- Olha, filho... a mãe já é vivida e sabe o que está falando. Estou fazendo isso pro teu próprio bem. Se na escola descobrem que você é assim, vão querer te bater todos os dias e de graça. Aqui pelo menos tu recebe alguma coisa e sustenta teus irmãozinhos. Até final do ano, se tudo der certo, com fé em Jesus, arrumo teu quarto todinho e nunca mais vai ter muriçoca voando na tua orelha, está bem?

- Mas depois eu vou poder ir pra a escola?

Fez-se um silêncio.

- Vai, querido. Vai sim. Prometo.

E deu-lhe um beijo na testa:

- Agora vai se arrumar. Anda.

Tomás voltou para o quarto, aguardando a próxima pessoa carente de desafogar seus ódios mais profundos em seu corpo magro, porém, como dizia a mãe, sagrado.

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Em frente a casa de Josefa estacionou um carro preto, longo e bonito. O motorista desceu e abriu a porta. Um casal de idosos acompanhados de um jovem que aparentava doze anos saíram do veículo. Todos muito bem trajados e de pele clara. O moço trazia em suas costas uma mochila.

- Pode entrar, doutor! A casa é simples, mas é limpinha.

- É aqui que tem o menino que se regenera?

- Não entendi, senhor.

- Se regenera! Aqui é a casa do menino que a gente pode bater nele que ele não sente nada?

- Sim, senhor. Entrem que ele já está vindo. Tomás!

Tomás veio.

O garoto ao olhar para a outra criança, de cor oposta, mas idades quase iguais pelo tamanho e aparência, paralisou e não disse mais nada.

A esposa do velho, ao ver Tomás, levou um lenço a boca:

- É. Deve ser esse. Vai lá, Frederico. Se divirta.

O homem tirou o terno que trajava e partiu para cima de Tomás com uma fúria que não se equiparava com sua idade. Esmurrou seu rosto, chutou suas costelas, com um canivete arrancou todos os seus dedos da mão, que logo nasciam outra vez.

- Isso é incrível! Melhor do que pensei, Eleanor!

O velho dava bengaladas nas costas e na cabeça de Tomás com um sorriso que não lhe saía do rosto. A cada golpe, mais estupefata sua expressão ficava.

- Ei, dona! Amarra teu filho num lugar aí pra mim.

- Meu senhor, mas o senhor não disse quanto que iria dar pra...

- Calaboca! Eu tenho dinheiro pra comprar até tua alma. Anda! Amarra o moleque.

Enquanto Josefa improvisava amarrando o garoto nas grades da janela da casa, o velho olhou para o moço que veio com eles:

- Henrique, tire o chicote da mochila e traz aqui pro vô.

O garoto tirou um chicote e deu na mão do velho.

Lept! Lept! Lept!

- Toma! Toma! Toma!

A cada golpe do chicote, as costas de Tomás rasgavam e fechavam... rasgavam e fechavam. Até que o velho parou e disse:

- Vai, meu neto! Sua vez!

Os olhos arregalados da criança denunciavam seu nervosismo, mas empunhou o chicote como se já tivesse treinado alguma vez.

- Vai, Henrique! Ele não sente dor não. Quer ver? Está doendo, preto burro?

Nessa hora Tomás, que de pronto sempre dizia "não, moço. Está tudo bem", emudeceu.

- Anda logo! Arrebenta moleque cor de merda!

A criança tirou a mochila das costas, pegou o chicote pesado e desferiu o primeiro golpe. Reparando que o corpo de Tomás se regenerava, sorriu e empregava mais força:

- Toma! Toma! Isso! Toma, seu preto de merda!

E mais forte. Alegremente mais forte:

- Toma! Toma!

E gritava cada vez mais alto. O sangue salpicava toda a cozinha de Josefa.

Lept! Lept!

A pele rasgava e fechava... rasgava e fechava...

Quando o velho percebeu que o jovem não tinha mais forças para bater, chamou-o para perto do rosto de Tomás:

- Feliz aniversário, meu netinho! Anda. Cospe nele.

O garoto cuspiu na face do flagelado.

Exaustos, avô e neto saíram da casa sem olhar para trás. A idosa, movendo os dedos magros e repletos de anéis, fez um gesto chamando Josefa:

- Venha aqui, senhora. Seu pagamento está no porta-malas.

Eles deixaram quatro cestas básicas, três sacolas de roupas e produtos de higiene pessoal e cinco fardos de leite.

Entregaram nas mãos de Josefa um envelope lacrado, entraram no carro e partiram.

Josefa palpitava. Nunca tinha visto ninguém pagar assim, como também ninguém nunca agredira seu filho dessa forma.

O envelope, que continha dois mil contos, estava timbrado com o remetente da prefeitura da região.

- Tomás, meu menino! Meu homenzinho! Olha o que Deus nos concedeu hoje!

O garoto, ainda amarrado e sem lesões, olhava vagamente para o caminho que dava para a escola ofuscada pela treva noturna, banhado entre as lágrimas e a cusparada que se misturavam em sua face.

Pela primeira vez Tomás sentiu dor. Não por fora. Por dentro. E essa nunca parou de doer.

Dizem as línguas que, naquela mesma noite, Tomás saiu de casa e nunca mais foi visto. Há quem acredite que ele simplesmente pegou um ônibus e fugiu para São Paulo.

No dia seguinte, Josefa, ao procurar pelo filho, apenas encontrou, num canto da janela, o lápis quebrado ao meio e o bloquinho de notas contendo, em várias páginas amassadas, a palavra:

T o M a

Temas: MUTAÇÃO GENÉTICA

Leandro Severo da Silva
Enviado por Leandro Severo da Silva em 03/12/2021
Reeditado em 11/12/2021
Código do texto: T7399373
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