O Que se Esconde nos Olhos
Aos 26 anos, eu caí de uma laje e por um milagre não houve sequelas graves. Quer dizer, exceto por uma questão delicada que, pela insistência das pessoas, fui obrigado a superar (ou pelo menos fingir que superei).
Ao acordar, com a cabeça enfaixada e os olhos bloqueados por gases, me informaram que lesionei a retina, não era grave. Além disso, tive alguns ferimentos leves e um torção no braço.
Saí do hospital com os exames em mãos comprovando que os danos não eram permanentes. Aos poucos fui retomando a rotina com apoio da família.
Em 10 dias tirei a venda, tomei os remédios, usei os colírios, um tampão em espaços muito iluminados, muito repouso. Até me acostumar usei uns óculos escuros mesmo em ambientes fechados. Segui todas as orientações à risca.
Pouco tempo depois tudo já havia se normalizado, exceto por um detalhe, um borrão que permanecia no canto do olho. Esteticamente não havia nada, a recuperação física foi um sucesso, no espelho a esclera permanecia branca e saudável como era antes do acidente.
Ninguém encontrou qualquer obstrução ou cisco visível a olho nu. Voltei seguidas vezes ao hospital, nos exames não constavam qualquer indício de corpo estranho ou cicatriz. Segundo o médico, o olho estava perfeito. Pelo que consta até o grau de miopia (que não era muito) tinha diminuído. Aquilo poderia ser um trauma emocional, neurológico, ou uma mácula que com tempo desapareceria.
Sentia que alguma coisa estava fora do lugar, um desajeito de ordem biológica que me desconcentrava, não a ponto de comprometer minha percepção, mas estava ali: um vulto que corria mais para direita, à medida que o globo ocular se movimentava. Quando chegava ao limite da visão, a mancha parava, nunca conseguia analisá-la nitidamente, mas a via clara e disforme, como uma dobra na luz.
Com o tempo ela passou a se mexer feito uma incandescência ou vibração, parecia uma bandeira tremulando ao vento, nunca acostumei-me, apenas passei a ignora-la.
Um dia notei que ela estava imóvel, na forma de um casulo acinzentado, mas, mesmo parada, parecia borbulhar. Já havia desistido de explicar às pessoas que esse borrão no canto dos meus olhos, agora se configurava como um bicho da seda. Era difícil manter uma vida normal. Meu estado de humor se alterou, o incomodo desencadeou uma irritabilidade que não podia explicar, parei de sair, de estudar, restringi-me a ficar em lugares de pouca luz para evita-la.
Novamente procurei ajuda médica, terapia e até um psiquiatra. Esgotei as possibilidades e me dediquei à pesquisas de internet e bibliotecas, buscando entender o que de fato habitava a minha visão periférica.
Passado alguns meses, adaptado ao desconforto, acordei e como de costume cocei os olhos, ao abrir, pelas pálpebras semicerradas notei que a mancha no canto mudara outra vez, já não era mais um casulo, nem uma impressão ou vulto indefinido. Ela tinha assumido a forma de uma cabeça humana.
A visão humana pode captar movimentos em até 180 graus, claro que não há nitidez e foco para se ater à detalhes, mas é instintivo captar movimentos que parecem ameaçadores ou mesmo perceber se alguém nos observa. E aquela cabeça tinha um rosto que me olhava, mexia os lábios, balbuciava, até ria pra mim… ou de mim.
Desisti totalmente da ciência e da razão busquei a ajuda espiritual. Fui a diversas igrejas, centros espíritas, fiz promessas, simpatias, e até trabalho para me livrar do tal “encosto”, tudo em vão.
Uma noite percebi que ela gargalhava em mímicas faciais, fazia caretas e expressões hostis. Precisava lidar com os fatos de maneira concreta. No desespero perfurei os olhos com uma tesoura de ponta, tomado pela obstinação de que a escuridão fosse menos perturbadora que a face que me espreitava.
Tive trégua, o espectador inconveniente já não me incomodava. Após a cicatrização, meu organismo foi adaptando-se à nova vida. Cercado de limitações e percalços que a sociedade impõe aos cegos na rotina diária. Lidando com fato de que alguns espaços não são pensados para todos, aprendi novos hábitos e adaptei a minha vida a essa condição. Foi constante a presença de amigos e parentes, ficar só era algo muito raro, quando retomei a autonomia senti uma satisfação imensa ao contemplar a solidão.
Na primeira noite só, acordei no silêncio da madrugada. Apesar de tudo eu estava em paz na escuridão, agradeci pela ausência de qualquer imagem, contemplei o infinito e com a audição mais aguçada busquei ouvir os sons imperceptíveis da noite. E das profundezas escuras, uma voz vinda do nada proferiu um sussurro ao pé do meu ouvido “ei, eu ainda estou aqui”.