O retrato antropofágico

Fazia uma semana desde que ganhara aquele quadro numa mostra artesanal indígena itinerante que passou pelo colégio em que estudava, o belo prêmio foi entregue a Pedro pelo seu desempenho nas olimpíadas interdisciplinares de história, educação física português e artes. Dentre os quarenta alunos do Ensino Médio, ele ficou em primeiro lugar, contudo, dias depois o brilhante aluno passou a não conseguir ter uma noite sequer de sono decente, pois inexplicavelmente ao marcar das onze horas e onze minutos, seu quarto onde estava pendurado o troféu artístico, era preenchido por toda sorte de ruídos selvagens que aparentavam sair de dentro da pintura. Os indígenas ali representados estavam em volta de um grande pote vazio sob a fogueira, com expressões sisudas, dançando sob a claridade de uma lua cheia e ironicamente a pintura era iluminada por uma língua de luz do verdadeiro satélite terrestre que entrava pelo rasgo na película blecaute da janela.

No terceiro dia em que estava em posse da pintura o rapaz começou a ouvir bem baixinho os sons de uma floresta noturna, não era algo que o incomodava, inclusive tinha a impressão de que tal experiência acústica lhe ajudava a pegar no sono com maior facilidade, infelizmente logo após pegar os olhos, ouvia um grito inesperado ou um grunhido bestial. Procurava a origem daqueles sons, mas não conseguia identificar de onde vinha o chirriar de coruja, a estridulação dos grilos e nem o vozerio conversando ao longe, abriu a janela ignorando as horas da madrugada buscando pela fonte do barulho, mas não via sinal de uma alma viva e nenhum sinal da agourenta ave de rapina, já exausto conseguiu pegar no sono e no embalo daquela sinfonia foi levado para a floresta.

Pedro estava andando pela selva noturna com pouca luminosidade, ali só havia três fontes de luz, a primeira e maior: Jaci, a lua, em sua glória plena e prateada, a segunda eram ínfimos vaga lumes que pairavam por entre os arbustos e troncos de árvores e bem distante dali a terceira em algum fogo no chão, quando tentou caminhar o rapaz tropeçou nas raízes entrelaçadas das árvores e feriu o cotovelo, sentiu o sangue escorrer pelo braço e não foi o único, o cheiro ferroso exalando do corte despertou alguma besta oculta nas sombras que logo rugiu e começou a rodeá-lo, o jovem se lembrou de suas leituras e sobre o comportamento das onças sertanejas e ao que tudo indicava parecia ser exatamente o felino que estava ali o cercando. Ignorando o conhecimento, desbaratou a correr na direção do fogo e à medida que se aproximava parecia ouvir vozes de pessoas entoando algum tipo de canção desconhecida. Quando chegou perto o suficiente percebeu que eram indígenas, que dançavam e cantavam ao redor de um pote de cerâmica cheio de água fervendo, virou para trás e viu os olhos da onça se aproximando rapidamente. Numa atitude desesperada Pedro invadiu a aldeia pedindo ajuda aos indígenas que não conseguiam entender nada que o rapaz dizia, a onça adentrou na aldeia e não se intimidou com os tapuias que ergueram suas lanças e prepararam os arcos com flechas em riste apontando para o animal e para o intruso, enquanto corria Pedro caiu de costas no chão por uma rasteira dada por uma índia, todos ali passaram a rir do rapaz em frente à morte, foi quando o mesmo percebeu ali no chão uma borduna afiada, pegou a arma e esperou a investida do felino selvagem. Quando a onça pulou de garras abertas prontas para despedaçar o jovem, eis que ele ergueu a borduna e atravessou o peito da onça matando-a, levantou-se com dificuldade e sentiu uma estranha picada no pescoço, rapidamente levou a mão ao local e retirou um dardo de penas, sem tempo de reagir apagou sob o efeito do veneno paralisante.

No dia seguinte o rapaz despertou todo dolorido, havia caído no chão e seu cotovelo coincidentemente estava arranhado com alguns filetes de sangue, levantou num pulo e correu para frente do quadro. Não sabia se aquele detalhe estava ali antes mas na tela agora parecia haver uma onça morta, com o peito aberto no exato lugar onde ele se encontrava no sonho da noite anterior, os nativos não pareciam mais estar dançando, olhavam para frente, como se pudessem enxergar a Pedro e seu quarto. O rapaz se perguntava se estaria ele enlouquecendo diante daqueles acontecimentos tão bizarros, empreendendo força levantou, foi tomar banho e foi para a escola, por lá preferiu não comentar sobre os ocorridos. Pela tarde respondeu aos exercícios escolares para casa e ajudou a mãe nas tarefas do lar, à noite já temendo o pandemônio do cômodo, colocou seus fones de ouvido e deitou para dormir, o som invadiu o quarto novamente e dessa vez não apenas ele como os próprios indígenas ao menos foi essa impressão que o rapaz teve quando caiu no sono. Os nativos arrancaram as roupas de Pedro e o amarraram com um cipó, quando chegaram na taba, eram aguardados pelo pajé, o velho nativo trazia consigo a pele da onça, a qual colocou sobre a cabeça do rapaz ainda assustado, a indígena que o derrubara no sonho anterior, entregou uma cuia de cabaça ao sacerdote que sorveu um líquido avermelhado e deu uma cusparada no jovem tingindo seu rosto e logo após o ato o ancião gritou o nome Yawarakari! Yawarakari” que na tradução tupi guarani significa homem branco onça, uma espécie de batismo de guerreiro pela morte do temível felino, as indígenas se aproximaram trazendo grandes potes de cauim as quais serviram aos nativos e ao cativo. Pedro não gostou do sabor da bebida de aipim fermentada e quase vomitou depois de beber um gole, os índios riam do comportamento do rapaz, naquela noite a comemoração foi até o dia raiar.

Quando o Tupã, o sol, atingiu o zênite os indígenas trouxeram grandes vasilhas com raízes cozidas, uma papa de milho chamado sorgo, muitas frutas e água para o rapaz, esse não poderia fugir, pois tinha os pés atados em grossas fibras vegetais só lhe restava comer. Pedro desistira de tentar se comunicar com os indígenas visto que não entendiam sua língua, mas não se preocupou muito, pois era apenas um sonho bobo mesmo e por isso decidiu entrar naquela cultura de cabeça, comeu da carne de caça, pitou pela primeira vez daquele fumo de nome “petim”, imitou as danças, o tempo passou que ele nem percebeu. Já no crepúsculo o jovem foi levado pela mesma nativa que implicava com ele desde o primeiro momento que chegou ali para o rio, lá a moça com uma lasca de bambu raspou-lhes todos os pelos do rosto aos pés e sob a escuridão da lua nova os dois tiveram um contato mais íntimo e regressaram à aldeia. Nesta altura Pedro não entendia porque seguia adormecido e sonhado, aquele era o sonho mais longo que já tivera, “será que exagerei na dose de sonífero?” se perguntava, o rapaz não conseguia pregar os olhos e passou o resto da noite observando a floresta.

Antes mesmo de raiar o sol uma grande comoção havia começado na taba, todos os índios saíram gritando e cantando com grande alegria, Aiyrauá a nativa por quem Pedro sentia-se apaixonado vinha dançando com um tacape enfeitado de penas, as indígenas mais velhas pegaram o rapaz e o levaram para o centro da aldeia, banharam-no com algum sumo de ervas perfumadas e pintam seu corpo com padrões geométricos nas cores vermelha e preta, retiraram-lhe a pele de onça e aguardaram os homens chegar ao centro após a dança ritualística. Fez-se um grande silêncio quando os nativos se aproximaram, o cacique tomou a palavra e disse algo repetindo o nome de guerreiro de Pedro, depois apontou para a filha que se aproximou com o porrete, ela entregou ao pai que tomou distância e sem esperar desceu a lenha sobre o jovem.

Pedro não acordou na manhã seguinte em sua casa, sua mãe estava desesperada, pois havia manchas de sangue no quarto do filho e nenhum sinal dele há exatos quatro dias, o sangue do rapaz estava pelo chão e na parede próxima ao quadro que agora mostrava os índios num dia ensolarado, comendo as partes de um corpo humano ao redor de um pote com os pedaços de uma pobre vítima da antropofagia. Um mês se passou sem nenhuma pista do paradeiro do rapaz que agora era tido como morto, a visão daquele quarto fez com que mãe de Pedro tomasse ojeriza da arte violenta, Dona Catarina doou a pintura para o centro comunitário, corre à boca miúda que toda a noite depois da meia-noite são ouvidos gritos, lamentos, e um estranho barulho de floresta noturna.

Francisco Grandiel
Enviado por Francisco Grandiel em 26/11/2021
Código do texto: T7394241
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