TODOS ESSES OLHOS SOBRE NÓS - CLTS 17
— ...Deus! Será que alguém pode ligar para o socorro, por favor?!
O tempo escorria lentamente enquanto a mente confusa buscava qualquer referência sobre onde estava, ou o que poderia estar acontecendo. A sequência de murmúrios foi ganhando tons mais claros ao meu redor à medida que os demais sentidos pouco a pouco recomeçavam a estabilizar. Podia naquele momento distinguir o odor metálico e o sabor de sangue inundando minha boca. No horizonte, apenas uma diversidade de faces desconhecidas a me encarar.
Uma intolerável dor que me castigava, atravessando músculos e ossos da cabeça aos pés. A cada respiração, era açoitado por um sofrimento que jamais havia experimentado antes.
— ...o melhor é não mexer! Pode piorar!
—...dez minutos até o socorro chegar? Que absurdo isso! Olha o estado do rapaz!
—... alguém conseguiu gravar a placa? O desgraçado só acelerou e foi embora!
A aglomeração naquele trecho da ciclovia parecia aumentar. Já não conseguia distinguir quantas pessoas me cercavam, uma murada de expressões mistas entre a condolência e a indignação. Nojo e repulsa também.
“Devem estar olhando para o meu rosto”, antecipadamente pensei, pressentindo o estrago aparentado pela enorme quantidade de sangue que escorria. Ainda era difícil de compreender o que de fato havia ocorrido, precisava de foco para a recapitulação. Fiz força para afastar da minha cabeça aqueles olhares.
Pedalava em uma velocidade segura pela ciclovia até sentir o choque. Foi tudo muito rápido. O mundo apenas freou e aparentava como se o único corpo em movimento naquele segundo fosse o meu junto a bicicleta, uma volta e meia pelos ares até meu rosto atingir o solo incandescente daquela tarde de verão. A bicicleta, cinco dentes incisivos e as cartilagens do nariz foram destroçadas na aterrissagem.
Queria concentrar minha atenção em algum ponto fixo longe da multidão, mas aquele cerco me apertava mais e mais. Estavam quase a encobrir o sol. Sentia-me sufocado.
A cada rosto que meus olhos encaravam, dois novos surgiam na multidão indiscreta. Só em mensurar aquele exagero de atenção destinado à minha pessoa era o suficiente para fazer meu peito hiperventilar. Sentia a face ruborizar em humilhação de um jeito tão intenso que a vermelhidão da pele poderia muito bem se confundir com o sangue sujo espalhado pelo meu rosto.
Contudo, a sina que me acompanhava era a de que não existe situação tão ruim que não possa se tornar pior. A partir dali, o pesadelo realmente ganhava o mundo real e proporções catastróficas.
Não demorou muito para as primeiras lentes refletirem os raios de luz. Celulares apontados diretamente para aquele infame corpo exposto. O meu corpo. Gostaria de pedir — suplicar — para que não olhassem para mim, que não filmassem minha derrota. Porém, a voz insistia em falhar, cada palavra saindo fraca demais. Um pedido inútil perdido entre o fluido rubro que escapava por entre meus lábios.
“Fraca. Minha voz SemPre foi fRaca”.
Precisava fugir. Rastejar lentamente minha frágil carcaça para dentro de um arbusto ou bueiro qualquer. Escapar do julgamento daquela gente que provavelmente só queria assistir ao espetáculo de minha desgraça. Entretanto, por mais sutil que fosse, a cada movimento que realizava trazia a memória aos músculos de todas as lesões adquiridas como resultado do acidente. Os dois joelhos angulados para dentro me levaram a visão de um futuro de demorada recuperação, de longas noites sem dormir pelo sofrimento que me aguardava.
O grosseiro abraço da ansiedade nunca havia sido tão aterrorizante.
“Não, isso não pode estar acontecendo! É Muito azar o MeU! Por que tudo isso de RuIm acoNtece TanTas veZes Comigo?”.
Foi aí que senti a aproximação Dela. Emergindo do lugar obscuro onde eu teimava em trancá-la. Qualquer tratamento que eu buscasse apenas a retardaria. Mas ela sempre encontrava um modo de me subjugar.
Reconhecia aquela voz dentro de mim, pronta para envenenar meus pensamentos. Uma antiga companhia, incessante e impertinente, que ganhava a luz nos momentos em que eu mais confessava as próprias fraquezas. Era aquela “Coisa” de novo, escalando minhas entranhas e cravando suas finas patas em meu âmago.
“ImagIne a quantiDaDe de peSSOas que aSsIsTirão a eSsas IMaGens pela IntERnet? Que reaGirão a eSSe iDioTa estaTelado no cHão?”. — era o mesmo som gutural e violento de sempre. Reverberando por meu interior em um idioma que apenas nós entendíamos. O mundo à minha volta começava a desvanecer.
A Coisa se impulsionava dentro de mim, serpenteando em busca de sua liberdade. Lutando para me derrotar, confirmando tudo aquilo que eu mais temia. “E a terapeuta disse que NoS faria bem sair um pouco de casa...e AGOra, VeJa sÓ tOdA essA GenTe! VeJa Só no qUe DEu!!”.
— Por favor, ABRAM ESPAÇO! Não cheguem tão perto!
— Nossa...olha a cor dele! Está ficando pálido...acho que vai desmaiar...
A multidão abriu o mínimo de espaço para que eu pudesse novamente reconhecer o tráfego lateral da ciclovia. Uma fila de carros seguia um fluxo em uma lentíssima marcha, alimentados pela curiosidade de vislumbrar em primeira mão aquela tragédia.
Um par de ônibus com as janelas escancaradas. Motoristas, cobradores, passageiros, todos com seus olhos famintos por julgamento. “E sE DenTRo desSes Ônibus esTivEr sentadO alGuéM qUE tE coNHEce…?
Mais olhares e celulares apontados para nós. A cada frame capturado, minha visão esbranquiçava. O chão amolecia abaixo de mim.
“POssO prevEr a maNchete dos jORnais de amanHã: CiCLista iMpRudenTe soFRe aciDeNte tRáGico que deiXa Seu RoSTo deSfiGuRaDo e...”, eu batalhava para manter o controle, mas o som de sua voz estava tão alto que por vezes ocultava as outras percepções de meu corpo. Mesmo as dores estavam em segundo plano. Queria sumir. PRECISAVA sumir. Rezava para que uma cratera se formasse abaixo de mim e a própria terra me tragasse para longe. Viveria no subsolo da cidade, no núcleo do Planeta...onde quer que fosse, desde que toda essa história fosse esquecida. E que eles parassem de nos encarar.
— ... mas o que é que ele está fazendo? Isso é um espasmo ou ele tá...cavando?
— Nossa, o cara tá cavando alguma coisa. A batida na cabeça foi forte, mesmo — pude ouvir o ruído zombeteiro vindo da multidão.
Essa Coisa selecionava o que eu deveria escutar fora de minha mente, e assim percebia o início de um novo burburinho. Queria agir naturalmente, mas as unhas impulsivamente raspavam o chão. Meu corpo já não respondia mais à razão, apenas ao medo. Apenas queria sobreviver e buscar abrigo. “Eles Devem aCHar que Eu Sou um cara estraNho. Eu SOu Uma aBomiNaçÃO, pArA ELEs”. A Coisa estava sólida, alcançava a garganta em um volume tão denso que me asfixiava.
“Por Favor, não chore. Não se DesesPere. Não aqui.”
***
— ...ok, o indivíduo parece estar novamente consciente...a pulsação está...fraturas abertas…múltiplas....estado de choque...
A cada piscar de olhos, as palavras eram perdidas pelo ar. A multidão havia se dissipado. Estava acompanhado unicamente de um pequeno grupo de pessoas que rasgava minhas vestes com velocidade. Ambulância, socorristas, a movimentação da maca...pouco a pouco entendia o novo cenário que se construía a minha frente. O novo desmaio pode ter sido um sinal de meu corpo buscando poupar-me de tudo o que aconteceu até o socorro de fato vir a meu resgate, o que efetivamente deu certo. A voz da Coisa já não me atormentava mais como há minutos atrás.
O pescoço imobilizado me obrigava a contemplar aquele límpido céu de verão. Que dia mais lindo...fora isso que havia me motivado a sair de casa. Antes do acidente pude realmente vivenciar isso. A cada pedalada ia esquecendo as pessoas à minha volta, o receio por julgamentos infundados e irracionais. Eu era apenas mais um na multidão que buscava aproveitar o dia.
No caminho até a ambulância, pude regressar ao estado original, sem mais olhares curiosos ou celulares apontados para mim. Pude por fim fechar os olhos e permitir um breve descanso a minha mente quase sempre preocupada.
— Ainda bem que essa via é bem monitorada pelas câmeras — tentou tranquilizar um dos profissionais do resgate — Isso aqui vai viralizar e vão encontrar o cara que te fez isso. Isso vai rodar todo o Brasil!
Minhas entranhas se retorceram de forma extrema, assim como se retorceram o quadro e o guidão da finada bicicleta. Um jorro pastoso escapou por minha garganta, se unindo ao sangue e emporcalhando meu rosto, meu peito, minhas roupas, assim como os braços dos socorristas.
Aquelas palavras novamente despertaram Ela, e assim estava concluída a catástrofe. Pude escutar, como último registro, a reação originada de minha fiel plateia que mesmo ao longe seguia a me acompanhar. Ao contrário de palmas, se despediu de mim com um sonoro “URGH”. As câmeras devem ter captado em detalhes o gran finale.
— ...te firma aí para não vomitar também, Carlos! Hahah! — zombou um dos homens que saíram ilesos da golfada. Deitado sobre a maca, pude assistir inerte ao fechar da porta da ambulância. A Coisa já havia escapado, e suas previsões agora estavam livres e fundidas a minha própria voz. Desejávamos, com toda nossa força restante, que ficássemos enclausurados dentro daquele cubículo por toda a eternidade.
TEMA: FOBIA (SOCIAL)