1
O velho Herman, beberrão famoso da cidade mineira de Bodie Hills, assim que ouviu o primeiro tiro, jogou-se instintivamente ao chão. Não tinha dúvidas de que se tratava de emboscada. Do solo empoeirado, viu um de seus sequestradores já estirado entre os arbustos da vegetação rasteira. Do peito do infeliz vertia um grosso filete de sangue, cintilante sob o sol inclemente do meio-dia.
Os três comparsas restantes, em meio ao barulho de tiros e à poeira levantada pela agitação dos cavalos, largaram as selas em busca desesperada de abrigo junto às enormes pedras soltas do desfiladeiro.
Bart, o jovem fazendeiro recém-chegado ao grupo, talvez por falta de experiência, saltou da montaria e correu para longe da encrenca, berrando feito doido varrido em direção à pradaria.
— Caolho, o garoto não vai muito longe, não – grunhiu o negro Jacob, num esgar de dor, com a perna ferida.
— Idiota! Se era pra dar no pé, assim desse jeito, mais valia ter fugido a cavalo! — resmungou o Grandão Walter, enquanto, armado de colts nas duas mãos, rastejava pelos cotovelos entre as trincheiras naturais do terreno.
Antes que Jack Caolho pudesse responder aos companheiros, um estampido de Winchester ecoou pelas elevações rochosas à esquerda. A cabeça do jovem fazendeiro, em fuga frenética, explodiu num ponto vermelho na nuca, fazendo arremessar o seu corpo à frente e desabar, já morto, no chão poeirento.
— Idiota! — repetiu Walter, enquanto seus olhos buscavam o alto à procura da posição dos atiradores. — Isso lá é jeito de homem de verdade morrer?
— Hi, hi, hi! Herman quer saber do Grandão como um homem de verdade deve morrer.
— Fica deitado aí, porra! Quer levar bala no focinho, é? — vociferou Walter, cada vez mais nervoso.
O velho Herman, magro como um pedaço de pau, não deu a menor importância ao aviso. Sentou-se com dificuldade, encostando-se numa saliência rochosa próxima, e voltou o rosto pregueado e risonho para os sequestradores agachados atrás das pedras. Da sua boca murcha e sem dentes mandou recado:
— Herman não tem medo de morrer, não! Hi, hi, hi! Herman tem o corpo fechado!
— Jack Caolho, ouça bem! - ecoou, de repente, a voz vinda do alto das cordilheiras. - Aqui é Frank White. Tenho boa proposta a lhe fazer.
— Senhor Jesus Cristo, estamos perdidos! - afirmou Jacob, olhos arregalados. - São os irmãos Frank e Joaquim White! Esses caras não brincam em serviço, Jack! São uns demônios!
— Hi, hi, hi! Herman acha que vocês estão num beco sem saída.
— Cala a porra dessa boca, infeliz! — berrou Walter, apontando o revólver na cara debochada do outro, a meio metros de distância.
A súbita tensão do tiroteio e o calor sufocante estavam deixando Walter à beira de um ataque de nervos. A poeira levantada pelos cavalos grudava-lhe na pele suada. O sol a pino parecia afronta divina, ou assim lhe parecia. A morte espreitava nas alturas sem trégua. E, como se não bastasse, ele ainda tinha de aguentar o maldito deboche daquele velho lazarento que, em meio a tudo aquilo, ainda sorria-lhe com desdém, ignorando o perigo como se fosse invencível.
— Jack, pense bem, — ecoou a voz novamente, — não estou interessado nos teus companheiros. Só quero o velho Herman em boa forma. Prometo poupar a tua vida. Olha, pra ser sincero... o preço pela tua cabeça, vivo ou morto, é o mesmo. Mas se você conhece a minha fama, já sabe que sou homem de palavra.
— Hi, hi, hi! Ei, Grandão, olha só, agora o caldo entornou de vez, - provocou o garimpeiro, em sorriso banguela.
— Filho da puta! — rosnou o homenzarrão erguendo-se sobre o joelho e levando o revólver ainda mais próximo do rosto zombeteiro de Herman. - Já estou farto dessa tua risadinha escrota. Agora, quero ver o teu corpo fechado funcionar, velho!
Antes que Walter pudesse apertar o gatilho, o estampido ressoou no ar, muito próximo. Um buraco se abriu no alto de sua testa, espalhando sangue e fragmentos de osso. O gingante tombou à frente, de cara nas pedras. Jacob ficou perplexo, observando a fumaça subir lentamente do cano da arma de Jack. O tiro fora disparado a queima-roupa.
O silêncio tomou conta do lugar; até o vento parecia ter se acalmado, como se respeitasse os mortos. Jack, ainda ajoelhado, voltou sua atenção a Jacob, que estava deitado, recostado à rocha.
— Por quê? — perguntou Jacob, apontando o queixo para o corpo do amigo morto, enquanto seu ombro, ainda segurando a arma, começou a se mover lentamente para cima.
— Você não ouviu? Eles querem o velho vivo... ei, espere aí Jacob, não faça isso — advertiu Jack, meneando a cabeça.
O ex-escravo ignorou o aviso e, mal levantou o colt do chão, recebeu o tiro no peito. Na mesma hora, uma golfada de sangue explodiu de sua boca, os olhos arregalaram-se diante do terror da morte iminente. A cabeça tombou de lado. Morreu em silêncio.
— Muito bem, Jack. Já estamos descendo! – informou o caçador de recompensa satisfeito lá de cima.
2
Frank White, ao redor da fogueira, observava com atenção Herman lutando para desfiar um pedaço de coelho assado e enfiá-lo na boca desdentada. Estava muito curioso a respeito do velhote. O caçador de recompensa queria entender o que poderia levar o idoso garimpeiro a andar em Bodie Hills com dezenas de pepitas de ouro à mostra, pavoneando-se nos saloons, enchendo a cara do melhor whisky e, principalmente, entender o descaso dele em atrair gente disposta a roubar a fonte daquele recurso.
Havia boatos por toda parte sobre Herman ter feito um pacto com o diabo, pois não era a primeira vez que bandidos o sequestravam. De algum jeito, não se sabia como, o velho sempre conseguia se livrar deles.
Joaquim, o irmão mais novo de Frank, sentado numa sela arriada no chão, cuspiu as impurezas do fumo de mascar aos pés do garimpeiro, num gesto claro de desprezo.
— Por que não tiramos logo a localização do ouro desse velho idiota à força? - disse ele, com olhar irritado para Frank.
— Outros já tentaram... mas ele não sente dor.
— Hi, hi, hi! Herman tem o corpo fechado! - respondeu o garimpeiro, estalando os lábios ao chupar o sal da carne do coelho. A saliva gordurosa, escorrendo pela barba comprida, dava-lhe um aspecto quase grotesco.
— Esse velho não bate bem da cabeça - murmurou Jack, com as mãos amarradas, sentado distante da fogueira.
Joaquim ignorou o comentário do assaltante e se virou para o irmão:
— Tem certeza de que precisamos pernoitar no Forte dos Enforcados amanhã à noite?
— Bem... Herman diz que todas as ferramentas de extração do garimpo estão guardadas por lá. Então, presumo que a galinha dos ovos de ouro dele não deve estar longe do local.
Herman levantou o olhar, agora com sorriso enviesado.
— Aposto que o moço aí tem medo de fantasmas... tá com medinho, é? - provocou, sem a risada habitual, mas com os olhos faiscando malícia.
— Vá pro diabo, velho! — resmungou Joaquim, cuspindo o fumo novamente aos pés do garimpeiro.
— Booooo! Olha o fantasma! hi, hi, hi.
3
O sol no horizonte começava a se esconder quando os quatro cavaleiros chegaram diante do Forte Grant. Abandonado há mais de uma década, o lugar estava entregue ao esquecimento. O mato irregular ao redor da construção, a presença de falhas abertas nas paliçadas, os telhados parcialmente descobertos, o crocitar de alguns corvos, aqui e ali, vagando nas pontas dos troncos apodrecidos, compunham elementos de um quadro lamentavelmente triste e decadente.
Joaquim, tentando mostrar a Herman que não tinha medo de fantasmas, foi o primeiro a esporear o cavalo, avançando pelo átrio.
— Vamos logo. Estou doido por uma caneca de café quente.
Os outros o seguiram em direção à entrada principal. Os alojamentos estavam arruinados pelo tempo, e Frank decidiu acampar junto à paliçada interna mais robusta, buscando alguma proteção contra o vento frio da noite que se aproximava.
Assim que o sol se pôs, uma inquietação silenciosa tomou conta do grupo. Algo no lugar parecia diferente. E aquela sensação inexplicável de desconforto começou a perturbá-los. O que, sob a luz do final do dia, parecia apenas decadente e triste, à noite se transformou em algo sinistro. Dava a impressão de haver alguma coisa hostil observando-os das sombras escuras distante da fogueira.
Frank e Joaquim logo notaram a mudança no comportamento de Herman. O velho garimpeiro, antes tão cheio de risadinhas e provocações, agora lançava olhares inquietos ao redor. Seu rosto trazia a expressão de desconforto, quase de angústia. As brincadeiras haviam cessado, e o silêncio pesado agora tornava a tensão ainda mais sombria e ameaçadora.
O que Herman temia?
4
Frank, logo após o jantar, subiu com cuidado os degraus da velha escada de madeira, que rangia a cada passo, até alcançar o parapeito da paliçada do forte. Queria fumar. Distrair-se observando a vastidão silenciosa ao redor. A lua cheia dominava o céu, enorme, a derramar um véu prateado sobre a paisagem, iluminando o deserto em luz pálida e fria que se estendia até onde seus olhos podiam alcançar.
À noite, apesar de clara, parecia envolta em manto estranho, como se a lua revelasse mais do que deveria. Após algum tempo, com a visão ajustada àquela luminosidade espectral, o caçador de recompensas voltou seu olhar para o norte, na direção das montanhas não muito distantes. Algo o atraía para lá, sem motivo aparente. Observou as bocas das minas abandonadas, buracos negros que se destacavam sinistramente na penumbra da noite.
Foi então que algo se mexeu!
Frank piscou, tentando processar o que seus olhos haviam captado. Um dos buracos negros... moveu-se! Ele achou que a sua mente estava pregando peças. Apertou as pálpebras, sacudiu a cabeça, e olhou novamente. Não havia dúvidas agora: uma mancha escura se deslocara de dentro da abertura da mina.
Algo grande!
Lá embaixo, os cavalos começaram a relinchar e se agitar, patas raspando contra o chão em nervosismo crescente. Frank sentiu o frio abrupto e cortante do medo. O que quer que fosse aquela mancha, não era natural.
Joaquim, Jack e Herman levantaram-se de imediato, preocupados. Cavalos assustados nunca traziam boas notícias.
— Frank, o que está acontecendo? — chamou Joaquim, observando o irmão tenso no alto da paliçada.
Frank não respondeu. Suas mãos, quase por instinto, desceram lentamente até as armas nos coldres, dedos firmes, prontos para sacar a qualquer sinal de perigo.
— Diabo, homem, o que foi? – questionou Joaquim, agora visivelmente preocupado, enquanto começava a subir as escadas.
Um calafrio percorreu Frank, enrijecendo os músculos. Os pelos do corpo se eriçaram. Era o medo primal, algo que jamais havia experimentado. A mancha sombria, até então distante, de repente começou a descer a montanha em linha reta, movendo-se com rapidez antinatural. O coração de Frank acelerou. Uma certeza tomou conta de sua mente: fosse o que fosse, aquilo não estava apenas descendo a montanha, estava vindo atrás deles, tal qual o predador voraz que avança determinado sobre a presa.
5
— Ela está vindo — murmurou Herman para si mesmo, trêmulo de medo.
— O que você está dizendo, velho? Ela quem? — sussurrou de volta o Caolho, franzindo o cenho.
Herman lançou um rápido olhar para a plataforma acima, onde os irmãos White já estavam de costas, armas erguidas, apontando para o norte. Em questão de segundos, o garimpeiro decidiu que precisava agir se quisesse sair do forte com vida, assim como já havia feito antes. Mas, dessa vez, precisaria da colaboração silenciosa de Jack. Não queria atrair a atenção dos White. Aproximou-se dele, e murmurou:
— Fica de boca fechada... e vem comigo se quiser viver!
Sem esperar por resposta, o garimpeiro deu meia-volta e seguiu em passos rápidos para o centro do átrio. Jack Caolho, sem hesitar, foi logo atrás. Quando chegaram ao centro do forte, o velho se agachou e começou a tatear o chão coberto de mato rasteiro, enquanto os tiros dos White começaram a pipocar em estrondos no silêncio noturno lá em cima.
— Aqui! — disse Herman com brilho de satisfação nos olhos, ao descobrir uma argola de ferro oculta.
Com esforço visível, ele puxou a argola num tranco, erguendo a portinhola camuflada pela vegetação.
— Entra rápido! — ordenou, apontando para o buraco.
Jack não hesitou e se lançou no esconderijo subterrâneo. Herman o seguiu de imediato, fechando o alçapão atrás de si.
6
Os irmãos White, atônitos, ficaram imóveis ao ver a mancha escura se distorcer e, ao alcançar o sopé da montanha, moldar-se numa esfera imensa. O ar ao redor dela parecia vibrar levemente. De repente, cintilações esverdeadas irromperam de sua superfície, tal qual fogo-fátuo. A cada segundo, aquela coisa sobrenatural passou a ganhar velocidade. Avançava direto para o forte. O coração de Joaquim disparou. A boca secou ao sentir a onda de pavor.
— Frank... o que... o que é isso? – sussurrou, incapaz de esconder a angústia na voz.
Sem outra escolha, ambos sacaram as armas. Quando a esfera entrou no alcance dos disparos, abriram fogo. Mas as balas, em vez de perfurar a coisa, ricocheteavam num clarão de faíscas. Frank sentiu o estômago revirar. Aquilo não era deste mundo!
O som seco dos tiros ecoou pelas montanhas. A massa cintilante, incólume, avançava sem hesitar, ganhando ainda mais velocidade. A sensação de impotência era esmagadora. Estavam diante de algo que não compreendiam, algo além do alcance de suas armas, além até da coragem de que tanto tinham orgulho.
— Herman, está muito escuro neste buraco. Não consigo ver nada!
— Fica quieto. Vou procurar o lampião que deixei por aqui em algum lugar - respondeu o garimpeiro, revirando o chão às cegas.
O orbe negro, envolto em redoma de luz esverdeada, passou rapidamente abaixo da paliçada. Frank, horrorizado, reparou novamente os tiros ricochetearem contra a superfície, provocando apenas faíscas. Não havia dúvida: a criatura tinha uma couraça, era uma espécie de escudo que a protegia dos disparos!
— Herman, você está ouvindo os tiros? Isso não parece nada bom!
— Os irmãos White estão condenados, Jack. São homens duros, mas não têm chance contra o que está lá fora.
Frank notou, então, que a esfera era muito maior do que um cavalo. A coisa era aterradora, desafiava tudo o que ele já havia visto na vida.
— Essa coisa... vai dar a volta e invadir o forte pelo portão principal! — exclamou, virando-se para tentar alertar Herman e Jack.
Mas quando olhou para o pátio lá embaixo, iluminado apenas pelas chamas trêmulas da fogueira, ficou surpreso.
— Eles fugiram — murmurou Joaquim, perplexo. - O que vamos fazer, Frank?
O experiente caçador de recompensas não soube o que responder, apenas seus olhos se prenderam no brilho esverdeado a invadir as frestas da paliçada. Não tinha ideia de que modo enfrentar tal criatura imune às balas do seu rifle.
Joaquim, incapaz de suportar a pressão, de repente foi tomado por um surto de loucura. De arma em punho, e os olhos arregalados de desespero, desceu as escadas aos berros completamente transtornado.
— Vem, desgraçado. Vem aqui. Apareça! Quero ver a tua cara de perto!
Frank permaneceu no parapeito, paralisado, perplexo diante do arroubo tresloucado do irmão. O horror aumentou quando viu a massa cintilante surgir no portão, como se aceitasse o desafio. O brilho esverdeado da couraça, de pronto, apagou-se. Então, a coisa começou a se abrir. Suas bordas se desdobraram em pétalas grotescas, revelando a criatura imensa. Tinha oito patas longas e angulosas. Os quatro olhos laranjas, brilhando em brasas vivas, focaram-se no rapaz. Eram olhos famintos e implacáveis.
— Jack, preciso te dizer, a criatura lá fora... parece uma aranha gigante..., mas não é deste mundo.
— Do que você está falando, Herman?
— Ela caiu do céu, sabe? Transformou-se numa aranha ao observar as de verdade, mas não é uma delas. Ela é... ela é inteligente!
Frank tentou reagir, no entanto sentiu uma dor aguda percorrer o pescoço. Ele mal teve tempo de entender o que estava acontecendo antes de sentir os músculos afrouxarem. Um dardo envenenado o imobilizara. Caiu de bruços sobre o parapeito da paliçada e, com a cabeça pendendo, assistiu impotente ao que se desenrolava lá embaixo.
Joaquim, tomado por desespero cego, berrou novamente e disparou duas vezes. Os tiros atingiram o monstro, fazendo-o recuar poucos centímetros. O som que a criatura emitiu era diferente de tudo que o rapaz já tinha ouvido. Era um chiado longo, agudo e, de algum modo que não compreendia bem, sentiu aquilo mais do que um simples lamento, era como se a dor e o ódio da criatura, despertados pelos tiros, fossem transmitidos diretamente a ele. O monstro sentiu o golpe, e não gostou.
O rapaz amaldiçoou à falta de sorte. Depois de apertar o gatilho mais duas vezes, ouviu apenas cliques inúteis. Irritado, lançou o winchester descarregado na direção da criatura.
— Toma, filho da puta!
Em seguida, sem pensar, levou a mão ao coldre e sacou o revólver. Em postura de ataque, numa velocidade impressionante, Frank reparou as longas pernas do monstro se arquearem para baixo dando a impressão de que tencionava pular. Mas das laterais do seu corpo esférico dois finos tentáculos, à semelhança de cordas, surgiram estendendo-se rápidas como flechas até seu irmão. Uma das “cordas” envolveu o pescoço de Joaquim enquanto o monstro diminuía o espaço entre eles içando-o por meio metro acima do solo. As botas do rapaz escoicearam apenas o vazio.
Frank, paralisado pela toxina, não conseguiu desviar o olhar ao ver incrédulo o irmão, mesmo em agonia, apontar o revólver para a cabeça embutida no corpo da besta. “Atira”, tentou grunhir, mas a voz se perdeu no vácuo. Viu, estarrecido, quando o monstro enrolou o outro tentáculo no braço do rapaz, na altura do ombro, e o arrancou como se estivesse quebrando um galho seco. O urro de dor de Joaquim cortou o silêncio da noite de modo excruciante e o sangue jorrou denso, pintando o chão numa cena digna de pesadelo.
A criatura, de forma displicente, jogou o membro decepado de lado e apertou ainda mais o pescoço da vítima. Joaquim exprimiu o sofrimento num som primitivo, tormentoso. Era a manifestação crua e agônica do horror absoluto.
— Herman, o que essa coisa quer?
— Ela é uma caçadora. Come tudo o que consegue pegar, mas tem um gosto especial... gosta de carne humana. Isso mesmo! Em nosso corpo tem algo que ela aprecia muito... é apenas uma guloseima para ela.
— E o que é?"
Frank, nas horas restantes de vida que ainda ficaria pendurado de cabeça para baixo em uma das cavernas na montanha, não conseguiria se livrar do que iria presenciar a seguir. Joaquim, em esforço desesperado, instintivo, virou o rosto para cima, à procura do irmão mais velho. Mesmo à distância, na luz trêmula da fogueira próxima, Frank pôde ver cada detalhe da expressão contorcida do rapaz. Os lábios tremiam enquanto murmuravam o pedido impossível: "me ajuda, por favor". O horror que transbordava daquele olhar feriu Frank mais do que qualquer lâmina jamais poderia.
A cabeça embutida da aranha deslocou-se alguns centímetros à frente. Do orifício no centro desta, projetou-se um tubo translúcido que, em movimento rápido e preciso, perfurou a lateral do crânio do moribundo. Os olhos do rapaz se reviraram para cima deixando apenas o branco das escleras à mostra. A boca se abriu de forma grotesca, sem emitir som, enquanto sangue e pedaços de cérebro eram aspirados através do tubo.
Frank apenas pôde observar, atormentado pela letargia, a vida se escoar rapidamente do corpo do irmão. E quando o monstro finalmente o largou, feito um brinquedo quebrado, sem valor, o caçador de recompensas sentiu o desespero da impotência esmagadora, pois reparou aqueles quatro olhos brilhantes e mortais voltarem-se na sua direção sem deixar a menor dúvida: o predador já marcara a próxima presa. E naquele momento, enquanto as trevas pareciam querer tomar posse de sua consciência, ele rezou para que, realmente, viesse a desmaiar a fim de fugir do martírio de ser devorado vivo.
7
Quando Herman finalmente conseguiu acender o lampião a óleo, Jack Caolho precisou de alguns segundos para seus olhos se adaptarem à luz fraca. O primeiro detalhe a chamar a sua atenção foi o brilho de um monte de pepitas de ouro amontoadas ao lado da escada de acesso. O tesouro tão sonhado estava bem ali, ao seu alcance.
Mas o bandido jamais conseguiria dar um único passo na direção daquela fortuna. Em instante, na batida do coração ansioso pela cobiça, sentiu uma dor lancinante na altura do pescoço. Seus músculos falharam de imediato e o corpo inteiro se esparramou no chão, inerte.
A perplexidade tomou conta de Jack enquanto, deitado de lado e incapaz de mover-se, seus olhos se fixaram em quatro pontos luzidios em meio à penumbra mais distante do fundo do cômodo. Ao lado, numa perspectiva mais à frente, Herman em pé aguardava com as mãos levada às costas. O buraco, iluminado apenas pelo fraco brilho do lampião, estava mergulhado em sombras sinistras, tornando o ambiente ainda mais opressor. O sorriso, ainda debochado na cara do velho, havia adquirido também contornos de malícia sinistra, que se espalharam pelo seu rosto pregueado, parecendo mais um presságio de mal agouro.
— Hi, hi, hi... Herman acha que Jack está num beco sem saída — zombou com a voz carregada de desprezo.
Foi então que o assaltante de bancos viu a forma aracnídea surgir lentamente da penumbra e postar-se ao lado do garimpeiro. Ela foi se aproximando, silenciosamente, com seus quatro olhos brilhantes fixos no corpo imóvel do bandido.
— Este aqui é o filhote dela. Ele precisa comer também! - Herman falou com a naturalidade de quem comenta sobre um amigo em comum.
O horror tomou conta de Jack ao ver o “filhote” empurrar com uma das patas algumas pepitas de ouro aos pés de Herman, assim como se selasse um acordo grotesco. O velho garimpeiro agachou-se, pegou as pepitas com as mãos sujas e, inclinando a cabeça para o lado, escutou com atenção os chiados baixos e inquietantes que saíam da criatura.
Herman então se levantou devagar, com o brilho de contentamento no olhar. O sorriso macabro deformou ainda mais seu rosto enrugado.
— Hi, hi, hi... Quer que eu traga mais, é? — disse, assentindo para a criatura. — Não se preocupe... trabalho é trabalho. Hi, hi, hi...
Conto participante do CLTS 17